domingo, 28 de outubro de 2012
sábado, 27 de outubro de 2012
sexta-feira, 26 de outubro de 2012
A todos os romanticidas: a vida e a crise que se lixem, o amor é o amor.
“Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em “diálogo”. O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam “praticamente” apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje.
Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do “tá tudo bem, tudo bem”, tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.
Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em “diálogo”. O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam “praticamente” apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje.
Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do “tá tudo bem, tudo bem”, tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso “dá lá um jeitinho sentimental”. Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.
O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A “vidinha” é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não dá para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha – é o nosso amor, o amor que se lhe tem.
Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.
A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.”
Miguel Esteves Cardoso
quinta-feira, 25 de outubro de 2012
quarta-feira, 24 de outubro de 2012
As delícias do Inverno
“Estamos não na Primavera,
nem no Verão, nem no Outono, mas no pico do Inverno. Este é um ponto muito importante
na ciência da felicidade. E surpreende-me ver pessoas que não se importam com isso
e que até se felicitam por o Inverno estar a acabar ou, se ele está a decorrer,
por ser muito rigoroso. Eu, pelo contrário, todos os anos rezo a pedir ao céu o
máximo de neve, granizo, gelo e tempestades que ele possa dar-nos. Todos, é claro,
sabem dos divinos prazeres que nos esperam no Inverno ao canto da lareira; as velas
que se acendem às quatro horas, o calor da alcatifa, o chá, a formosa pessoa que
o faz, os reposteiros corridos, as pregas das cortinas a roçar o chão, enquanto
o vento e a chuva rugem lá fora
E parecem bater às portas e janelas,
Como se terra e céu um só quisessem ser;
Mas não podem entrar, não encontram por onde,
Nada poderá invadir o nosso doce abrigo.
(Castle of
Indolence)”
Thomas De Quincey, Confissões
de um Opiómano Inglês
“Sentíamo-nos perfeitamente
bem ali no quente, tanto mais que lá fora, e no próprio quarto, sem aquecimento,
reinava um frio cortante. A este respeito acrescento que para se gozar plenamente
o calor é indispensável ter uma parte do corpo exposta ao frio; porque neste mundo
a única medida de valores é a que resulta do contraste. Em si, nada existe. Se uma
pessoa se vangloria de um conforto pleno e perene, isso é o mesmo que afirmar que
não se encontra mais em condições de avaliar o que é o conforto. Mas se, à semelhança
de Queequeng e de mim próprio, uma pessoa se encontra na cama com a ponta do nariz
e o alto da cabeça ligeiramente friorentos, então, na verdade, essa pessoa pode
afirmar com toda a consciência que sente o mais delicioso e inequívoco calor. Por
este motivo um quarto de cama nunca devia dispor de aquecimento, que é um dos luxuosos
desconfortos dos ricos. Porque a suprema delícia é não ter, entre o nosso corpo
e o frio exterior, outra coisa além de cobertores. Então podemos dizer que somos
como uma fonte de calor incrustada no cerne de um cristal do Ártico.”
Herman Melville, Moby
Dick
terça-feira, 23 de outubro de 2012
Humor & Ternura
Há já algum tempo que sem
explicação conhecida me sentia atraída pelo livro A Boneca de Kokoschka de Afonso Cruz, mas a sua leitura ia sendo
adiada pela urgência de clássicos. O recente prémio da União Europeia para a
Literatura materializou esta vontade, sem que eu entendesse bem porquê, dado
que não acredito nem em prémios nem na referida união.
Foi o primeiro livro do autor
que li. Proporcionou-me um fim-de-semana muito agradável. Os estranhos nomes e
o cenário de uma Dresden bombardeada recordaram-me de imediato um outro
universo de escrita: Gonçalo M. Tavares. E embora a minha intuição inicial se
viesse a revelar adequada, entre ambos os autores temos apenas essa
coincidência de tema, a saber, o eterno e irrespondível tema do Mal. Com a
grande diferença essencial, que a escrita de Afonso Cruz não se deixa
contaminar pelo objecto de investigação, permanecendo fiel a uma afectividade
compassiva, que um olhar mais leviano poderá tomar por ingenuidade.
“Sr.
Vogel, se não estiver contente com o rumo das coisas – disse Isaac -, só tem de
fazer uma coisa muito simples: juntar os dois pés, concentrar-se e dar um
pequeno pulo na vertical. Quando os seus pés tocarem o chão outra vez, a
realidade do chão, quando deixarem esse momento celeste que é o salto, quando
tocarem o chão, dizia eu, provocará um pequeno tremor que abalará a direcção do
universo. Se ia em determinado sentido, sentido que, por certo, não lhe agrada,
basta pular para ver mudar o rumo. Mas porque o tremor é muito pequeno, os
efeitos não se notam de imediato, no entanto, se pudesse olhar para o futuro,
veria como foi diferente daqueles futuros em que não pulou. A vida é feita
destes saltinhos.”
A
Boneca de Kokoschka não desalinha órgãos ou ideias nem oferece
epifanias. É mais uma aproximação a uma ficção borgesiana, em que mais uma vez
se replica o eterno debate entre a vida e a ficção. O mais das vezes é a ficção
a insistir em suplementar a vida, com um editor a encomendar biografias
imaginárias e até obras desses biografados inventados, um homem com reticências
cranianas, uma livraria chamada Humilhados & Ofendidos, cartas de amor que
colocam no mesmo plano o eterno e a secção de enlatados do supermercado, um
livro dentro do livro, um coleccionador de borboletas excêntrico que tenta pesar
o Mal e uma prostituta que faz descontos a homens de esquerda. Em ocasiões mais
raras, é a vida que se liberta da sua modorra e explode numa riqueza que ultrapassa
qualquer possibilidade de imaginação.
“
– (…) Não existe mentira na literatura, na ficção, e, digo-lhe mais, não existe
verdade na vida real. Se perceber isto muito bem, perceberá muito mais coisas.
Quer mais brandy?”
Repete a receita mais arcaica
para derrotar o Mal: a sua nomeação pela narração. Repete que sem os outros não
somos nada e que apenas a sobreposição de vários ângulos ao mesmo tempo, mesmo
os mais inimagináveis, dissipa as grades com que a alma escolheu engaiolar-se,
até porque o grande inimigo está dentro de nós, neste corpo que alimentamos e
vestimos.
Centra toda a sua mensagem
numa apologia banal do amor. “Lutamos
então contra a maior força do cosmos, contra aquilo que o caracteriza, contra
aquilo que ele faz: expandir-se. O universo expande-se, mesmo nos momentos de
ócio. Isso quer dizer que separa tudo, faz com que todas as coisas se afastem,
se dissolvam. O amor vai juntando as peças que pode – como um velho reformado a
jogar dominó – e o universo está aqui para baralhar tudo outra vez.” Banal
porque a a história da nossa cultura é rica nestas chamadas de atenção sobre o
poder aglutinador de Eros, que remontam aos seus inícios com Empédocles e Platão,
entre outros.
Um aviso reiteradamente afirmado e jamais concretizado que justifica a insistência. Por isso, repetir
nunca é demais. E Afonso Cruz fá-lo com imensa criatividade, humor e erudição e
do que andamos precisados, meus caros, é disto mesmo, desta amálgama de humor e
ternura para renovar optimismos e esperanças. Eu, por mim aceito o repto e
concluo que não vale a pena tentar enganar-me: não consigo não ser alegre. Temos
mais um livro para integrar a tão reduzida lista de uppers, embora seja um upper light, porque não tem aquela grande Beleza que dói de tão bela. Mas merece o prémio e mereceu as minhas duas noites.
“Adele
Varga saiu do escritório de Filip Marlov com uma espécie de raiva. Não sabia
contra quem a deveria dirigir, mas sentia-se magoada pela maneira como o
universo trata os nossos afectos. Entrou no bar mais próximo e pediu um Manhattan.
Nessa altura, enquanto bebia, apareceu um homem ao seu lado. Conversaram sobre
música porque ele era músico e, no final da noite, apaixonaram-se para sempre. E
ficaram assim, nesse estado tão pouco natural, para o resto da sua eternidade:
a lutar contra o universo. Ao fundo, ouvia-se uma música de Django Reinhardt: Tears.”
sexta-feira, 19 de outubro de 2012
a poesia acaba quando um poeta morre
A Poesia vai acabar
A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
— Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? —
Manuel António Pina, "Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo. Calma é Apenas um Pouco Tarde"
“Adquirir a sua alma na paciência”
Lisboa,
19 de Outubro de 2012
Estimado Poeta,
Não tenho outro modo de
lhe agradecer as cartas que escreveu há mais de um século. Embora endereçadas a
outro jovem aspirante a poeta, as suas palavras trouxeram-me uma alegria
preciosa. Os seus conselhos, sempre tão ternos e sábios, afiançam-me que
conheceu enormes fadigas e pesadas tristezas e que a certo ponto, decidiu não
desesperar e confiar nesse negrume que o abraçava. Tem razão quando afirma que
se deve fazer da solidão “uma casa à luz
do cair da tarde ou do amanhecer, por onde os ruídos dos outros passa à distância”.
Tudo o que é genuíno e grande começa nessa solidão desmedida.
A tristeza é o momento em
que qualquer coisa de novo e desconhecido penetra em nós, como uma tempestade
primaveril que entra pelos escaninhos da alma, sorrateira, aí se instalando com
toda a lentidão e silêncio enquanto prepara o seu parto, no centro do ser. “Tudo se resume a levar ao fim a gravidez e
depois dar à luz. Deixar medrar cada impressão, cada semente de uma emoção, dentro
de nós, no escuro, no inefável, no inconsciente, inacessível ao próprio
entendimento, e com profunda humildade e paciência aguardar a hora do parto de
uma nova claridade: apenas assim se vive artisticamente, no entendimento como
na criação (…) O Verão chegará. Mas apenas para quem esperou pacientemente,
para quem aqui permaneceu como se à sua frente se estendesse, sem cuidados,
silenciosa e imensa, a eternidade. Todos os dias aprendo esta lição, aprendo-a
pelo sofrimento que aceito com gratidão: a paciência é tudo!”
A solidão será difícil de
suportar, mas o esforço será recompensado. Nas horas mais escuras, haverá a
tentação de a trocar uma qualquer convenção ou conveniência, mais vulgar e fácil,
menos dispendiosa e arriscada. Mas é preciso confiar e amar a pergunta que nos
nasceu, velar pacientemente pelo seu crescimento pois, como tão sabiamente nos
repete, a vida tem sempre razão.
Portanto, não nos agitemos
demasiado: renascer leva o seu tempo. A turbulência acabará, eventualmente, por
amainar, restando a sua face infinita, devolvendo-nos o olhar que um dia lançámos
para fora. Depois de atravessarmos a nossa solidão, seremos talvez capazes de
alcançar um amor mais humano, “o amor de
duas solidões que se protegem, delimitam e saúdam”.
Quem poderá dizer o que
daqui sairá? Ninguém, este é um caminho que tacteamos, sozinhos e desamparados.
“O futuro é um eixo fixo (…) mas nós
deslocamo-nos no espaço infinito”. Cada um por si. Conforta-me, no entanto,
saber que andou pelas imediações e que achou tranquilidade e ternura para falar
disso. A minha grande solidão levou-me até si; leitora ávida, raramente sonho
com referências literárias, mas há cerca de um ano, numa dessas noites eternas
que mastigam o corpo e a alma, uma voz visitou-me enquanto dormia,
recomendando-me que tornasse a ler as Elegias
a Duíno. No dia seguinte, obedeci de imediato ao ditado onírico e a minha
alma foi convalescendo, consolada pelas suas palavras.
Eternamente sua,
quarta-feira, 17 de outubro de 2012
Uma espiã na casa do amor
«Vestida de vermelho e prata,
ela evocava os sons e imagens dos carros de bombeiros, quando rasgavam as ruas
de Nova York, inquietando o coração com o violento gongo da catástrofe; toda
vestida de vermelho e prata, o impetuoso vermelho e prata cortando caminho
através da carne. Na primeira vez que ele olhou para ela, sentiu: Tudo se vai
incendiar!
Do vermelho e prata e do longo
grito de alarme ao poeta que sobrevive em todo o ser humano, enquanto a criança
nele sobrevive; a esse poeta, ela atirou uma inesperada escada no meio da
cidade e ordenou: “Suba!”
(…)
Ela era compelida por uma febre
confessional que a forçava a levantar um canto do véu, e então amedrontava-se
quando alguém ouvia muito atentamente. Repetidas vezes, pegava numa esponja
gigantesca e apagava tudo o que havia dito pela negação absoluta, como se essa
confusão fosse em si um manto de protecção.»
Um livro mediano. Nada de especial: nem facadas no peito nem picos no pipi.
domingo, 14 de outubro de 2012
domingo, 7 de outubro de 2012
Afirma Pereira
"Nesse momento, Pereira lembrou-se de uma frase que o seu tio, que era um literato falhado, lhe repetia sempre, e pronunciou-a. Disse: a filosofia parece ocupar-se só da verdade, mas talvez diga só fantasias, e a literatura parece ocupar-se só de fantasias, mas talvez diga a verdade."
"E quando o doutor Cardoso passou a porta e desapareceu na rua sentiu-se só, verdadeiramente só, e pensou que quando estamos verdadeiramente sós é o momento de nos medirmos com o nosso eu hegemónico que procura impor-se à corte das almas. Mas apesar deste pensamento não se sentiu apaziguado, pelo contrário, sentiu uma grande saudade, não saberia dizer de quê, mas era uma grande saudade de uma vida passada e de uma vida futura, afirma Pereira."
sábado, 6 de outubro de 2012
"Prive o homem comum da sua mentira vital e ter‑lhe‑á roubado a felicidade."
“Elias
Rukla lembrava-se que tivera uma grande decepção quando lera A Insustentável
Leveza do Ser de Milan Kundera. Não com o livro, que era muito bom, até mesmo
uma obra-prima, mas com o título. O título estava errado. O livro não trata da
insustentável leveza do ser, mas de algo distinto. Porque a insustentável
leveza do ser não constitui uma condição existencial da vida humana, mas uma
condição social para um determinado estrato do mundo ocidental durante a última
metade do século XX. A insustentável leveza do ser é algo que afecta as pessoas
pensantes e sedentas de conhecimento da Escola Secundária de Fagerborg na
capital norueguesa nas últimas duas décadas deste nosso século. E que lhes
usurpa a capacidade de dizer alguma coisa a outras pessoas. De falar. A conversa
tinha estancado. As pessoas do mesmo estrato social de Elias Rukla já não
conversavam. Só de um modo fugaz e superficial. Quase só se limitavam a
encolher os ombros entre elas. Talvez ante os demais, numa espécie de
cumplicidade irónica (…) Ah, quanto ansiava que alguém conseguisse sair desse
mutismo e dissesse algo, ainda
que fosse apenas para referir que a vida tinha mais coisas para oferecer. Na realidade,
o que procurava era que alguém fizesse uma alusão nesse sentido, mesmo que
fosse em forma de código, por exemplo, se alguém durante um desses rápidos
intercâmbios de comentários tivesse levantado de repente o dedo indicador em
direcção ao céu, assinalando desse modo que na nossa parte do mundo existe uma
longa tradição religiosa baseada no cristianismo, e que por isso se costuma
apontar lá para cima, com o indicador esticado para o céu, onde, segundo a tradição,
se encontram Deus e os seus anjos, e também os bem-aventurados, Elias Rukla tê-lo-ia
abraçado, independentemente do quão irónico esse indicador pudesse parecer,
tanto para o que teve esse impulso como para os demais (…). Ah, estava
verdadeiramente esfomeado, e sentia que o seu cérebro se encontrava
sobreaquecido, como se estivesse a incubar uma meningite espiritual que podia
brotar a qualquer momento, pelo que não se podia considerar inteiramente
responsável pelos seus actos, era como se esperasse um ataque, como se
encontrasse um vómito tremendo e libertador à sua frente, no futuro imediato,
mas que não chegava nunca. Procurava nos seus colegas algo que pudesse
expressar essa outra coisa, algo que
tornasse possível uma aproximação. Examinava de lanterna na mão cada palavra
que pronunciavam, disposto a interpretar tudo no melhor dos sentidos e a
socorrer imediatamente a pessoa em questão mal se pronunciassem as possíveis
palavras crípticas, a fim de mostrar a sua gratidão, e também para falar com
ela, muito provavelmente com um sussurro rouco na primeira investida, presumia.”
É exactamente por isto que fico
em casa num sábado à noite, acompanhada por gelado de menta e chocolate e um
livro. A comunicação parece ter-se tornado uma utopia e não tenho nem pudor nem dignidade para participar neste mutismo
palrador. E ainda bem.
quarta-feira, 3 de outubro de 2012
Amor em tempos de austeridade
Os tempos estão para paixões
nómadas. Todas as noites um livro diferente na cama. Sem arroubos nem
consequências de maior. Mas quer-se sempre algo de maior, algo que permita
viver menos mal e mais poeticamente, nem que seja tão só um livro belo e
terrível a partilhar o desalinho do sono.
Cansada de mastigar
novidades estéreis, fui reler a minha história de amor predilecta: O Golpe de
Misericórdia de Marguerite Yourcenar.
A narrativa compacta
apresenta-se sob a forma de uma confissão, com todos os quid pro quos
implicados. Um mercenário ferido, que diz jamais se ter implicado numa causa
pessoal, faz face ao seu passado num esforço de honestidade pontuado por
lapsos, esquecimentos e mentiras.
Conta afinal da única guerra
pessoal que travou – o seu primeiro encontro com o amor, protegido pela guerra
civil de 1914 na imaginária localidade de Kratovicé. Ele é o vivo que restou e
não esqueceu, apesar da sua couraça de indiferença.
É nesse cenário bélico que duas eróticas ocidentais poderosas se defrontam em campo aberto, numa
atmosfera asfixiada – a erótica estóica do homem austero que deseja mas não
ousa ceder por medo e orgulho e a erótica socialista da mulher que se entrega
ao amor como a uma doença nervosa. Ela, Sofia, avança, oferece-se ao amor sem
ponderação nem pudor, com “a encantadora graça dum fruto que se propõe
igualmente à boca e à faca”. A sua promessa de sacrifício não é no entanto uma
garantia de submissão; ela deseja o homem não como fim do seu desejo, mas como
meio para se dar de corpo e alma. Eric pressente isso mesmo, e assustado por tamanha generosidade, resiste, aperta-se em si e insiste na inércia
e no desprezo; “tinha reconhecido nela, ao primeiro golpe de vista, uma
natureza inalterável com a qual se podia concluir um pacto exactamente tão
perigoso e tão seguro como um elemento; pode-se confiar no fogo, desde que se
saiba que a sua lei é morrer ou queimar.” Eis a dança mais antiga dos pares
amorosos: dar e recusar-se alternadamente até à apoteose.
Unidos por uma dor que não
faz concessões à piedade, ele testa o voluntarismo sacrificial da oferenda
feminina, ela mantém a sua promessa com desespero; assim se estabelece entre
ambos uma intimidade tácita de carrasco e vítima, com dias do caçador e dias da
caça. Nas palavras da autora: “Para além da anedota da rapariga que se oferece
e do rapaz que se recusa, o tema central de O Golpe de Misericórdia é, antes de
tudo, esta comunidade de espécie, esta solidariedade de destino entre três
seres submetidos às mesmas privações e aos mesmos perigos. Eric e Sofia,
sobretudo, parecem-se um com o outro por esta intransigência e pelo seu gosto
apaixonado de irem até ao extremo de si próprios.”
Sofia jamais considera
retirar a sua promessa de amor, escolhe activamente arder e acaba morta. Eric
escolhe renunciar e sai queimado. “O primeiro tiro não fez senão esfacelar uma
parte do rosto, o que me impedirá para sempre de saber qual a expressão que
Sofia teria adoptado na morte. Ao segundo disparo, tudo ficou consumado.
Pensei, primeiro, que, ao pedir-me que me incumbisse deste serviço, ela julgara
dar-me uma derradeira prova de amor, e a mais definitiva de todas. Compreendi,
depois, que apenas quisera vingar-se e legar-me remorsos. Tinha calculado com
justeza: sinto-os por vezes. Com mulheres destas, cai-se sempre no laço.” “On est
toujours pris au piège avec ces femmes. ”
No prefácio à edição
portuguesa, Augustina Bessa-Luís classifica este livro como uma “espécie de
educação sentimental para veteranos”. Eu dava o dedo mindinho para o ter
escrito – a simplicidade aparente de cada diálogo, a tragédia de um cenário
depurado, a nobreza das personagens e a dose exacta de ambiguidade em cada
palavra. Como não o posso fazer, pego no dedo mindinho e vou à biblioteca
requisitar o livro que lamentavelmente está esgotado por cá. Sim, sou dessas
que dormem com amores emprestados.
Subscrever:
Mensagens (Atom)