quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Amor em tempos de austeridade



Os tempos estão para paixões nómadas. Todas as noites um livro diferente na cama. Sem arroubos nem consequências de maior. Mas quer-se sempre algo de maior, algo que permita viver menos mal e mais poeticamente, nem que seja tão só um livro belo e terrível a partilhar o desalinho do sono.

Cansada de mastigar novidades estéreis, fui reler a minha história de amor predilecta: O Golpe de Misericórdia de Marguerite Yourcenar.

A narrativa compacta apresenta-se sob a forma de uma confissão, com todos os quid pro quos implicados. Um mercenário ferido, que diz jamais se ter implicado numa causa pessoal, faz face ao seu passado num esforço de honestidade pontuado por lapsos, esquecimentos e mentiras.

Conta afinal da única guerra pessoal que travou – o seu primeiro encontro com o amor, protegido pela guerra civil de 1914 na imaginária localidade de Kratovicé. Ele é o vivo que restou e não esqueceu, apesar da sua couraça de indiferença.

É nesse cenário bélico que duas eróticas ocidentais poderosas se defrontam em campo aberto, numa atmosfera asfixiada – a erótica estóica do homem austero que deseja mas não ousa ceder por medo e orgulho e a erótica socialista da mulher que se entrega ao amor como a uma doença nervosa. Ela, Sofia, avança, oferece-se ao amor sem ponderação nem pudor, com “a encantadora graça dum fruto que se propõe igualmente à boca e à faca”. A sua promessa de sacrifício não é no entanto uma garantia de submissão; ela deseja o homem não como fim do seu desejo, mas como meio para se dar de corpo e alma. Eric pressente isso mesmo, e assustado  por tamanha generosidade, resiste, aperta-se em si e insiste na inércia e no desprezo; “tinha reconhecido nela, ao primeiro golpe de vista, uma natureza inalterável com a qual se podia concluir um pacto exactamente tão perigoso e tão seguro como um elemento; pode-se confiar no fogo, desde que se saiba que a sua lei é morrer ou queimar.” Eis a dança mais antiga dos pares amorosos: dar e recusar-se alternadamente até à apoteose.

Unidos por uma dor que não faz concessões à piedade, ele testa o voluntarismo sacrificial da oferenda feminina, ela mantém a sua promessa com desespero; assim se estabelece entre ambos uma intimidade tácita de carrasco e vítima, com dias do caçador e dias da caça. Nas palavras da autora: “Para além da anedota da rapariga que se oferece e do rapaz que se recusa, o tema central de O Golpe de Misericórdia é, antes de tudo, esta comunidade de espécie, esta solidariedade de destino entre três seres submetidos às mesmas privações e aos mesmos perigos. Eric e Sofia, sobretudo, parecem-se um com o outro por esta intransigência e pelo seu gosto apaixonado de irem até ao extremo de si próprios.

Sofia jamais considera retirar a sua promessa de amor, escolhe activamente arder e acaba morta. Eric escolhe renunciar e sai queimado. “O primeiro tiro não fez senão esfacelar uma parte do rosto, o que me impedirá para sempre de saber qual a expressão que Sofia teria adoptado na morte. Ao segundo disparo, tudo ficou consumado. Pensei, primeiro, que, ao pedir-me que me incumbisse deste serviço, ela julgara dar-me uma derradeira prova de amor, e a mais definitiva de todas. Compreendi, depois, que apenas quisera vingar-se e legar-me remorsos. Tinha calculado com justeza: sinto-os por vezes. Com mulheres destas, cai-se sempre no laço.” “On est toujours pris au piège avec ces femmes. ”

No prefácio à edição portuguesa, Augustina Bessa-Luís classifica este livro como uma “espécie de educação sentimental para veteranos”. Eu dava o dedo mindinho para o ter escrito – a simplicidade aparente de cada diálogo, a tragédia de um cenário depurado, a nobreza das personagens e a dose exacta de ambiguidade em cada palavra. Como não o posso fazer, pego no dedo mindinho e vou à biblioteca requisitar o livro que lamentavelmente está esgotado por cá. Sim, sou dessas que dormem com amores emprestados.

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