terça-feira, 30 de setembro de 2008

A Mulher Certa


O amor é, desde Platão, uma questão política. A ligação amorosa coloca tudo o que há de mais límpido e visceral na mesa – é no fundo o significado de intimidade. Implica a perda do controlo total da situação, o arrebatamento pela paixão, a vertigem da entrega – todas as cartas na mesa. Embora todas as pessoas desejem viver um grande amor, nem todas são capazes: há todo um conjunto de factores como o medo, a insegurança, o preconceito, as diferenças sociais, os abismos culturais, que impedem a rendição absoluta. Além disto, há os que preferem continuar a jogar, depois de verem a mão dos outros, porque acham que pode haver uma mão mais alta algures capaz de os satisfazer profundamente.


A Mulher Certa de Sándor Márai fala da pessoa certa, de amor, de mentira, de manipulação, de dor e solidão. É um livro que deve ser lido numa noite de insónia. A moral da história? Para poucas pessoas existe uma pessoa certa e para uma infinidade ainda menor esta pessoa coincide com o ser amado. Para a maioria «existem somente pessoas, e, em todas elas, um pedacinho da pessoa certa, mas em nenhuma se concentra tudo o que se aguarda e dela esperamos. Nenhuma pessoa reúne em si tudo isso, nem existe a certa, a única, a maravilhosa, essa figura singular que nos traz felicidade. Existem somente pessoas, e em todas elas, há escórias e um raio de luz, tudo…»


É sempre mais fácil afastarmo-nos ou deixar que venham até ao nosso hall de entrada apenas, temendo que a nossa sala de reserva onde conservamos a nossa querida solidão contenha mais cadáveres que tesouros. O desencontro tem a seu favor elevadas probabilidades face à união autêntica. O amor acontece muito raramente, o mais das vezes são apenas duas solidões protegendo-se uma à outra, como diria Rilke, ou duas pessoas a verem televisão sentenciadas por uma vida, como cantava Nina Simone.


«Tens aqui lume. Tu como resistes nesta luta contra o cigarro?... Eu não consigo, pelo que já desisti. Não aos cigarros, à luta. Um dia, também terei de ajustar estas contas. Um homem deve perguntar-se se vale a pena, ou não, viver mais cinco ou dez anos sem cigarros, ou se lhe convém abandonar esse vício vergonhoso e mesquinho, que acaba por matá-lo, mas que, enquanto não o mata, lhe enche a vida de uma estranha matéria que, simultaneamente, acalma e estimula o sistema nervoso. Depois dos cinquenta anos, é uma das questões mais sérias da vida. Eu respondo-lhe com espasmos na coronária e a decisão de assim prosseguir, até à morte. Não hei-de renunciar a este veneno amargo, porque não vale a pena. Dizes que não é assim tão difícil desacostumarmos?... Claro, é lá agora difícil. Eu também consegui, e não foi só uma vez, enquanto valeu a pena. O mal é que pensava todo o dia no cigarro. É preciso olhar também para isto, um dia. Temos de nos render, face à nossa própria fraqueza e se precisarmos de uma droga, convirá pagar o preço. Então, tudo se torna mais simples. Dizem-me: “Não és um herói.” E eu respondo: “É bem possível que não seja um herói, mas também não sou um cobarde, porque tenho a coragem de viver as minhas paixões”»


A questão das paixões não pode ser avaliada por valores mercantis, como «valeu a pena», em termos de ganhos e perdas: trata-se apenas se queremos fazer uma coisa e se a fazemos ou somos cobardes e nos deixamos ficar na antecâmara da emoção. No factura final, o corpo está sempre em cheque: vergado à solidão ou recordando o arrebatamento do amor. Portanto arrisquemos uma aposta alta de vez em quando - a sorte favorece os audazes. Dizem...

domingo, 21 de setembro de 2008

Desejos

Desejo a você
Fruto do mato
Cheiro de jardim
Namoro no portão
Domingo sem chuva
Segunda sem mau humor
Sábado com seu amor
Filme do Carlitos
Chope com amigos
Crônica de Rubem Braga
Viver sem inimigos
Filme antigo na TV
Ter uma pessoa especial
E que ela goste de você
Música de Tom com letra de Chico
Frango caipira em pensão do interior
Ouvir uma palavra amável
Ter uma surpresa agradável
Ver a Banda passar
Noite de lua Cheia
Rever uma velha amizade
Ter fé em Deus
Não Ter que ouvir a palavra não
Nem nunca, nem jamais e adeus.
Rir como criança
Ouvir canto de passarinho
Sarar de resfriado
Escrever um poema de Amor
Que nunca será rasgado
Formar um par ideal
Tomar banho de cachoeira
Pegar um bronzeado legal
Aprender um nova canção
Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada
Pôr-do-Sol na roça
Uma festa
Um violão
Uma seresta
Recordar um amor antigo
Ter um ombro sempre amigo
Bater palmas de alegria
Uma tarde amena
Calçar um velho chinelo
Sentar numa velha poltrona
Tocar violão para alguém
Ouvir a chuva no telhado
Vinho branco
Bolero de Ravel
E muito carinho meu.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 20 de setembro de 2008

Na Corda Bamba


Não sei quando foi que começou ou se aconteceu de súbito. As grandes rupturas penetram na nossa cabeça, em segredo e sem margem para falhas, não se fazem anunciar, acontecem e pronto já está. Sei apenas que algo – uma mola, um elo, um pilar ou, então, outra coisa qualquer cuja natureza desconheço – se partiu dentro de mim, de modo irrecuperável. No lugar dessa perda, desse abandono, dessa quebra fatal, ficou apenas a solidão instalada com toda a pompa e circunstância na sua certeza inquestionável. Faz frio aqui. Arrefeceu tão de repente e todas as dádivas com que podia aquecer a minha alma se retiraram.
Um palco vazio, no centro, uma boneca de trapos abandonada, que não sabe seduzir sem jogar, sem arriscar a sua vida. Toda uma vida na corda bamba a saborear o risco da vertigem. Sabia que algum dia havia de cair, só não sabia para que lado – continuo sem saber. Sei apenas que a minha alma está em queda livre, vai pagar o preço da liberdade, sem laços nem amarras que a amparem. E de repente, um súbito desejo de assentar, de ser estável, de ser doce. Tarde demais.
Ontem olhei uma criança nos olhos e ela começou a chorar. Não sei o que ela viu em mim mas não pude evitar. Talvez tenha visto o colapso da esperança. Comecei a chorar juntamente com ela, num pranto progressivo de desespero. Em redor, os ditos adultos, olhavam a cena com alguma estupefacção. A menina correu para o abrigo das pernas da mãe, que rapidamente a acolheu e tratou com leviandade a sua tristeza. Eu, fiquei ali sozinha, sem ninguém para me consolar, a chorar mais calmamente.
Arrefece. O sono e a indiferença invadem as ruas de cada cidade, atravessam como um vento subtil as divisões de todas as casas, imiscuem-se como uma mulher delambida em todos os recantos da alma humana.
Arrefece e nenhuma fantasia, paixão ou amor resta na paisagem deserta. Deixo-te ir na corrente do esquecimento. Abandono-te antes que me abandones. Foi sempre assim. Deito, com alguma reticência, algumas lágrimas pela tua partida. Porque levas algo meu na tormenta que te arrasta. Algo que não sei se é irrecuperável.
Arrefece. Porque nunca estiveste aqui. Foi tudo imaginação minha. E se nos voltarmos a encontrar, o que é possível, vou devolver-te o gelo que instalaste em mim. Vou devolvê-lo como uma bofetada subtil, para te magoar um pouco. Foi sempre assim.
Arrefece. Lá fora uma manhã de sábado pouco credível. Aqui, neste recanto solitário, apenas uma pergunta: será alguma vez diferente? Não pretendo abdicar da minha potente natureza feminina para suportar as tuas incertezas e inseguranças. Quero um homem a meu lado, sem medo de mim, sem ilusões, que me veja realmente. No entanto, custa-me sacrificar a imagem que criei de ti. Mas afinal os ídolos servem para isso mesmo – para derramar o sangue. O nosso, claro. Foi sempre assim.

domingo, 14 de setembro de 2008

Uma Questão de Beleza






Adorei este livro de Zadie Smith – foi o primeiro que li dela e fiquei encantada com a fluidez dos diálogos hiper-realistas e a inteligente e perspicaz descrição da dinâmica psicótica das famílias. O livro aborda tantas questões que me é impossível escrever tudo o que haveria a dizer sobre este romance, por isso opto pelo silêncio de uma citação, escolhida pela óbvia comunhão.

Até agora, uma coisa era certa: Claire Malcom era viciada em auto-sabotagem. Segundo um padrão tão profundamente mergulhado na sua vida que Byford suspeitava que ele tivesse origem no início da infância, Claire sabotava compulsivamente todas as possibilidades de ter uma felicidade pessoal. Parecia estar convencida de que não era felicidade o que merecia (…) Tinha chegado a um ponto de alegria pessoal. Por fim, aos cinquenta e três. E, portanto, naturalmente que era o momento perfeito para sabotar a sua própria vida. Com esta finalidade, tinha dado início a um caso com Howard Belsey, um dos seus mais antigos amigos. Um homem por quem não sentia desejo sexual de espécie alguma (…) Toda aquela situação era perversa, tanto mais por ela não a poder defender, nem sequer perante si mesma (…). No momento do seu maior compromisso emocional, tinha intervido no casamento mais bem sucedido que conhecia. (…) Tal como explicou o Dr. Byford, ela era realmente a vítima de um transtorno perverso e particularmente feminino: sentia uma coisa e fazia outra. Era uma estranha para si mesma.


E ainda seriam assim, pensou ela – estas novas raparigas, esta nova geração? Ainda sentiriam uma coisa fazendo outra? Ainda quereriam apenas ser queridas? Ainda seriam objectos de desejo em vez de – como Howard diria – objectos desejantes? Se pensasse nas raparigas que estavam sentadas de pernas cruzadas com ela, nesta cave, em Zora, na sua frente, nas raparigas iradas que gritavam a sua poesia no palco – não, não via nenhuma alteração importante. Continuavam famintas, continuavam a ler revistas femininas que odiavam explicitamente as mulheres, ainda se cortavam com pequenas facas em lugares que julgavam não poder ser vistos, ainda fingiam os seus orgasmos com homens de quem não gostavam, ainda mentiam a toda a gente sobre todas as coisas.


Sim, Claire, penso que pouco mudou desde os anos 60: continuamos mulherzinhas em busca de afecto, encurraladas entre o desejo asfixiante de agradar e a imperatividade da afirmação e independência. Sem submissão. Sem entrega. Os tempos de cólera que correm são mais difíceis para a condição feminina: a revolução femininista dos anos 60 não passou de um acumular de tarefas para a mulher - uma esposa dedicada, uma mãe irrepreensível, uma profissional competitiva e bem-sucedida, uma amante obrigada ao orgasmo - em vez de uma efectiva promoção da mulher. Em suma, estamos bem fodidas, mas não como pretendiam as sufragistas quando decidiraram queimar os soutiens. A mim, os soutiens nunca me incomodaram.