Há já algum tempo que sem
explicação conhecida me sentia atraída pelo livro A Boneca de Kokoschka de Afonso Cruz, mas a sua leitura ia sendo
adiada pela urgência de clássicos. O recente prémio da União Europeia para a
Literatura materializou esta vontade, sem que eu entendesse bem porquê, dado
que não acredito nem em prémios nem na referida união.
Foi o primeiro livro do autor
que li. Proporcionou-me um fim-de-semana muito agradável. Os estranhos nomes e
o cenário de uma Dresden bombardeada recordaram-me de imediato um outro
universo de escrita: Gonçalo M. Tavares. E embora a minha intuição inicial se
viesse a revelar adequada, entre ambos os autores temos apenas essa
coincidência de tema, a saber, o eterno e irrespondível tema do Mal. Com a
grande diferença essencial, que a escrita de Afonso Cruz não se deixa
contaminar pelo objecto de investigação, permanecendo fiel a uma afectividade
compassiva, que um olhar mais leviano poderá tomar por ingenuidade.
“Sr.
Vogel, se não estiver contente com o rumo das coisas – disse Isaac -, só tem de
fazer uma coisa muito simples: juntar os dois pés, concentrar-se e dar um
pequeno pulo na vertical. Quando os seus pés tocarem o chão outra vez, a
realidade do chão, quando deixarem esse momento celeste que é o salto, quando
tocarem o chão, dizia eu, provocará um pequeno tremor que abalará a direcção do
universo. Se ia em determinado sentido, sentido que, por certo, não lhe agrada,
basta pular para ver mudar o rumo. Mas porque o tremor é muito pequeno, os
efeitos não se notam de imediato, no entanto, se pudesse olhar para o futuro,
veria como foi diferente daqueles futuros em que não pulou. A vida é feita
destes saltinhos.”
A
Boneca de Kokoschka não desalinha órgãos ou ideias nem oferece
epifanias. É mais uma aproximação a uma ficção borgesiana, em que mais uma vez
se replica o eterno debate entre a vida e a ficção. O mais das vezes é a ficção
a insistir em suplementar a vida, com um editor a encomendar biografias
imaginárias e até obras desses biografados inventados, um homem com reticências
cranianas, uma livraria chamada Humilhados & Ofendidos, cartas de amor que
colocam no mesmo plano o eterno e a secção de enlatados do supermercado, um
livro dentro do livro, um coleccionador de borboletas excêntrico que tenta pesar
o Mal e uma prostituta que faz descontos a homens de esquerda. Em ocasiões mais
raras, é a vida que se liberta da sua modorra e explode numa riqueza que ultrapassa
qualquer possibilidade de imaginação.
“
– (…) Não existe mentira na literatura, na ficção, e, digo-lhe mais, não existe
verdade na vida real. Se perceber isto muito bem, perceberá muito mais coisas.
Quer mais brandy?”
Repete a receita mais arcaica
para derrotar o Mal: a sua nomeação pela narração. Repete que sem os outros não
somos nada e que apenas a sobreposição de vários ângulos ao mesmo tempo, mesmo
os mais inimagináveis, dissipa as grades com que a alma escolheu engaiolar-se,
até porque o grande inimigo está dentro de nós, neste corpo que alimentamos e
vestimos.
Centra toda a sua mensagem
numa apologia banal do amor. “Lutamos
então contra a maior força do cosmos, contra aquilo que o caracteriza, contra
aquilo que ele faz: expandir-se. O universo expande-se, mesmo nos momentos de
ócio. Isso quer dizer que separa tudo, faz com que todas as coisas se afastem,
se dissolvam. O amor vai juntando as peças que pode – como um velho reformado a
jogar dominó – e o universo está aqui para baralhar tudo outra vez.” Banal
porque a a história da nossa cultura é rica nestas chamadas de atenção sobre o
poder aglutinador de Eros, que remontam aos seus inícios com Empédocles e Platão,
entre outros.
Um aviso reiteradamente afirmado e jamais concretizado que justifica a insistência. Por isso, repetir
nunca é demais. E Afonso Cruz fá-lo com imensa criatividade, humor e erudição e
do que andamos precisados, meus caros, é disto mesmo, desta amálgama de humor e
ternura para renovar optimismos e esperanças. Eu, por mim aceito o repto e
concluo que não vale a pena tentar enganar-me: não consigo não ser alegre. Temos
mais um livro para integrar a tão reduzida lista de uppers, embora seja um upper light, porque não tem aquela grande Beleza que dói de tão bela. Mas merece o prémio e mereceu as minhas duas noites.
“Adele
Varga saiu do escritório de Filip Marlov com uma espécie de raiva. Não sabia
contra quem a deveria dirigir, mas sentia-se magoada pela maneira como o
universo trata os nossos afectos. Entrou no bar mais próximo e pediu um Manhattan.
Nessa altura, enquanto bebia, apareceu um homem ao seu lado. Conversaram sobre
música porque ele era músico e, no final da noite, apaixonaram-se para sempre. E
ficaram assim, nesse estado tão pouco natural, para o resto da sua eternidade:
a lutar contra o universo. Ao fundo, ouvia-se uma música de Django Reinhardt: Tears.”
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