Um homem de 28 anos, dinamarquês, chega à grande cidade, Paris, num
estado frágil. Vem para empreender uma grande aprendizagem. A cidade está cheia
de hospitais e cheira a medo por todos os muros e recantos. Os ruídos não o
deixam adormecer de noite mas há também o grande silêncio terrível. A grande
transformação começa pelas ruas, pelo olhar que aprende a ver os rostos e os
não-rostos.
“Mas aquela mulher, aquela mulher: estava completamente ensimesmada,
de cabeça inclinada para a frente, sobre as mãos. Foi na esquina da rue
Notre-Dame-des-Champs. Assim que a vi comecei a andar sem fazer ruído. Quando
os pobres se põem a pensar não se deve incomodá-los. Talvez acabem por
lembrar-se.
A rua estava vazia de mais, o seu vazio aborreceu-se e retirou-me o
passo debaixo dos pés e pôs-se a bater com ele, aqui e acolá, como se fosse uma
tamanca. A mulher assustou-se e saiu do seu ensimesmamento, demasiado depressa,
com demasiada violência, de tal modo que o rosto lhe ficou nas duas mãos. Eu
podia vê-lo nessa posição, ver a sua forma oca. Custou-me um esforço
indescritível fixar o olhar apenas nas mãos e não o levantar para ver o que
delas se tinha arrancado. Sentia o pavor de ver um rosto por dentro, mas tinha
um medo ainda maior de uma cabeça nua e em carne viva, sem rosto.”
Malte tem medo. Sabe que a morte foi seriada mas não perdeu a sua dificuldade.
Escreve as noites contra o medo. Esquece as suas recordações e aguarda
pacientemente o seu regresso. Separa-se de tudo e de todos. Com as palavras de
Baudelaire, reza a Deus. Tudo o que se perdeu na infância retorna, os perigos
passados tornam-se novamente presentes.
"A existência do terrível em cada partícula de ar. Tu respira-lo com a
sua transparência; mas ele condensa-se em ti, endurece, assume formas pontiagudas
e geométricas entre os órgãos; pois todas as torturas e terrores cometidos em
lugares de suplício, nas câmaras de tortura, nos manicómios, nas salas de
operações, debaixo dos arcos das pontes no fim do Outono: tudo isso é de uma
resistente intemporalidade, tudo subsiste e se agarra, ciumento daquilo que é,
à sua terrível realidade.”
Malte não tem para onde ir, o seu coração expulsa-o de si mesmo. A vida torna-se indistinta e incomunicável. Pressente, no entanto, uma bem-aventurança próxima, nas Amantes, as poderosas Amante, como
Gaspara Stampa e Mariana Alcoforado e nos seus amores que não precisam de
qualquer correspondência, porque são chamamento e resposta; as imortais amantes
que ultrapassam sempre o amado pela felicidade da sua entrega, porque sabem já
que a união de dois seres nada mais pode trazer do que um acréscimo de solidão.
“O que sabiam eles sobre quem ele era? Ele era agora extremamente difícil
de amar e sentia que só Alguém o poderia fazer. Mas esse ainda não queria.”
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