domingo, 8 de novembro de 2015

albertine sarrazin



Querida Albertine,

Como não te amar na tua insubmissão, na tua liberdade livre ainda que manca?

Sigo-te no teu voo para lá de todos cárceres da alma e dos que nos querem sobrecarregar com o peso do seu amor. Ah, «acreditaste que me podias transplantar sentimentos, coser-me um pedaço do teu coração…». Aterras nove metros abaixo, no duro solo da liberdade. Partes o astrágalo e estás à mercê da bondade dos outros, tu que achas que tudo te é devido mas gostas de ser tu a servir-te.
«Quando a carcaça se liberta, o espírito, que até então era a única escapatória, torna-se, pelo contrário, escravo dos mecanismos. A humildade que fingíamos torna-se real.» A liberdade é árdua, pequena, tão cheia de artimanhas e prisões agridoces. Mas tu és dura na queda, recusas obstinadamente qualquer amarra ou gratidão. Só que desta vez a queda desdobra-se em duas e encontras o mais doce dos embates: o Amor.

Acabar esta garrafa e este maço, o resto não importa. Recuperei a esperança.
(…)
Enrosco-me em torno da chama estática que o álcool acendeu em mim, deixo o meu pé pendurado ao lado da roda, e agarro-me, com os dois braços, aos ombros de Julien.
É o início de um novo século.

É o início de um novo século: nem mais. A tua traquinice namora com as palavras, acerta-lhes no âmago. «Eu tinha-me evadido na altura da Páscoa, e nada ressuscitava, nada morria nem vivia.» A crueldade, tão essencial à tua sobrevivência, encontra a ternura. Tens ciúmes do sono do teu homem, do homem que te fez mulher, de corpo e coração.

Ele intimida-me como uma coisa sagrada ou proibida. É ele, Anne, é o teu amor, mas ao mesmo tempo um desses tipos que todas as manhãs saem da prisão ou que passam diante da porta do bar. Será assim tão natural, tão necessário amar precisamente este» O que é, de onde veio, essa coisa que passa e crepita do seu corpo para o meu?

Mas tu não te conformas, não foste feita para esse papel de mulherzinha que espera. Por isso, assim que podes andar, regressas à rua, à vida. Lá vais tu a andar, cambaleante, pelas ruas de Paris, à caça de clientes, e eu fico a admirar-te a ligeireza dos passos. Miúda, gosto do teu pensamento independente, do modo como retribuis a indiferença a que alguns te votam. «Não por desprezo, mas porque não sei forçar os ouvidos e os corações.»

Esta noite eu estava particularmente quezilenta. Recusei comer nas toalhas de papel do restaurante, disse que os lençóis estavam sujos e a água da torneira morna… Deitados, à distância de dez centímetros um do outro, evitávamo-nos. Jean foge das minhas palavras e eu das suas mãos. Ele gosta de mim e isso aborrece-me, pois só gosto da cama dele. Mas quanto mais implico, mais ele se cala, mais ele se desdobra em paciência e gentileza… E eu sinto-me envergonhada. Para arranjar coragem, escorropicho a garrafa que, desde que venho aqui, continua esquecida em cima do cosy obsessivamente limpo e arrumado, e decido ser simpática. De olhos fechados, aceito Jean, reconheço a sua ternura e o seu saber, imagino a felicidade que ele me deveria proporcionar e ao lado da qual passo, com uma expressão compungida no rosto. Ai, Julien, Julien…

(…)

Sejamos putas e digamos: «Querido…» O tipo aperta-me contra o seu peito magro e, com todo o seu sistema piloso eriçado e o nariz fremente, diz que me ama, que não sou uma rameira como as outras, que aquilo não é trabalho para mim e que ele fará tudo para me tirar daquela vida.
(…)
Ontem Jean, hoje este gajo! Que chatos que eles são com aqueles “amo-te”, como estão longe do amor!

Vai, Albertine, anda! Cicatrizada, de andar manco, curada de tudo, excepto do amor…


História de um amor


«Mas nada disto consegue dar conta do laço invisível pelo qual desde o início nos sentimos unidos. Podíamos até ser profundamente diferentes, que eu não sentia menos que qualquer coisa de fundamental nos era comum, uma espécie de ferida originária – há pouco eu falava de “experiência fundadora”: a experiência da insegurança. A natureza desta não era a mesma em ti e em mim. Pouco importa: para ti e para mim ela significava que não tínhamos no mundo um lugar assegurado. Teríamos apenas aquele que construíssemos.

(…)

Desde a tua primeira infância que viveste na insegurança (…). Estavas condenada a ser forte porque todo o teu universo era precário. Sempre te senti a força e, ao mesmo tempo, a fragilidade subjacente. Eu gostava da tua fragilidade superada, admirava a tua força frágil. Éramos ambos filhos da precariedade e do conflito. Éramos feitos para nos protegermos mutuamente contra uma coisa e outra. Tínhamos necessidade de criar juntos, um pelo outro, o lugar no mundo que nos foi originariamente negado. Mas era necessário, para isso, que o nosso amor fosse também um pacto para a vida.

(…)


Vigio a tua respiração, a minha mão aflora-te. Cada um de nós gostaria de não sobreviver à morte do outro. Muitas vezes dissemos um ao outro que, no caso impossível de termos uma segunda vida, quereríamos passá-la juntos.»


«É a angústia, sabe? Esta fodida angústia que arrasta isto tudo…»


«Ao abrir a porta da gerência, envidraçada com vidro japonês, Erdosain quis retroceder; compreendeu que estava perdido, mas já era tarde demais.» Assim começa Os Sete Loucos de Roberto Arlt, um autor que me vinha recomendado pelo Cortázar, desde a minha última viagem pelas livrarias madrilenas.

Não é uma leitura divertida, muito pelo contrário. Apesar da verve quase folhetinesca, a narrativa jamais abandona a sua curva descendente, transbordando de angústia por todos os escaninhos: «A esta atmosfera de sonho e inquietude que o fazia atravessar os dias como um sonâmbulo, Erdosain chamara “a zona da angústia”.»

Os acontecimentos complicavam-se… e ele, entretanto, quem era no meio daquelas engrenagens que o iam cercando, adiantando-se cada vez mais na sua vida, submergindo-o num lodaçal que o exasperava? Além disso, havia aquilo… a incapacidade de pensar, de pensar através de um raciocínio de linhas nítidas, como são as jogadas de xadrez e uma incoerência mental que o enfastiava contra todos.
(…)
Tinha agora a sensação de que a sua alma se tinha apartado para sempre de todo o afecto terrestre. E a sua angústia era a de um homem que traz na sua consciência uma jaula sinistra onde, entre espinhas de peixe, bocejam, tingidos de sangue, elásticos tigres, afilando o olho para preparar o grande salto.

O livro está pejado de boutades geniais - como por exemplo, «Aquilo a que chamamos loucura é a falta de hábito do pensamento dos outros» -, impossível citar todas. Mas o magma essencial localiza-se nas muitas vidas humilhadas e ofendidas na sua aspiração mais vital. Todas as personagens falam de como esta vida não é o que devia ser e de como podia e devia ser muito mais: «Porque razão a felicidade humana ocupa tão pouco espaço?»

- Deve ser triste.
- Sim, é muito triste ver os outros felizes e ver que não compreendem que alguém será um desgraçado toda a vida. Lembro-me de, à hora da sesta, entrar no meu quarto e, em vez de tratar da roupa, pensar: Serei criada toda a vida? Já não me cansava o trabalho, mas sim os meus pensamentos. Nunca reparou como são obstinados, os pensamentos tristes?
(…)
- Você teria coragem de se matar?
- Não é o que você diz. Já não há coragem nem cobardia. Vem do fundo de mim a sensação de que o suicídio é como ir arrancar um dente. Quando penso assim, tudo em mim descansa. É certo que eu tinha pensado noutras viagens e noutras paragens, noutra vida. Há algo em mim que deseja tudo o que é bonito e delicado. Muitas vezes pensei que sim… suponhamos esses quinze mil pesos que vou levantar amanhã… podia ir para as Filipinas… para o Equador… para recomeçar a minha vida, casar-me com uma donzela milionária e delicada… estaríamos deitados à hora da sesta em espreguiçadeiras debaixo de coqueiros, e os negros oferecer-nos-iam laranjas descascadas. E eu olharia tristemente para o mar… Sabe, esta certeza que diz que para onde quer que vá olharei tristemente para o mar… esta certeza de que nunca mais serei feliz… no início enlouqueceu-me… e agora resignei-me…

«Já não há coragem nem cobardia.» Apenas uma angústia estranhamente familiar. No final, nem crime nem castigo. Nenhuma redenção, apenas simulacros. Ontem fui assistir a uma «homenagem» ao Vítor Silva Tavares, que dizia que uma obra de arte para ser obra de arte tem de ter sobretudo inferno. Pois aqui, sobeja.

sábado, 24 de outubro de 2015

mais um Bildungsroman



De repente ele notou – e era como se fosse pela primeira vez – quanto o céu ficava longe.
Foi como um sobressalto. Exactamente por cima dele reluzia entre as nuvens uma nesga de azul, indizivelmente profunda.
(…)
– O infinito! – Törless conhecia o termo das aulas de matemática. Jamais imaginara algo de especial a esse respeito. O termo voltava sempre: algo que alguém um dia inventara e desde então fora possível fazer cálculos com ele, tão precisamente como com qualquer coisa sólida. Era exactamente o que valia no cálculo; e Törless jamais fizera alguma tentativa de entendê-lo para além disso.
Agora, porém, varava-o como um raio a compreensão de que essa palavra continha algo terrivelmente inquietante. Parecia-lhe um conceito domesticado, com que fizera diariamente pequenas artes, mas que de repente se libertara. Algo que ultrapassava o entendimento, algo selvagem, aniquilador, adormecido pelo trabalho de algum inventor e que de repente despertara e se tornara novamente terrível. Ali, naquele céu, isso achava-se agora por cima dele, vivo e ameaçador, zombando sinistramente dele.
(…)
Törless ficou dominado pelo anseio louco de ver duplamente todas as coisas, pessoas e factos. Como se se prendesse, de um lado, à palavra inocente e esclarecedora fornecida por um inventor qualquer; e do outro lado, fossem muito estranhas, ameaçando libertar-se a qualquer momento.
(…)
A matemática deve estar certa; mas o que há com a minha cabeça e tudo o resto? Os outros não sentem isso? Como é que essas coisas acontecem dentro deles? Não acontece nada?

Os chamados romances de formação encontram sempre um eco interior em mim. Às vezes, penso que tive uma adolescência demasiado saudável, sob o signo do riso e do haxixe. As angústias existenciais que então me faltaram, sobram hoje. E são poucos os adultos disponíveis para pensar o sentido da vida, ou das palavras, tão somente. Marchar, marchar sempre! Talvez por isso, fosse o narrador um pouquinho menos interventivo e «sábio», e acho que teria gostado mais deste romance.

e no princípio era a imagem


“Esta reflexão está inteiramente habitada pela preocupação do espectador em que hoje nos tornámos, reféns assustados que, com demasiada frequência, consentem nas produções espectaculares que têm como único efeito o aniquilamento do espectador. Se o espectador nascente for o próprio homem, a morte do espectador será a morte da humanidade. É a barbárie que ameaça um mundo sem espectador.”

sympathy for the devil


O outono anuncia-se sempre como o tempo que inaugura as maiores aventuras literárias. Este ano, comecei pela leitura de Margarita e o Mestre, de Mikhail Bulgákov. E de imediato fui cativada pelos 3 primeiros capítulos, magistrais na sua escrita e na sua estranheza.

Sim, é preciso assinalar a primeira coisa estranha dessa horrível noite de Maio. Não apenas junto ao quiosque, mas em toda a alameda paralela à Rua Málaia Bronnaia, não se via uma única pessoa. A uma hora em que parecia que já não chegavam as forças nem para respirar, quando o Sol depois de ter abrasado Moscovo, se escondera no nevoeiro seco algures para lá da Sadovaia, não havia ninguém debaixo das tílias, ninguém sentado nos bancos. A alameda estava deserta.

A primeira impressão foi que me encontrava perante mais uma obra, que à semelhança de uma certa literatura russa do século XIX, está abismada com a morte de Deus e as suas implicações. Mas é impossível definir o livro por esse prisma e sobretudo inútil tentar encapsulá-lo num tema ou estilo. Como afirma Samuel Thomas, «o romance pulsa de maliciosa energia e invenção. Por vezes, uma dura sátira da vida soviética, uma alegoria religiosa da dimensão do Fausto, de Goethe, e uma indomável fantasia burlesca, é uma obra de riso e terror, de liberdade e servidão - um romance que explode as verdades oficiais com a força de um carnaval descontrolado».

Há por ali de tudo, e o humor mais afiado coabita com a tristeza mais séria. O livro cativa sobretudo pelos vários registos polifónicos, com a narrativa a alternar entre dois tempos, a Jerusalém antiga e a Moscovo dos anos 30, combinando múltiplos géneros e técnicas narrativas, como o romance histórico, o suspense, e os tópicos fantásticos, para criar um conjunto de personagens, todas delirantes - o séquito do Diaboe o gato Behemot, Margarita, o Mestre, o atormentado Pôncio Pilatos e o seu fiel cão, entre outros. É uma narrativa louca, carnavalesca, que permite a junção do amor mais romântico a uma forte crítica mordaz aos costumes e, em particular, à sociedade literária moscovita da época.

Ela trazia nas mãos umas flores amarelas abomináveis, inquietantes. Só o Diabo sabe como se chamam, mas não sei porquê, são as primeiras flores que aparecem em Moscovo. E aquelas flores sobressaíam muito nitidamente contra o seu casaco preto primaveril. Trazia flores amarelas! É uma cor funesta. (…) E o que me impressionou foi, não tanto a sua beleza, mas a invulgar solidão dos seus olhos, uma solidão nunca vista! (…) O amor surgiu à nossa frente, como um assassino que surge do nada num beco, e atacou-nos aos dois simultaneamente! Como um raio, como um punhal finlandês!

(…)

 - Bah! Mas esta é a casa dos escritores! Sabes, Behemot, tenho ouvido dizer muitas coisas boas e lisonjeiras acerca desta casa! Presta bem atenção a esta casa, meu amigo. É agradável pensar que debaixo daquele tecto se oculta e amadurece uma infinidade de talentos.
- Como ananases numa estufa – disse Behemot e, para melhor admirar a casa cor de creme com colunas, subiu para o muro de betão que sustentava o gradeamento de ferro fundido.
- Absolutamente exacto – concordou Koroviev com o seu companheiro inseparável. – E um delicioso pavor sobe-nos ao coração quando pensamos que naquela casa amadurece presentemente o futuro autor de um Dom Quixote, ou de um Fausto, ou diabos me levem, das futuras Almas Mortas! Hem?
- É assustador pensar nisso – confirmou Behemot.

A certo ponto, já a leitura vai avançada, as narrativas historicamente distantes começam a revelar as suas secretas passagens e suspeita-se que Bulgákov não faz mais do que transfigurar a sua biografia nesta obra descomunal. Parece-nos que os pavores estranhos do Mestre nos falam de uma censura mais dura e que a cobardia é de facto o mais terrível dos defeitos, como constata Pôncio Pilatos. Parece-nos que o voo de Margarita montada numa vassoura, primeiro sobre a cidade de Moscovo e depois sobre o infinito do espaço, nos fala de uma liberdade e ousadia capazes de redimirem, ainda que apenas literariamente, uma vida profundamente humilhada e ofendida. E em geral, Margarita Nikolaevna, permitir-me-ei a audácia de lhe aconselhar a nunca ter medo de nada. Isso seria uma insensatez.

No final, depois de várias peripécias, o escritor, o Mestre, e a sua amada são recompensados com o repouso eterno, e há uma passagem em especial que faz jus à epígrafe do Fausto de Goethe: - Mas há uma coisa com que tens de resignar-te – objectou Woland, e um sorriso irónico desenhou-se-lhe na boca. – Mal tu surgiste no telhado, cometeste logo um absurdo, e eu digo-te onde é que está esse absurdo: está no teu tom. Dizes as palavras como se não reconhecesses a existência das sombras e do mal. Não quererás ter a bondade de pensar nesta questão: de que serviria o teu bem se não existisse o mal, e que aspecto teria a terra se dela desaparecessem as sombras? Pois as sombras são produzidas pelos objectos e pelas pessoas. Aqui está a sombra da minha espada. Mas há também as sombras das árvores e de todos os seres vivos. Não quererás tu despir todo o globo terrestre, varrendo da sua superfície todas as árvores e tudo o que é vivo, por causa da tua fantasia de te deleitares com a luz pura? És um tolo.

E novamente, vida e literatura coincidem. Que eu saiba também aceitar as minhas sombras. Pois, afinal, o que importa é não ter medo. E «chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente: Gerente! Este leite está azedo!»

domingo, 11 de outubro de 2015

Là-bas


Já vi algumas peças de Tennesse Williams representadas mas nunca o tinha lido. A NOITE DA IGUANA E OUTRAS HISTÓRIAS foi o primeiro livro do autor que me calhou. São nove contos preciosos. As personagens mudam de identidade, mas qual loop viciado, repetem-se os marginais, os explorados e incompreendidos, entregues à pulsão sexual e assolados pela solidão e pelo desassossego existencial. Nenhuma revolução ou redenção lhes acontece mas apesar do estado de precariedade infinita, ou talvez por isso mesmo, estas vidas à deriva encontram também pontualmente alguma comunhão.

“Não viu a iguana. Teria sido um acto de Deus? Ou não seria mais razoável pensar que fora Mike, o belo cruel, desesperado Mike, quem libertara a iguana? Que importa? Que importa quem o fez, a iguana fora-se, embrenhara-se nas suas matas nativas. Oh, como era bom, como era gratificante, respirar agora! E estava grata também porque, de uma maneira igualmente misteriosa, a asfixiante corda da solidão também se quebrara naquela noite, naquela rocha árida, sobre aquelas águas murmurantes.

Ia dormir. Mas, mesmo antes de adormecer, lembrou-se e voltou a sentir o mesmo calor e a mesma humidade, agora arrefecendo mas ainda na carne do ventre como um beijo suave e tenaz. Os seus dedos aproximaram-se, timidamente. Pensava que se retirariam com repulsa: isso não aconteceu. Detinham-se aí e tocavam com curiosidade, embora com ligeira mágoa, é certo, mas durante algum tempo. Ah, Vida, pensou e quase sorriu a este estranho pensamento, enquanto a escuridão envolvia a leve luz da sua mente.”

sábado, 10 de outubro de 2015

Combustões espontâneas




Sempre que consigo furtar algum tempo aos dias úteis, gosto de visitar bibliotecas. Agrada-me sentir o silêncio solene que as habita, a claridade que se insinua pelas janelas e, sobretudo, a ideia de que algum livro inesperado ali me aguarda.
Lá dentro, dedico-me a uma espécie de jogo: vagueio pelas várias salas e percorre algumas estantes, enquanto espero que o apelo me alcance. Umas vezes acontece de modo mais demorado  mas, regra geral, o silêncio das bibliotecas permite escutar apelos quase inaudíveis.
Depois, é sair de lá, com o livro manuseado encostado ao peito como uma fome, e gozar todos os encantos dessa visitação sagrada.

“Sempre que se escreve, precisa-se de qualquer coisa para se poder escrever. Quer seja a solidão, uma árvore ou uma lixeira ou uma pessoa, há qualquer coisa em que se está fixado. Em última instância, quase sempre em si mesmo. Tudo o mais é disparate. Um cão procura também uma árvore ou a parede de uma casa quando mija. Quando se quer escrever, passa-se algo de semelhante ao que acontece quando se quer verter águas. Procura-se então qualquer coisa e geralmente a pessoa mija-se a si própria, porque isso é o mais natural.

(…)

Interessante é, no fundo, em toda a parte. Em toda a parte é possível ter impressões. Tudo depende de cada um. Se uma pessoa é potente ou não. É preciso nesse caso que o interior corresponda ao exterior e, sobretudo, uma pessoa apresenta-se sempre nua e quer permanentemente vestir-se com tudo o que escreve. Mas não serve de nada, quanto mais uma pessoa tenta vestir-se e cobrir-se e agasalhar-se e embrulhar-se, mais nua se apresenta. Mas, por outro lado, é também um prazer expor-se a isso e correr assim nu para a rua. E outra coisa não é o que acontece quando se publicam livros.

(…)

Para mim não com certeza absolutamente nada impossível no que eu queira escrever, não há com certeza. Não tenho pudor nenhum ou seja o que for, na verdade já não o tenho. Quando uma pessoa já não consegue trabalhar, tem de sair e puxar fogo a qualquer coisa. Primeiro faz-se isso sonambulamente e depois nós próprios nos admiramos de como isso foi possível.

Só o que quero é fazer ou ver ainda diversas coisas, quer dizer, nada de novo, porque de novo não há muito, mas olhar por toda a parte, isso é algo de que se gosta, até se ficar atordoado. Quando uma pessoa não quer, com frequência, esses muitos períodos que assim se vivem e se quer matar, o que provavelmente acontece a cada um… mas, apesar das dificuldades, isto vai sendo realmente cada vez mais interessante e também mais agradável.”

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Novo objecto de desejo: Maura Lopes Cançado


Estou de novo aqui, e isto é — Por que não dizer? Dói. Será por isto que venho?

Estou no Hospício, deus. E hospício é este branco sem fim, onde nos arrancam o coração a cada instante, trazem-no de volta, e o recebemos; trémulo, exangue — e sempre outro.


Hospício são as flores frias que se colam em nossas cabeças perdidas em escadarias de mármore antigo, subitamente futuro — como o que não se pode ainda compreender. São mãos longas levando-nos para não sei onde — paradas bruscas, corpos sacudidos se elevando incomensurá­veis: Hospício é não se sabe o quê, porque Hospício é deus.

Acho-me na Seção Tiüemont Fontes, Hospital Gustavo Riedel, Centro Psiquiátrico Nacional, Engenho de Dentro, Rio. Vim sozinha. O que me trouxe foi a necessidade de fugir para algum lugar, aparentemente fora do mundo. (Ou de —————— Era tão grave. Proteção? Mas aqui, onde não me parecem querer bem e sofri tanto?) ("Não me querer bem" talvez seja mi­nha maneira única de ser amada.) Havia lá fora grande incompreensão. Sobretudo pareceu-me estar sozinha. Isto faria rir a muitas pessoas: eu trabalhava no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, onde me cercavam de grande atenção e muito carinho. Reynaldo Jardim é o diretor e me queria bem deveras. Ó, o zelo de todos. O zelo de Reynaldo. Naturalmente, penso, por eu haver antes estado aqui, saindo para trabalhar lá. A curiosidade em torno de mim: " — Esta é Maura Lopes Cançado, a que escreveu No quadrado de Joanna? — O conto é realmente bom, mas pensar que a personagem dele é louca catatônica pas­sou a aborrecer-me (como as pessoas são estúpidas, ainda se pretendem ser gentis). Minha posição me marginalizava. As coisas simples não se ajustavam a nada em que eu pudesse tocar, sen­tir. Era a impressão.

Quanto tempo trabalhei no jornal? Reynaldo Jardim, Fer­reira Gullar, Assis Brasil, e tantos outros, meus protetores. Quase todos os bons intelectuais da nova geração. E de rir. Protetores no bom sentido, como diriam. Mas que bom sentido, se me fizerem sofrer tanto? Por que, como chegar a eles, sem desespe­ro? — E que ignoram o quanto me custa uma palavra simples, como fui sozinha desde a infância. E de amá-los — demais e inútil — passei a odiá-los: por não me compreenderem. Não saberão jamais o quanto podem fazer sofrer uma criatura tímida e necessitada como eu: porque sinto vergonha. Gullar pareceu can­sado de mim. Ainda vendo-o imoto e inacessível não consegui desprezá-lo. Minha necessidade de afirmação deixava-me agressiva, movia-me pela redação do jornal o dia todo sem sorrir. Minha timidez. Enquanto meu ser se enrijecia, voltava-me para mim mesma à espera de um milagre que me projetasse, os ou­tros me olhando atónitos (é ainda mais do que No quadrado de Joanna, é ainda mais). Nada acontecia a não ser eu, me repetindo dia a dia. Minha ignorância.

Destruí tudo agredindo Reynaldo Jardim. Foi uma briga feia. Briguei sozinha. Ele não ousaria ferir-me, pois tem sua própria maneira de demonstrar amor. Consegui escandalizar Carlos Heitor Cony, que já foi quase padre, é facilmente escandalizável. Além de julgar estar ferindo Reynaldo, ao falar coisas inverossímeis e degradantes a meu respeito. Algo em que pensar: se tem alguma afetividade por mim deve ter sofrido. Como me destruí.

Falei de mim tantas vilezas (já fiz isto com mamãe. Estou muito cansada). Telefonei antes de vir a dona Dalmatie, enfermeira minha amiga. Levou-me a doutor J., pedi-lhe que me aceitasse no hospital:

- Por favor, doutor J., não sei que fazer lá fora. Estou des­truída. Aceite-me no hospital. Briguei no jornal. Ele (surpreendente) pareceu compreender. Dona Dalmatie não estava de acordo:

- Tenho um sítio sossegado. Passe uns dias lá. Quanto ao emprego, daremos um jeito. Você tem péssima memória, hein, Maura? Não me conformo em vê-la de novo aqui.

- Tenho boa memória, sei o que me espera. Mas vim dis­posta a ficar. A senhora não pode entender. Lembra-se de que me disse outro dia que não saí daqui recuperada? Está tudo difícil.

Fomos as duas ao IP (Instituto de Psiquiatria), onde se fa­zem internações. Ela, de lá, foi para casa. Voltei sozinha para este hospital. Doutor J. já não estava mais. Mandaram-me para a Seção Cunha Lopes (não pertence a doutor J.) A guarda que me recebeu (monstro antediluviano), Cajé, me fez imediatamen­te trocar o vestido pelo uniforme do hospital. Enquanto trocava de roupa, recebia dela as intimidações:

- Não banque a sabida nem valentona. Pensa que por ser bonita vale mais do que as outras? Saiba lidar conosco (guardas), que se dará bem. Queixas ao médico não adiantam. Vocês são doentes mesmo. Compreendeu?" Claro que compreendi, Cajé. Estou aprendendo há três anos.

Depois do jantar deram-me um quarto e dormi sozinha até o dia seguinte. Estava exausta. De manhã chovia. Puseram-me no pátio junto com as outras, percebi que nenhuma funcionária se dirigia a mim. Ah, não: dona Aída se dirigiu, dando-me um empurrão, à hora do café: " — Entre na fila. Que está esperando? Quer que te demos café na boca?". Entrei na tal fila, ainda muito cansada para revidar a agressão (das outras vezes em que estive aqui esta fila não existia).

Depois do café fui para o pátio. Ou, fui mandada para o pátio. Ainda chovia muito. Parecia-me um sonho: àquelas mu­lheres encolhidas de frio, descalças, fantásticas. Eu nem sequer pensava. Via, como se nada em mim fosse mais que os olhos, recomeçando num pesadelo (voltei, meu deus, voltei). Durante o almoço veio chamar-me uma guarda:

— O Diretor quer falar-lhe". Devia ficar estupefata (por motivos óbvios), mas nem ao menos fiquei surpresa. Se ameaçassem tirar-me os olhos, não encontrariam em mim qualquer reação. E as coisas pareciam caminhar inexoráveis.


in Hospício é Deus

Intimations of Immortality



THERE was a time when meadow, grove, and stream,
    The earth, and every common sight,
            To me did seem
    Apparell'd in celestial light,
The glory and the freshness of a dream.         
It is not now as it hath been of yore;—
        Turn wheresoe'er I may,
            By night or day,
The things which I have seen I now can see no more.
        The rainbow comes and goes,  
        And lovely is the rose;
        The moon doth with delight
    Look round her when the heavens are bare;
        Waters on a starry night
        Are beautiful and fair;
    The sunshine is a glorious birth;
    But yet I know, where'er I go,
That there hath pass'd away a glory from the earth.
Now, while the birds thus sing a joyous song,
    And while the young lambs bound
        As to the tabor's sound,
To me alone there came a thought of grief:
A timely utterance gave that thought relief,
        And I again am strong:
The cataracts blow their trumpets from the steep;
No more shall grief of mine the season wrong;
I hear the echoes through the mountains throng,
The winds come to me from the fields of sleep,
        And all the earth is gay;
            Land and sea
    Give themselves up to jollity,
      And with the heart of May
    Doth every beast keep holiday;—
          Thou Child of Joy,
Shout round me, let me hear thy shouts, thou happy
    Shepherd-boy!
Ye blessèd creatures, I have heard the call
    Ye to each other make; I see
The heavens laugh with you in your jubilee;
    My heart is at your festival,
      My head hath its coronal,
The fulness of your bliss, I feel—I feel it all.
        O evil day! if I were sullen
        While Earth herself is adorning,
            This sweet May-morning,
        And the children are culling
            On every side,
        In a thousand valleys far and wide,
        Fresh flowers; while the sun shines warm,
And the babe leaps up on his mother's arm:—
        I hear, I hear, with joy I hear!
        —But there's a tree, of many, one,
A single field which I have look'd upon,
Both of them speak of something that is gone:
          The pansy at my feet
          Doth the same tale repeat:
Whither is fled the visionary gleam?
Where is it now, the glory and the dream?
Our birth is but a sleep and a forgetting:
The Soul that rises with us, our life's Star,
        Hath had elsewhere its setting,
          And cometh from afar:
        Not in entire forgetfulness,
        And not in utter nakedness,
But trailing clouds of glory do we come
        From God, who is our home:
Heaven lies about us in our infancy!
Shades of the prison-house begin to close
        Upon the growing Boy,
But he beholds the light, and whence it flows,
        He sees it in his joy;
The Youth, who daily farther from the east
    Must travel, still is Nature's priest,
      And by the vision splendid
      Is on his way attended;
At length the Man perceives it die away,
And fade into the light of common day.
Earth fills her lap with pleasures of her own;
Yearnings she hath in her own natural kind,
And, even with something of a mother's mind,
        And no unworthy aim,
    The homely nurse doth all she can
To make her foster-child, her Inmate Man,
    Forget the glories he hath known,
And that imperial palace whence he came.
Behold the Child among his new-born blisses,
A six years' darling of a pigmy size!
See, where 'mid work of his own hand he lies,
Fretted by sallies of his mother's kisses,
With light upon him from his father's eyes!
See, at his feet, some little plan or chart,
Some fragment from his dream of human life,
Shaped by himself with newly-learnèd art;
    A wedding or a festival,
    A mourning or a funeral;
        And this hath now his heart,
    And unto this he frames his song:
        Then will he fit his tongue
To dialogues of business, love, or strife;
        But it will not be long
        Ere this be thrown aside,
        And with new joy and pride
The little actor cons another part;
Filling from time to time his 'humorous stage'
With all the Persons, down to palsied Age,
That Life brings with her in her equipage;
        As if his whole vocation
        Were endless imitation.
Thou, whose exterior semblance doth belie
        Thy soul's immensity;
Thou best philosopher, who yet dost keep
Thy heritage, thou eye among the blind,
That, deaf and silent, read'st the eternal deep,
Haunted for ever by the eternal mind,—
        Mighty prophet! Seer blest!
        On whom those truths do rest,
Which we are toiling all our lives to find,
In darkness lost, the darkness of the grave;
Thou, over whom thy Immortality
Broods like the Day, a master o'er a slave,
A presence which is not to be put by;
          To whom the grave
Is but a lonely bed without the sense or sight
        Of day or the warm light,
A place of thought where we in waiting lie;
Thou little Child, yet glorious in the might
Of heaven-born freedom on thy being's height,
Why with such earnest pains dost thou provoke
The years to bring the inevitable yoke,
Thus blindly with thy blessedness at strife?
Full soon thy soul shall have her earthly freight,
And custom lie upon thee with a weight,
Heavy as frost, and deep almost as life!
        O joy! that in our embers
        Is something that doth live,
        That nature yet remembers
        What was so fugitive!
The thought of our past years in me doth breed
Perpetual benediction: not indeed
For that which is most worthy to be blest—
Delight and liberty, the simple creed
Of childhood, whether busy or at rest,
With new-fledged hope still fluttering in his breast:—
        Not for these I raise
        The song of thanks and praise;
    But for those obstinate questionings
    Of sense and outward things,
    Fallings from us, vanishings;
    Blank misgivings of a Creature
Moving about in worlds not realized,
High instincts before which our mortal Nature
Did tremble like a guilty thing surprised:
        But for those first affections,
        Those shadowy recollections,
      Which, be they what they may,
Are yet the fountain-light of all our day,
Are yet a master-light of all our seeing;
  Uphold us, cherish, and have power to make
Our noisy years seem moments in the being
Of the eternal Silence: truths that wake,
            To perish never:
Which neither listlessness, nor mad endeavour,
            Nor Man nor Boy,
Nor all that is at enmity with joy,
Can utterly abolish or destroy!
    Hence in a season of calm weather
        Though inland far we be,
Our souls have sight of that immortal sea
        Which brought us hither,
    Can in a moment travel thither,
And see the children sport upon the shore,
And hear the mighty waters rolling evermore.
Then sing, ye birds, sing, sing a joyous song!
        And let the young lambs bound
        As to the tabor's sound!
We in thought will join your throng,
      Ye that pipe and ye that play,
      Ye that through your hearts to-day
      Feel the gladness of the May!
What though the radiance which was once so bright
Be now for ever taken from my sight,
    Though nothing can bring back the hour
Of splendour in the grass, of glory in the flower;
      We will grieve not, rather find
      Strength in what remains behind;
      In the primal sympathy
      Which having been must ever be;
      In the soothing thoughts that spring
      Out of human suffering;
      In the faith that looks through death,
In years that bring the philosophic mind.
And O ye Fountains, Meadows, Hills, and Groves,
Forebode not any severing of our loves!
Yet in my heart of hearts I feel your might;
I only have relinquish'd one delight
To live beneath your more habitual sway.
I love the brooks which down their channels fret,
Even more than when I tripp'd lightly as they;
The innocent brightness of a new-born Day
            Is lovely yet;
The clouds that gather round the setting sun
Do take a sober colouring from an eye
That hath kept watch o'er man's mortality;
Another race hath been, and other palms are won.
Thanks to the human heart by which we live,
Thanks to its tenderness, its joys, and fears,
To me the meanest flower that blows can give
Thoughts that do often lie too deep for tears.

William Wordsworth

A melancolia checa: Jakub Schikaneder







Charlar de literatura



Cortázar fala sobretudo sobre a sua literatura. E dá a ilusão de que o estamos a ouvir in loco.

A parte maldita


"Você é homem, Endre, um homem excelente e verdadeiro, e sente-se obrigado a raciocinar de maneira coerente, como sabiamente determinam as leis, os costumes ou a razão. Mas nós, mulheres, não podemos ser sempre tão sábias e coerentes... agora, já compreendo que isso não é connosco."

Uma leitura agradável para uma noite chuvosa. Apesar disso, é um Sándor Márai menor.

sábado, 26 de setembro de 2015

O companheiro de viagem


O que haveria no interior das casas que impedia as pessoas de sair correndo para as ruas, a chorar, como se despertasse a consciência de que não valia a pena viver? O que perpetuava nelas a vida e permitia que sobrevivessem às noites geladas, solitárias e tristes, quando a neve congelava sobre a janela, a escuridão era a mesma dos túmulos, a cama lembrava um caixão, enquanto ficavam deitadas, insones, rangendo os dentes, porque uma mosca que dormia seu sono invernal despencara do tecto sobre o nariz? O que animava a espera sem sentido pela manhã? O que haveria amanhã – santa missa, casamento ou morte – em cujo nome seria digno passar às golfadas a noite gélida, longa e amarga, quando o relógio da torre mal batia as horas?


Esta novela foi a minha introdução ao escritor húngaro Gyula Krúdy. Não me cativou por aí além. Talvez a tradução brasileira não fosse o melhor umbral. Para tirar teimas, adquiri  Sunflower.

Cada um de alturas diferentes


Aquele tempo em que pensava estar apaixonado
e calmamente o disse
não era muito diferente do tempo
em que estava verdadeiramente apaixonado
e dormia pouco e falava em voz alta
para a parede
e descobria o génio escondido
das minhas mãos.
E aquele tempo em que me sentia menos apaixonado,
menos que alguém,
era, para ser honesto, não muito diferente
também.
Cada um era ridículo à sua maneira
e simultaneamente terno,
por vezes, até o falso é terno.
Fico estupefacto ao pensar
nos vários beijos de que éramos capazes.
Cada um despenhou-se de alturas
diferentes, e isso é simplesmente a lei.
E o grande barulho
da grande queda parecia perfeitamente branco
passados alguns anos.
Isso é o que me deixa mais estupefacto.
Stephen Dunn

domingo, 13 de setembro de 2015

Uma prosa fosforescente


Para além das árvores, regressei à rotina acompanhada por mais um mistério: o escritor polaco Bruno Schulz.
Já tinha lido As Lojas de Canela mas decidi levar o livro comigo para me aninhar nas longas viagens de comboio. E ainda bem que o fiz. Ai, que prazer tornar a ler Agosto, o primeiro conto do livro e a melhor descrição de um verão abrasador da infância que li, em Agosto, no meio da Polónia.
Como falar de Schulz? Aliás, como traduzir por palavras qualquer mistério, qualquer encantamento que nos cativa? Tarefa nada fácil. Tentemos, no entanto, uma breve aproximação.
A primeira coisa que me ocorre dizer é que Schulz escreve de uma maneira muito particular e incomparável. Claro que podia pôr-me aqui a pensar e detectar linhagens mas, ainda assim, prefiro ater-me ao caso isolado que a sua literatura constitui. Comparam-no muitas vezes a Kafka e não consigo entender porquê. É verdade que ambos eram judeus, de algum modo ocupados por metamorfoses e a sombra do pater famílias (em Schulz, é o pai que sofre mil metamorfoses). No entanto, as dissonâncias são mais essenciais que tais meras coincidências: enquanto Kafka concentrava os seus esforços na descrição do absurdo da realidade através de uma prosa fria e depurada, como um punhal, Schulz voava para bem longe, montado numa prosa féerica e sensual, rumo à porosidade do sonho e do encantamento.
Em Cracóvia, comprei a edição inglesa que, para além de As Lojas de Canela, inclui ainda um conto, O Cometa, que não figura na edição portuguesa (belíssimo devaneio apocalíptico!) e outro tomo de contos, Sanatorium under the sign of the hourglass (ou Sanatório do Gato-Pingado) e alguns contos esparsos. Assim, pude adentrar-me ainda mais dentro desse imaginário exuberante e perturbador e verificar como Schulz foi construindo para si uma mitologia singular em torno de vários tópicos, personagens e geografias recorrentes, nomeadamente as estações do ano (existirá um mistério mais acessível que o seu eterno retorno?), os pássaros, o Livro, o Labirinto, o sono, as mulheres dominadoras como a longilínea Adela, as extravagâncias do Pai, a Praça do Mercado e a casa enorme com múltiplos quartos esquecidos pelo Tempo, etc..
Tanto a família, como a cidade, oscilam permanentemente entre dois estados, o sono onírico e a crescente voracidade do Real. Estão ora sob o signo do tédio, ora sob a ameaça do encantamento poético. E assim, se começa a perceber a função de toda esta potente maquinaria imagética. E tal vislumbre remete-nos sempre para a triste biografia de Schulz, que acabou os seus dias enclausurado num gueto em Drohobycz, a sua cidade natal, até ser assassinado pelas costas por um oficial nazi. Anos antes, por carta, Schluz, confessava: “também não sei viver sem nenhum encanto, sem um pouco de tempero, de condimento que exalte a vida”.
Há sempre um tempo, em que os encantos rareiam. Aqueles foram sem dúvida tempos muito sombrios. E uma alma à míngua só podia confiar na sua imaginação para sobreviver. Now at last one can understand the great and sad machinery of spring. (…) Where would writers find their ideas, how would they muster the courage for invention, had they not been aware of these reserves, this frozen capital, these funds salted away in the underworld?
A escrita de Schulz é isso mesmo, uma lição de sobrevivência pela digestão dos encantamentos mais elementares. Reactivando os mais potentes arquétipos inconscientes, Schulz sugere-nos, com algumas pinceladas mestras, uma paisagem primeva, muito próxima da memória do corpo e da Infância. A sua prosa fosforescente, qual fogo-fátuo ou o verão mais mortal, ilumina por breves instantes um substrato mais mágico, sempre à superfície do quotidiano, cujo magma permanentemente tenta eclodir e repetidamente falha. There are things that cannot ever occur with any precision. They are too big and too magnificent to be contained in mere facts. They are merely trying to occur, they are checking whether the ground of reality can carry them. And they quickly withdraw, fearing to lose their integrity in the frailty of realization. And if they break into their capital, lose a thing or two in these attempts at incarnation, then soon, jealously, they retrieve their possessions, call them in, reintegrate: as a result, white spots appear in our biography – scented stigmata, the faded silvery imprints of the bare feet of angels, scattered footmarks on our nights and days – while the fullness of life waxes, incessantly supplements itself, and towers over us in wonder after wonder.
 É assim o trabalho do mito, sempre enigmático e esquivo. Ou como diria Schulz, “A matéria não é para brincadeiras, enche-se sempre de um trágico sério.” Como tal, o seu resultado é sempre dúplice, e da mesma fonte jorram imagens simultaneamente solares e sombrias, permeadas tanto pela magia mais encantatória, como pela solidão mais profunda. “Um imenso girassol içado até à ponta de um formidável pé com elefantíase, aguardava o fim dos dias nesse luto amarelo, vergado pela carga da sua monstruosa corpulência. Porém, as ingénuas campainhas de subúrbio e as simples flores do percal nada podiam contra tudo isto e limitavam-se a estar muito hirtas nas suas camisas cor-de-rosa, insensíveis ao grande drama do girassol”.
Gostei muito de todos os contos. Se tivesse de eleger os predilectos, talvez escolhesse Agosto, A Visitação, The Book, Spring, Sanatorium under the signo f the hourglass e a carta, longamente citada por Aníbal Fernandes, na introdução à edição portuguesa. Mas é a totalidade da sua obra que me fascina. Mais do que um escritor, Schulz era sobretudo um sonhador: “He proclaimed a Republic of Dreams, a sovereign realm of poetry”. Não admira, portanto, que tenha sido morto pelas costas.

Nos escritos que nos deixou, existem tantas memórias de verões agonizantes, que deixam na alma uma nostalgia perene pela criatividade imolada. Como eu terei deste verão que agora se despenha pelas calçadas de Lisboa. Felizmente, existem também inúmeros delírios poéticos, capazes de acender uma alma no meio da mais escura negritude.