Os tempos estão para paixões
nómadas. Todas as noites um livro diferente na cama. Sem arroubos nem
consequências de maior. Mas quer-se sempre algo de maior, algo que permita
viver menos mal e mais poeticamente, nem que seja tão só um livro belo e
terrível a partilhar o desalinho do sono.
Cansada de mastigar
novidades estéreis, fui reler a minha história de amor predilecta: O Golpe de
Misericórdia de Marguerite Yourcenar.
A narrativa compacta
apresenta-se sob a forma de uma confissão, com todos os quid pro quos
implicados. Um mercenário ferido, que diz jamais se ter implicado numa causa
pessoal, faz face ao seu passado num esforço de honestidade pontuado por
lapsos, esquecimentos e mentiras.
Conta afinal da única guerra
pessoal que travou – o seu primeiro encontro com o amor, protegido pela guerra
civil de 1914 na imaginária localidade de Kratovicé. Ele é o vivo que restou e
não esqueceu, apesar da sua couraça de indiferença.
É nesse cenário bélico que duas eróticas ocidentais poderosas se defrontam em campo aberto, numa
atmosfera asfixiada – a erótica estóica do homem austero que deseja mas não
ousa ceder por medo e orgulho e a erótica socialista da mulher que se entrega
ao amor como a uma doença nervosa. Ela, Sofia, avança, oferece-se ao amor sem
ponderação nem pudor, com “a encantadora graça dum fruto que se propõe
igualmente à boca e à faca”. A sua promessa de sacrifício não é no entanto uma
garantia de submissão; ela deseja o homem não como fim do seu desejo, mas como
meio para se dar de corpo e alma. Eric pressente isso mesmo, e assustado por tamanha generosidade, resiste, aperta-se em si e insiste na inércia
e no desprezo; “tinha reconhecido nela, ao primeiro golpe de vista, uma
natureza inalterável com a qual se podia concluir um pacto exactamente tão
perigoso e tão seguro como um elemento; pode-se confiar no fogo, desde que se
saiba que a sua lei é morrer ou queimar.” Eis a dança mais antiga dos pares
amorosos: dar e recusar-se alternadamente até à apoteose.
Unidos por uma dor que não
faz concessões à piedade, ele testa o voluntarismo sacrificial da oferenda
feminina, ela mantém a sua promessa com desespero; assim se estabelece entre
ambos uma intimidade tácita de carrasco e vítima, com dias do caçador e dias da
caça. Nas palavras da autora: “Para além da anedota da rapariga que se oferece
e do rapaz que se recusa, o tema central de O Golpe de Misericórdia é, antes de
tudo, esta comunidade de espécie, esta solidariedade de destino entre três
seres submetidos às mesmas privações e aos mesmos perigos. Eric e Sofia,
sobretudo, parecem-se um com o outro por esta intransigência e pelo seu gosto
apaixonado de irem até ao extremo de si próprios.”
Sofia jamais considera
retirar a sua promessa de amor, escolhe activamente arder e acaba morta. Eric
escolhe renunciar e sai queimado. “O primeiro tiro não fez senão esfacelar uma
parte do rosto, o que me impedirá para sempre de saber qual a expressão que
Sofia teria adoptado na morte. Ao segundo disparo, tudo ficou consumado.
Pensei, primeiro, que, ao pedir-me que me incumbisse deste serviço, ela julgara
dar-me uma derradeira prova de amor, e a mais definitiva de todas. Compreendi,
depois, que apenas quisera vingar-se e legar-me remorsos. Tinha calculado com
justeza: sinto-os por vezes. Com mulheres destas, cai-se sempre no laço.” “On est
toujours pris au piège avec ces femmes. ”
No prefácio à edição
portuguesa, Augustina Bessa-Luís classifica este livro como uma “espécie de
educação sentimental para veteranos”. Eu dava o dedo mindinho para o ter
escrito – a simplicidade aparente de cada diálogo, a tragédia de um cenário
depurado, a nobreza das personagens e a dose exacta de ambiguidade em cada
palavra. Como não o posso fazer, pego no dedo mindinho e vou à biblioteca
requisitar o livro que lamentavelmente está esgotado por cá. Sim, sou dessas
que dormem com amores emprestados.
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