quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Do not go gentle into that good night


Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.

Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.

Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.

Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.

Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.
And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.
Dylan Thomas

Memória e Delírio



«Los locos van libres por las salas y pasillos o por las habitaciones de los hombres, sin que ello inspire el menor recelo de evasión o desorden. Incluso algunos de ellos, pertenecientes a familias distinguidas, acompañan a las visitas, hacen los honores de la casa. Guardan las más suaves formas de cortesía y buena educación.»

Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura é o primeiro romance de António Lobo Antunes que li. O livro, o 14º escrito pelo autor, é composto por 35 capítulos ordenados em 7 partes que se assumem como os 7 dias da criação do mundo. Neste livro que Lobo Antunes classificou como poema, cabe de facto todo o mundo e toda a sua criação, através da viagem interior ziguezagueante entre a memória e a fantasia, empreendida por Maria Clara, numa polifonia de vozes e delírio.

O pai doente nos Cuidados Intensivos serve de pretexto a Maria Clara para ousar entrar em quartos e sótãos proibidos, onde vai recordar a distância do seu pai e fantasiar uma explicação para a ausência deste, onde se vai defrontar com a beleza da irmã que inveja, com a solidão da mãe na cama fria onde o marido não dorme há muitos anos. Lobo Antunes maneja de modo tão inovador a técnica do fluxo de consciência que nos sentimos como o psiquiatra de Maria Clara, tentando descortinar a verdade do delírio, das fantasias que inventámos para gerir melhor a nossa dor e a dor dos outros.

Não é um livro fácil – demorei-me um mês e meio na sua leitura. Todas as palavras são escolhidas a dedo, deliciosas e amargas consoante a circunstância, mas sempre poderosíssimas. A certa altura, podemos até dizer que a escrita de Lobo Antunes se torna penosa pela repetição obsessiva de certas imagens e frases. Mas a vida também é assim, o nosso tempo é marcado pela batuta das nossas obsessões, pelas frustrações que nos venderam, pelas falhas que nos apontaram, pelos afectos que desejámos, pelos polegares no pescoço que nunca se demoraram docemente e nos quais ficámos a cismar precisamente pela sua pressa.

A quase ausência de enredo também não facilita o trabalho do leitor, obrigado a lidar com os delírios de uma menina metida consigo mesma, a perscrutar goivos e freixos, a boina ridícula da avó todas as tardes a caminho do casino do Estoril para apostar mais algumas jóias ou talheres para reaver a riqueza e dignidade de outrora, o passado com cheiro a pobre do pai, os encontros fortuitos da mãe com o motorista no Guincho, a irmã pretendida por todos os homens de rosto enfiado em revistas femininas e telefonemas suspirados. Lobo Antunes disse numa entrevista «Para mim, muitas vezes a intriga não é mais do que o prego no qual se penduram os quadros». Ou ainda, citando Clarice Lispector, «As palavras são apenas anzóis, para apanhar o que está nas entrelinhas» e os acontecimentos do quotidiano podem escassear mas dentro de nós há uma roldana imparável, de aço, que vai roendo e mastigando tudo e que desliza às vezes, por engano ou descuido, para nos triturar.

Chegamos ao fim e sabemos que não podemos fugir aos nossos fantasmas, que eles nos vão espiar por detrás dos nossos ombros erguidos, tímidos e inconvenientes. E que a verdade que nos compõe não é só a dos factos, a do real, mas também dos delírios que nos fazem e desfazem. E que raramente podemos confessar a alguém, excepto aos profissionais da mente, sob pena de sermos excluídos da normalidade da vida de todos os dias, reclamada por todos mas onde ninguém habita.

«se eu pudesse conversar com alguém e podendo conversar com alguém se conseguisse falar».


Uma viagem empreendida para recordar a menina que brincava às fadas junto ao lago, que mais tarde dava pontapés nas pedras e odiava todos e que acabou casada com um homem que não suporta o toque e um filho que não reconhece nem lhe apetece, a habitar às escondidas o refúgio da sua meninice e das suas ilusões. Tentando descobrir o momento em que perdemos o rumo da nossa vida, em que a guinada ocorreu e o fracasso começou a devorar a nossa eternidade. Quando, exactamente quando, foi que nos fodemos?

«Hoje estava capaz de me ir embora: pegar nas chaves do carro sem motivo nenhum
(as chaves estão sempre no prato da entrada)
descer as escadas
(não descer pelo elevador, descer as escadas)
até à garagem da cave, ver o fecho eléctrico abrir-se com dois estalos e dois sinais de luzes, ver a porta auomática subir devagarinho e logo na rua acelerar o mais depressa possível, queimando semáforos, na direcção da auto-estrada, sem ligar aos painéis que indicam as cidades e a distância em quilómetros, sem uma ideia na cabeça, sem destino, sem mais nada para além da pressa de ir-me embora, colocar entre mim e mim o maior espaço possível, esquecer-me do meu nome, dos nomes dos meus amigos (…). Parar num desses restaurantes das bombas de gasolina à beira das portagens e comer sem olhar para ninguém, sem reparar em ninguém nem sequer nas crianças que correm entre as mesas e acelerar de novo segurando o volante com força tal como em pequena segurava o guiador da bicicleta (…).


Hoje estava capaz de me ir embora: as paredes da casa apertam-me, tudo me parece tão pequeno, tão inútil, tão estranho. Entrar na cozinha. Fazer o almoço. Servi-lo. Esperar pela refeição seguinte. Apagar o fogão. Servi-la Atender a meio da tarde a voz do meu marido a saber como estou, receber as cartas da Ana de que não compreendo o endereço. Abandonar as cartas de Ana de que não compreendo o endereço. Abandonar os telefonemas e as cartas também. Hoje estou mesmo capaz de me ir embora antes que fique louca como os cães, correndo em círculos na noite (…).

Hoje estava capaz de me ir embora. Metia todo o dinheiro da gaveta no bolso, deixava aqui a mala, os documentos, os sinais de quem sou. Se me perguntarem o que faço responder que não tenho profissão. Sou apenas uma mulher num restaurante das bombas de gasolina à beira de uma portagem, a mastigar calada (…).


Há momentos na vida em que necessitamos tanto de um sorriso. À falta de melhor toco-me com o dedo no vidro.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Boneca de tripas - Parte 1


Dia de Natal e eu fechada na casa-de-banho a sangrar, o sangue escuro, espesso a sair sem parar, a escorregar pelas pernas, o piso da casa de banho ensopado, pontuado por manchas de postas de carne azuis e violetas, eu a desfazer-me numa dor afiada líquida entre as pernas sem sequer…. Um grito de angústia, de socorro, sufocado na manga da camisola de lã grossa que a minha avó me ofereceu no outro natal. No natal em que eu não era, não fui uma menina feia trancada na casa-de-banho a sangrar silenciosamente.


«Como foste capaz, Solange?», a voz severa da figura seca da minha mãe a despertar-me naquela tarde abafada de Agosto em que retirei um a um os peixes raros do meu pai do aquário esverdeado e os coloquei na carpete da sala, junto aos brinquedos gastos noutras tardes solitárias de Verão.


Uma agonia aquática entre as pernas, submersa nos ladrilhos da casa de banho em postas de carne azuis e violetas. Enquanto a minha família ceia reunida na mesa, partilhando doces e sorrisos abrigados do frio sonolento que assobia nos ciprestes das traseiras do quintal. Noite de natal, peixes demoníacos a devorar as minhas vísceras num rodopio de esferas de vidro no meu ventre. Sabres de metal que me atravessam e rasgam a carne.

O medo cortante de que a minha mãe ou a minha tia ou o meu pai descubram a minha ausência e me surpreendam nesta lama de sangue espalhada pelos ladrilhos e

«Como foste capaz, Solange?».


Minutos a fio a assistir ao duelo de escamas contra o algodão da carpete – uma agonia de guelras e bocas escancaradas num som que nunca mais me esqueci e que voltei a ouvir anos depois à beira da cama da minha avó - o cheiro a peixe da morte, quando ninguém sabia que ela morria - é apenas uma gripe, está de cama a ver se se cura – diziam, enquanto eu pressentia, eu sufocava com o cheiro a peixe no quarto da minha avó e olhar de aquário dela em mim, talvez a adivinhar que anos depois, na noite de natal… eu na casa de banho a sangrar, uma dor afiada entre as pernas.

Até que aquela coisa horrorosa sai de dentro de mim, rasgando a carne para se vir espalhar no meio das postas de sangue azuis violetas, as goelas ainda arriscam um choro mas este desmaia, fracassa no embate contra os ladrilhos frios e vermelhos da casa-de-banho do meu crime. E de novo, o barulho das guelras debatendo-se em golfadas de água impossíveis.

Os peixes novamente no aquário, ondulando levemente, os olhos como redomas viscosas a mirarem o vazio e eu a olhá-los, a cismar, extasiada, debruçada sobre o vidro acastanhado num esgar de limos e crueldade. Fascinada mesmo depois da surpresa da minha mãe

«Como foste capaz, Solange?»


Por a dor dos outros não nos poder doer, não passar apenas de uma agonia de guelras encerrada no silêncio das algas de um aquário. Doces e sorrisos abrigados do frio sonolento que assobia nos ciprestes das traseiras do quintal, isolados do lamaçal de sangue de uma casa-de-banho onde não ousam adivinhar que um cordão umbilical é arrancado com os dentes, que podia escapar à descarga do autoclismo, mas… Lá se vai… lá se foi, o quê?

Uma criança entediada por não ter irmãos nem actividades de verão a brincar a inventar o poder demiurgo da vida e da morte, a criar o universo num Agosto distante encerrado em cortinas de tédio, quentes e inimigas. Desta vez não há tempo, apenas a pressa de limpar a mancha, todas as manchas com a esfregona e depois um saco que hei-de atirar cheio de pedras de calçada para o lago do parque, onde um Natal deixei cair, enquanto brincava com a minha prima, a minha fita de cabelo rosa. A minha fita de cabelo rosa que eu adorava perdida no lago de sangue de uma casa de banho na noite de natal.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

D.Juan, o sedutor vítima do seu desejo


JULIETA: Sabes o que eu vejo D. João… cada corpo que se ergue na tua vida é uma cruz assinalando a morte de um pedaço da tua alma… carne branca talhada em pedra tumular a que te agarravas num desespero de náufrago… Tu trazias em ti a essência de Romeu… e no entanto a forma exterior era a de D. João, às apalpadelas, por caminhos ínvios, numa procura febril do rasto de Julieta. Cada mulher era a esperança duma alvorada… a promessa esquiva do possível caminho do encontro com a tua bem-amada… Detinhas-te e caminhavas mais à frente, cheio de mágoa, frustrado na tua eterna pesquisa. E por isso foram muitas.. porque em cada uma delas tu celebraste a momentânea esperança do encontro final. E assim eras cruel e destruías onde passavas… e os homens chamaram-te cínico, ímpio e dissoluto… Eles só viam as ruínas que tu deixavas pelo caminho e anunciavam que a tua presença era mensageira de desgraça… Mas nenhum deles soube ver a profundidade da tua mágoa, nem os teus pés que sangravam no choque de cada pedra em que tropeçavas julgando que era uma flor.