“Elias
Rukla lembrava-se que tivera uma grande decepção quando lera A Insustentável
Leveza do Ser de Milan Kundera. Não com o livro, que era muito bom, até mesmo
uma obra-prima, mas com o título. O título estava errado. O livro não trata da
insustentável leveza do ser, mas de algo distinto. Porque a insustentável
leveza do ser não constitui uma condição existencial da vida humana, mas uma
condição social para um determinado estrato do mundo ocidental durante a última
metade do século XX. A insustentável leveza do ser é algo que afecta as pessoas
pensantes e sedentas de conhecimento da Escola Secundária de Fagerborg na
capital norueguesa nas últimas duas décadas deste nosso século. E que lhes
usurpa a capacidade de dizer alguma coisa a outras pessoas. De falar. A conversa
tinha estancado. As pessoas do mesmo estrato social de Elias Rukla já não
conversavam. Só de um modo fugaz e superficial. Quase só se limitavam a
encolher os ombros entre elas. Talvez ante os demais, numa espécie de
cumplicidade irónica (…) Ah, quanto ansiava que alguém conseguisse sair desse
mutismo e dissesse algo, ainda
que fosse apenas para referir que a vida tinha mais coisas para oferecer. Na realidade,
o que procurava era que alguém fizesse uma alusão nesse sentido, mesmo que
fosse em forma de código, por exemplo, se alguém durante um desses rápidos
intercâmbios de comentários tivesse levantado de repente o dedo indicador em
direcção ao céu, assinalando desse modo que na nossa parte do mundo existe uma
longa tradição religiosa baseada no cristianismo, e que por isso se costuma
apontar lá para cima, com o indicador esticado para o céu, onde, segundo a tradição,
se encontram Deus e os seus anjos, e também os bem-aventurados, Elias Rukla tê-lo-ia
abraçado, independentemente do quão irónico esse indicador pudesse parecer,
tanto para o que teve esse impulso como para os demais (…). Ah, estava
verdadeiramente esfomeado, e sentia que o seu cérebro se encontrava
sobreaquecido, como se estivesse a incubar uma meningite espiritual que podia
brotar a qualquer momento, pelo que não se podia considerar inteiramente
responsável pelos seus actos, era como se esperasse um ataque, como se
encontrasse um vómito tremendo e libertador à sua frente, no futuro imediato,
mas que não chegava nunca. Procurava nos seus colegas algo que pudesse
expressar essa outra coisa, algo que
tornasse possível uma aproximação. Examinava de lanterna na mão cada palavra
que pronunciavam, disposto a interpretar tudo no melhor dos sentidos e a
socorrer imediatamente a pessoa em questão mal se pronunciassem as possíveis
palavras crípticas, a fim de mostrar a sua gratidão, e também para falar com
ela, muito provavelmente com um sussurro rouco na primeira investida, presumia.”
É exactamente por isto que fico
em casa num sábado à noite, acompanhada por gelado de menta e chocolate e um
livro. A comunicação parece ter-se tornado uma utopia e não tenho nem pudor nem dignidade para participar neste mutismo
palrador. E ainda bem.
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