domingo, 26 de março de 2017

Bibliofilia e listas



No outro dia estava a ler a lista dos 100 livros favoritos do David Bowie e, em jeito de brincadeira, comecei a esboçar uma lista dos meus livros preferidos. Partilho aqui o resultado. Alguns não entram na minha definição de livros do caralho mas encontraram-me no momento certo, mudaram alguma coisa cá dentro, prestaram uma companhia generosa e preciosa ou acrescentaram joie de vivre.

A Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera
O Jogador, Fiodor Dostoievski
As Flores do Mal, Charles Baudelaire
Obra completa, Friedrich Nietzsche
Outono transfigurado, Georg Trakl
Iluminações, Arthur Rimbaud
Canto de mim mesmo, Walt Whitman
Poesia, Álvaro de Campos
Palavras e sangue, Giovanni Papini
Os Maias, Eça de Queiroz
Aparição, Vergílio Ferreira
História da Sexualidade, Michel Foucault
História da loucura, Michel Foucault
A Interpretação dos Sonhos, Sigmund Freud
A apresentação do eu na vida de todos os dias, Erving Goffmann
A Câmara Clara, Roland Barthes
Fragmentos de um discurso amoroso, Roland Barthes
Memorial do Convento, José Saramago
O Ano da Morte de Ricardo Reis, José Saramago
Cem anos de solidão, Gabriel García Marquéz
A náusea, Jean Paul Sartre
O retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde
Orlando, Virginia Woolf
Crime e Castigo, Fiodor Dostoievski
Madame Bovary, Gustave Flaubert
Lillias Fraser, Hélia Correia
Niels Lyhne, Jens Peter Jacobsen
As anotações de Malte Lauris Brigge, Rainer Maria Rilke
Os passos em volta, Herberto Hélder
Psicanálise do Fogo, Gaston Bachelard
Em carne viva, David Grossman
As Horas, Michael Cunningham
L’image-mouvement, Gilles Deleuze
O Amante, Marguerite Duras
Corpo presente, Anne Enright
As partículas elementares, Michel Houllebecq
História das drogas, Antonio Escohotado
Drogas, embriaguez e outros temas, Ernst Jünger
O único e a sua propriedade, Max Stirner
Contos, Tchékhov
Uma visão do mar, Dylan Thomas
Fear and loathing in Las Vegas, Hunter Thompson
A moeda viva, Pierre Klossowki
Laços de Família, Clarice Lispector
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Clarice Lispector
Tonio Kroger, Thomas Mann
Contos, Katherine Mansfield
A mulher certa, Sandór Marai
Coração, caçador solitário, Carson McCullers
Gente feliz com lágrimas, João de Melo
O cinema ou o homem imaginário, Edgar Morin
Lolita, Vladimir Nabokov
A morte sem nome, Santiago Nazarian
Anna Karenina, Lev Tolstoi
Os cães e os lobos, Irene Némirovsky
Contos, Dorothy Parker
Balada da praia dos cães, José Cardoso Pires
Cavalo Pálido, Pálido Cavaleiro, Katherine Anne Porter
Suspiria de Profundis, Thomas de Quincey
Cartas a um jovem poeta, Rainer Maria Rilke
Crack Wars, Avital Ronnell
O amor e o Ocidente, Dennis de Rougemont
Franny e Zooey, J.D. Sallinger
A ronda, Arthur Schnitzler
Lojas de canela, Bruno Schulz
Morte na Pérsia, Annemarie Schwarzenbach
O Estranhamento do Mundo, Peter Sloterdijk
O Doutor Glas, Hjalmar Söderberg
Early diaries, Susan Sontag
O apogeu de Miss Jean Brodie, Muriel Spark
Na tua face, Vergílio Ferreira
O físico prodigioso, Jorge de Sena
Trinta anos, Ingeborg Bachmann
O bosque da noite, Djuna Barnes
Uma noite entre os cavalos, Djuna Barnes
A parte maldita, Georges Bataille
O erotismo, Georges Bataille
História do olho, Georges Bataille
Campo de Sangue, Dulce Maria Cardoso
O meu corpo e eu, René Crevel
Mulheres, Charles Bukowski
The psychic life of power, Judith Butler
As aventuras de Augie March, Saul Bellow
Eros and Magic in the Renaissance, Ioan P. Couliano
A educação sentimental, Gustave Flaubert
Pan, Knut Hamsun
Photomaton & vox, Herberto Hélder
Margarita e o Mestre, Mikhail Bulgakhov
O Estrangeiro, Albert Camus
Obscénica, Hilda Hilst
Crónicas do mal de amor, Elena Ferrante
Oblomov, Ivan Gontcharov
Rayuela, Julio Cortázar
Histórias de amor, Robert Walser
A realidade é real?, Paul Watzlawick
Golpe de misericórdia, Marguerite Yourcenar
Mrs. Dalloway, Virginia Woolf4
Confusão de Sentimentos, Stefan Zweig
Travessuras da Menina Má, Maria Vargas Llosa
Vozes de Chernobyl, Svetlana Alexievich

ukiyo-e, imagens do mundo flutuante, e shunga, imagens da primavera


Hokusai, O Sonho da Mulher do Pescador

O espectador obediente



TÉCNICAS DO OBSERVADOR oferece uma perspectiva única sobre a construção histórica da visão e as origens da cultura visual moderna. Partindo da análise de vários dispositivos ópticos do século XIX, Jonathan Crary demonstra como a formatação da visão é indissociável de uma operação de normativização do sujeito observador em termos de produção laboral e consumo visual.

Uma reflexão inovadora e interdisciplinar que se tornou uma obra indispensável para entender o modo como a modernidade visual se impõe até à contemporaneidade, finalmente em tradução portuguesa.

O túnel



Desde que me li n’A NAÚSEA de Sartre, não resisto aos apelos existencialistas. Assim, mais cedo ou mais tarde, era esperado que viesse a encontrar O TÚNEL, de Ernesto Sabato, etiquetado de romance existencialista. Aqui a solidão e o desespero metafísico desembocam num crime passional, fazendo desta história uma das mais esclarecidas dissecações do ciúme, esse sentimento tão contraditório e envenenado.

Maria começou a vir ao atelier. A cena dos fósforos, com pequenas variações, reproduzira-se duas ou três vezes e eu vivia obcecado pela ideia de que o seu amor era, no melhor dos casos, amor de mãe ou de irmã. De modo que a união física era para mim coo que a garantia do verdadeiro amor.
(…) Longe de me tranquilizar, o amor físico perturbou-me ainda mais, trouxe novas e torturantes dúvidas, dolorosas cenas de incompreensão, cruéis experiências com Maria. As horas que passámos no atelier são horas que nunca esquecerei. Os meus sentimentos, durante todo este período, oscilaram entre o amor mais puro e o ódio mais desenfreado, ante as contradições e as inexplicáveis atitudes de Maria; de súbito assaltava-me a dúvida de que era tudo fingido. Por momentos parecia uma adolescente púdica e de repente parecia-me que era uma mulher qualquer, e então um grande cortejo de dúvidas desfilava pela minha mente: de onde? como? quem? quando?
Em tais ocasiões, não podia evitar a ideia de que Maria representava a mais subtil e atroz das comédias e de que eu era, nas suas mãos, como um garoto ingénuo a quem se engana com contos fáceis para que coma e durma. Às vezes era acometido por um pudor frenético, corria a vestir-me e saía logo para a rua, para tomar ar fresco e ruminar as minhas dúvidas e apreensões. Noutros dias, pelo contrário, a minha reacção era positiva e brutal: deitava-me sobre ela, agarrava-lhe os braços como com tenazes, torcia-as e cravava o meu olhar nos seus olhos, tentando forçá-la a garantias de amor, de verdadeiro amor.
(…)


Já antes de dizer esta frase estava um pouco arrependido; debaixo daquele que lha queria dizer e experimentar uma perversa satisfação, um ser mais puro e mais terno dispunha-se a tomar a iniciativa enquanto a crueldade da frase fizesse o seu efeito e, de certo modo, silenciosamente; eu já tinha tomado o partido de Maria antes de pronunciar essas palavras estúpidas e inúteis (que podia alcançar, com efeito, com elas?). (…) Quantas vezes esta maldita divisão da minha consciência foi culpada de actos atrozes! Enquanto uma parte me leva a tomar uma atitude bonita, a outra denuncia a fraude, a hipocrisia e a falsa generosidade; enquanto uma me leva a insultar um ser humano, a outra condói-se dele e acusa-me a mim mesmo do que denuncio nos outros; enquanto uma me faz ver a beleza no mundo, a outra assinala-me a sua fealdade e o ridículo de todo o sentimento de felicidade.

As pequenas mortes



A minha introdução à obra de D.H. Lawrence aconteceu pela antologia AMOR NO FENO E OUTROS CONTOS. Embora não me tenha arrebatado por aí além, gostei particularmente dos contos AMOR NO FENO, FOI PRECISO UM CAVALO DE BALOIÇO e O HOMEM QUE MORREU.

FOI PRECISO UM CAVALO DE BALOIÇO será o mais triste de todos, pelo final trágico devido à compulsão do consumismo que devora toda a interioridade e possibilidade de satisfação. Nos outros dois contos há uma redenção final pelo amor («Ela baixou-se para ele e agarrou-se-lhe ao pescoço, apertando-a ao seio num frenesim de dor. A amarga desilusão da vida, a vergonha e a degradação contínua dos últimos quatro anos tinham-na empurrado para a solidão e endurecido até grande parte do seu ser ficar empedernida e estéril. Agora, abrandava de novo e despontava nela a promessa de uma Primavera linda. Estivera a caminho de vir a tornar-se numa velha feia.») sobretudo n’ O HOMEM QUE MORREU, fantasia de uma outra vida de Jesus Cristo, erguida em corpo após a ressurreição:

Depois, lenta, lentamente, na escuridão perfeita do homem em si, ele sentiu que algo começava a despontar. A madrugada, um sol novo. Um sol novo subindo em si, na perfeita escuridão interior do seu ser. Esperou, contendo a respiração, trémulo, numa esperança temerosa… «Agora já não sou eu. Sou algo de novo…»
E, enquanto se erguia sentiu, com um bafo frio de desapontamento, a cinta da mulher viva abrandar e descair dele, o calor e a incandescência a descair dele, deixando-o nu. Ela enroscou-se, exausta, aos pés da deusa, escondendo o rosto.
Curvou-se e pousou a mão, docemente, no ombro claro e morno dela; e o choque do desejo lancinou-o, choque após choque e pensou se não seria esta uma outra morte: mas cheia de magnificência.
Agora, toda a sua consciência estava posta na mulher, enroscada, escondida. Baixou-se ao lado dela e acariciou-a terna, cegamente, murmurando coisas inarticuladas. E a sua morte e a sua paixão pelo sacrifício eram, agora, nadas para ele – conhecia apenas a plenitude enroscada daquela mulher, a branda pedra branca da vida… «Sobre esta pedra construí a minha vida.» A pedra de pregas profundas, a pedra penetrável da mulher viva! A mulher, escondendo o rosto. Ele, curvado sobre ela, poderoso e novo como a madrugada.
Chegou-se todo a ela e sentiu a labareda da virilidade e a força erguerem-se-lhe nos rins, magnificientes.
«Ergui-me!»
Magnificente, flamejando indomitável na profundeza dos seus rins, despertava o seu sol próprio, que dardejava o seu fogo pelos membros dele, de tal modo que o rosto cintilava inconscientemente.
Desatou a fita da túnica de linho e deixou-a tombra e viu o brilho branco dos peitos branco-e-ouro dela. E tocou-os e sentiu a vida fundir-se em si. «Pai!», disse ele. «Porque escondeste isto de mim?» E tocou-a com a pungência do espanto e a maravilhosa transcendência penetrante do desejo. «Oh!», disse ele, «isto está para além da oração.» Era o calor profundo, entremeado, o calor vivo e penetrável, a mulher, o coração da rosa! A minha mansão é a intrincada rosa quente, o meu júbilo é esta flor!
Ela levantou os olhos para ele, de repente, com o rosto como uma luz desperta, ávido, terno, os olhos como muitas flores húmidas. E ele apertou-a ao peito com uma paixão de ternura e desejo devorador e o último pensamento: «É chegada a minha hora e sou tomado de surpresa…»
E então conheceu-a e os dois foram um só.»


De qualquer dos modos, é uma leitura recomendada. O sensualismo de D.H. Lawrence agradam muito, bem como alguns comentários mais inteligentes, como este por exemplo: «O  homem ergueu-se obedientemente. Todo ele era descontracção, parasitismo, insolência. Geoffrey tinha-lhe nojo, apetecia exterminá-lo. Era exactamente o pior inimigo do hipersensível: insolência sem sensibilidade, à cata da sensibilidade dos outros.»

domingo, 5 de março de 2017

A grande viagem ao coração da melancolia



Todos ignoramos de que vivemos, como poderíamos, então, deixar fugir alguma coisa e sentir remorsos por isso? Era já tarde depois do cair da noite quando, chegada a Istambul, transpus, exausta, o arco antigo da porta da cidade; o pavimento ressoava, as pequenas lâmpadas de azeite iluminavam a ruela do bazar e cheguei, por fim, diante das águas cintilantes do Bósforo, cujo fluxo incessante corria no silêncio da noite (…). A viagem não exige que tomemos decisões e não põe a nossa consciência diante de uma alternativa que nos torna culpados e arrependidos, humildes ou obstinados – até duvidarmos por completo da justiça e pensarmos que esta vida não é para nós senão um dédalo, uma prova fatal. Partir é a libertação – ó única libertação que nos restou! – e para tanto não é necessário mais do que uma coragem sem falha, renovada dia após dia…

(…)

Na manhã seguinte, um jovem oficial que dirigia os trabalhos de desobstrução acompanhou-nos aos terraços de Maku, sobrepujados precisamente pela falésia mais alta, onde fora gravada uma inscrição comemorando a vitória de Nadir Shah, que outrora arrebatara a aldeia aos bandidos (…). O que recordo perfeitamente é o véu ligeiramente turvo do orvalho e desse dia em que, esgotada pelo calor de uma ascensão penosa, estava a tremer de frio no jardim do emir, quando uma jovem camponesa aproximou dos meus lábios um jarro de água. Porque somos assim: deliciamo-nos à vista das pérolas, do azul do mar, de uma hora de paz apesar da fúria dos incêndios, ignoramos os campos de ruínas, para aprendermos todos a mesma oração: Senhor, ajuda-nos a suportar esta vida…

(…)

«A nossa vida parece-se com uma viagem…», e mais do que uma aventura e uma excursão em regiões inabituais, a viagem parece-me ser um símbolo da nossa existência: instalados numa cidade, cidadãos de um país, pertencendo a uma classe ou a um meio social, membros de uma família, ligados aos deveres de uma profissão, aos hábitos de uma «vida quotidiana» tecida de todos estes elementos, sentimo-nos, muitas vezes, demasiado seguros de nós; consideramos que a nossa casa foi construída para a eternidade, somos tentados a crer numa estabilidade que, para uns, torna problemático o envelhecer e, para outros, dá a qualquer mudança exterior as aparências de uma catástrofe. Esquecemos que se trata de um processo em curso, que a terra está em movimento perpétuo e que estamos implicados no fluxo e no refluxo dos oceanos, nos tremores de terra e em tudo o que se passa muito longe do imediato que nos rodeia, visível e tangível: mendigos ou reis, actores todos da mesma grande comédia. Esquecemo-lo, para por assim dizer preservarmos a paz da nossa alma, construída ela própria sobre areias movediças. Esquecemo-lo, para não cedermos ao medo.»

(…)

Não haverá, algures, um caminho que se abre, uma garganta que conduza a outros países? Será sempre assim, o mesmo céu, de manhã e à noite, o mesmo ciclo, a mesma prece, e nunca uma resposta?

(…)


Foi por isso que quis um dia desprender-me – de que destino ao certo, não o sabia – e julgava somente compreender que uma infelicidade me ferira, como pode acontecer a qualquer de nós, e tinha necessidade de me manter afastada, em silêncio. Como é que os outros vivem, perguntava-me eu, como suportam este país e o dia de amanhã, como o suportam? Mas quando desce uma vez mais a magia do crepúsculo, quando o dia sem sombra decresce, e as corças se mostram nas encostas do inverno já nimbadas de bruma, quando volto a ter uma hora tão cheia de inocência, sinto-me então inclinada a baixar os olhos e a arrepender-me e a não ceder nunca mais à tentação – e disponho-me plenamente a reconhecer que estamos enraizados dentro de limites estreitos e que não podemos fazer mais do que um pedaço mínimo de caminho.

sábado, 4 de março de 2017

Der Himmel über Berlin





CANÇÃO DA INFÂNCIA


Quando uma criança era uma criança
Ela andava com seus braços balançando,
queria o córrego pra ser um rio,
o rio pra ser uma torrente,
e uma poça pra ser o mar.

Quando uma criança era uma criança,
não sabia que era uma criança,
tudo era tão cheio de espírito,
e todas as almas eram uma só.

Quando a criança era uma criança
não tinha opinião a respeito de nada,
não tinha hábitos
e sentava-se sempre de pernas cruzadas,
descansando de uma corrida
e tinha o cabelo lambido
e não fazia poses na hora da fotografia.

Quando a criança era uma criança
era a época destas perguntas:
Por que eu sou eu e não você?
Por que estou aqui, e por que não lá?
Quando foi que o tempo
começou, e onde é que o espaço termina?
A vida debaixo do sol não é só um sonho?
Aquilo que eu vejo e escuto e cheiro
não é só uma ilusão de um mundo de antes do mundo?
Considerando-se o mal e as pessoas.
A maldade realmente existe?
Como pode aquilo que sou, quem eu sou,
não ter existido antes que eu viesse a ser,
e que algum dia, eu, quem eu sou,
não serei mais quem eu sou?

Quando uma criança era uma criança,
Mastigava espinafre, ervilhas, bolinhos de arroz,
e couve-flor cozida,
e comia tudo isto não somente porque precisava comer.

Quando uma criança era uma criança,
Uma vez acordou numa cama estranha,
e agora faz isso de novo e de novo.
Muitas pessoas, então, pareciam lindas
e agora só algumas parecem, com alguma sorte.
Visualizava uma clara imagem do Paraíso,
e agora no máximo consegue só imaginá-lo,
não podia conceber o vazio absoluto,
que hoje estremece no seu pensamento.

Quando uma criança era uma criança,
brincava com entusiasmo,
e agora tem tanta excitação como tinha,
porém só quando pensa em trabalho.

Quando uma criança era uma criança,
Era suficiente comer uma maçã, uma laranja, pão,
E agora é a mesma coisa.

Quando uma criança era criança,
amoras enchiam sua mão como somente as amoras conseguem,
e também fazem agora,
Avelãs frescas machucavam sua língua,
parecido com o que fazem agora,
tinha, em cada cume de montanha,
a busca por uma montanha ainda mais alta,e em cada cidade,
a busca por uma cidade ainda maior,
e ainda é assim,
alcançava cerejas nos galhos mais altos das árvores
como, com algum orgulho, ainda consegue fazer hoje,
tinha uma timidez na frente de estranhos,
como ainda tem.
Esperava a primeira neve,
Como ainda espera até agora.

Quando a criança era criança,
Arremessou um bastão como se fosse uma lança contra uma árvore,
E ela ainda está lá, chacoalhando, até hoje.


Peter Handke

O nosso habitual sentimento de imperfeição



COMO PODE A VIDA TER LUGAR, OU PERSISTIR, NUM ESTADO DE CRISE PERMANENTE?

O arquitecto Aldo Rossi não tem dúvidas. O bloco de pedra mata um transeunte. Para ele, o princípio da conservação da energia acaba em tragédia. A História e a teoria têm de lidar com a incerteza acerca das circunstâncias, de crises passadas e presentes. Essa situação pode levar à dúvida, mas também pode originar acção. Rossi enfrentou conflitos semelhantes, muitas vezes irreconciliáveis, devido a escolhas pessoais. Apesar da melancolia, havia também o entusiasmo para avançar. Cada projecto «deve ser de algum modo conclusivo, mesmo que seja apenas para poder ser repetido com leves variações ou deslocações, ou assimilado por novos projectos, novos lugares e novas técnicas: outras formas de vislumbrarmos sempre um pouco de vida». Daí que seja possível chegar a uma conclusão. No final, a melancolia é uma questõ de carácter. A arquitectura também.


Uma belíssima reflexão sobre a influência da melancolia na arquitectura e pensamento crítico de Aldo Rossi.

O mundo de ontem



Tudo começa quando o Grande Xá da Pérsia é tomado por uma grande inquietação, perde o interesse nas suas mulheres e decide viajar até ao Ocidente, esperançado no alento que as artes eróticas do Ocidente lhe poderão proporcionar. Viena no final do século XIX – que outro local pode personificar melhor o final de uma visão do mundo, de uma Europa e de uma época? A milésima segunda noite é a noite do logro e da decepção com os devaneios das mil e uma noites.

– Porque lamentas por nós, Pantominos? – perguntou o Xá.
– Por muitas razões – respondeu o eunuco – mas principalmente porque os homens estão sujeitos ao princípio da mudança. Trata-se de um princípio falacioso, porque, na verdade, não há mudança nenhuma.
– Estás a querer dizer que devo viajar para algum sítio só para sentir essa mudança?
– Sim, Senhor – disse Pantominos – para se convencer de que afinal não há mudança nenhuma.
– E isso só por si iria curar-me?
– Não o iria convencer – disse o eunuco – mas iria proporcionar-lhe as experiências necessárias para chegar a essa mesma convicção.
– Como chegas a essas conclusões, Pantominos?
– Porque fui castrado, Senhor! – retorquiu o eunuco e curvou-se de novo.