terça-feira, 12 de agosto de 2008

A NÁUSEA OU A DOR DE EXISTIR





A Náusea é de facto um livro brutal, seco e de uma frieza metálica encantadora. O narrador, Antoine Roquentin, é um homem só e condenado à liberdade, como todos os modernos que se lhe seguiram. É um indivíduo, feio e ruivo, nada mais. Um indivíduo à deriva na sua própria existência, perdendo gradualmente a comunhão com os outros seres, atingindo pela Náusea, uma espécie de contaminação irreversível que perpassa dos objectos para os sujeitos e que desnuda a farsa oculta pela ideia de progresso da civilização burguesa. A guerra de um contra todos continua, escondida, mas declarada: em Beirute, em Lisboa, em Paris.

O ser humano está condenado a uma solidão irremediável, contido num paradoxo: a vontade de amar e ser tocado e a impossibilidade de alcançar o outro. Roquentin recorda a sua relação com Anny e a obssessão desta pelos «momentos perfeitos», uma moral que consiste em estar à altura do que nos acontece e aproveitar todos as situações excepcionais para potenciar ao máximo a sua afecção, e a sua incapacidade de corresponder às expectativas dela.

Era uma vez um rei que tinha perdido uma batalha e sido aprisionado. Vivia a um canto, nos acampamentos do vencedor. Um dia vê passar, agrilhoados, o seu filho e a sua filha. Não chorou, não disse nada. Em seguida, vê passar, agrilhoado também, um servo seu. Então pôs-se a gemer e a arrancar os cabelos. Tu próprio podes inventar os exemplos. Bem vês: há casos em que não se deve chorar – ou então é-se imundo. Mas, se deixarmos cair uma cavaca em cima dum pé podemos fazer o que quisermos, gemer, soluçar, saltar ao pé coxinho. O que seria tolice seria ser estóico constantemente: era esgotarmo-nos sem proveito.

No encontro final entre ambos, Anny mostra-se destroçada pelo esforço de sobreviver a si própria, tendo deixado de acreditar na possibilidade de acção e dos afectos. No entanto, não procura em Roquentin algum consolo paliativo nem lhe permite a mínima aproximação. A última vez que a vemos é com uns olhos inexpressivos. O outro que não devolve o olhar, como uma superfície oca onde o reflexo deixou de acontecer: bombas explodem em Beirute, Lisboa arde e em Paris dança-se.

Um dos pontos mais arrebatadores deste tratado da melancolia é a descrição que o narrador nos vai fazendo das pessoas que encontra durante as suas deambulações, revelando simultaneamente um conhecimento cirúrgico e um desprezo acutilante da alma humana. Achei particularmente interessante a descrição que o narrador faz da empregada de limpeza do seu hotel, uma negra pequena com quase quarenta anos que casou com um bonito rapaz, que todas as noites chega a casa embriagado:

“A ideia vai-a roendo, tenho a certeza, mas com lentidão, com paciência: ela reage, mas não é capaz de se consolar, nem de se abandonar ao seu mal. Pensa no caso um bocadinho, um bocadinho pequenino, tira partido dele. Sobretudo quando está acompanhada, porque os outros a consolam, e também porque faz bem falar no assunto com um tom presumido, com ar de quem dá conselhos. Quando anda sozinha pelos quartos, ouço-a cantalorar, para afugentar os pensamentos. Mas passa todo o dia cabisbaixa, cansa-se depressa e amua:
«É aqui», diz ela tocando na garganta, «trago aqui um nó.»
Há avareza na sua maneira de sofrer. Nos seus prazeres deve haver também. Admira-me que esta mulher não tenha vontade, às vezes, de se libertar daquela dor monótona, daquele resmonear que volta a moer, assim que ela deixa de cantar; que não deseje sofrer por uma vez, afogar-se no desespero. Mas, ao mesmo tempo que quisesse não poderia: aquele nó veda-lhe a saída ao sofrimento.”

A longa descrição de um típico dia de domingo é um dos capítulos mais deslumbrantes: “Uma mulher nova, com ambas as mãos apoiadas à balustrada, voltou para o céu o seu rosto azul, riscado de sombra pela pintura dos lábios. Houve um instante em que perguntei a mim próprio se ia pôr-me a gostar dessa gente, de toda a gente. Mas afinal o domingo era deles, e não meu.

Aconteceu-me qualquer coisa: já não posso duvidar. Qualquer coisa que veio à maneira de uma doença, não como uma vulgar certeza, não como uma evidência: que se instalou sorrateiramente, pouco a pouco. A dada altura senti-me um tanto esquisito, algo incomodado, mais nada. Tomado o seu lugar, essa coisa não mexeu mais, ficou como estava, e pude assim convencer-me de que não tinha nada, que tinha sido um rebate falso. Mas eis que o mal começa a propagar-se.” Exacta descrição do que sinto: também a mim me aconteceu qualquer coisa, o pânico parece ter-se instalado faustosamente no rés de chão do meu pensamento. Estou só à espera de o vomitar. Talvez no domingo dos outros.

domingo, 3 de agosto de 2008

Longe de Veracruz



«Destroçado, regressei a Barcelona.
(…)
Lembro-me como se fosse hoje. Soaram as seis em ponto da tarde naquele maravilhoso relógio da parede que a nossa mãe comprara a um antiquário de Berga. As seis badaladas soaram de forma contundente, como a quererem dizer-me que eram os seis golpes secos que em plena fronte acaba de me dar a vida. Li a graciosa legenda que inscrevera no relógio um artesão anónimo: “Quem me olha demasiado perde o seu tempo.” E sorri levemente, mas notava-se que estava triste. Não era fácil ocultar que estava preocupado. Lembro-me muito bem do que sentia. Pensava: “Alguém me fodeu.” Dizia isto, incapaz de pensar noutra coisa diferente, e repetia: “Alguém me fodeu”. Dizia-o insistentemente e a frase ressoava como doze badaladas juntas, enquanto fechava com força o meu único punho e sustinha a respiração e abafava um grito angustiado, chorando em segredo, ligeiramente transtornado.»

«Levanto-me e vou à janela ver como chove, e digo a mim mesmo que, no fundo, as desgraças dos romances são sempre belas porque nelas não corre sangue autêntico (…) Mas Heine já disse que depois das grandes tragédias acabamos sempre por assoar o nariz».