domingo, 27 de março de 2016

Ítaca



Quando saíres a caminho da ida para Ítaca,
faz votos para que seja longo o caminho,
cheio de aventuras, cheio de conhecimentos.
Os Lestrígones e os Ciclopes,
o zangado Poseídon não temas,
coisas assim no teu caminho não acharás nunca,
se o teu pensamento permanecer elevado, se a emoção
requintada o teu espírito e o teu corpo tocar.
Os Lestrígones e os Ciclopes,
o selvagem Poseídon não encontrarás,
se com eles não carregares na tua alma,
se a tua alma não os colocar à tua frente.

Faz votos para que seja longo o caminho.
Para que sejam muitas as manhãs de verão
nas quais com que contentamento, com que alegria
entrarás em portos vistos pela primeira vez;
para que páres em feitorias fenícias,
e para que adquiras as boas compras
coisas de nácar e coral, de âmbar e de ébano,
e essências de prazer de qualquer espécie,
quanto mais abundantes puderes essências de prazer;
para que vás a muitas cidades egípcias,
para que aprendas e aprendas com os letrados.

Deves ter sempre Ítaca na tua mente.
A chegada ali é o teu destino.
Mas não apresses em nada a tua viagem.
É melhor durar muitos anos;
e já velho fundeares na ilha,
rico do que ganhaste no caminho,
sem esperares que te dê Ítaca riquezas.

Ítaca deu-te a bela viagem.
Sem Ítaca não terias saído ao caminho.
Mas já não tem para te dar.

E se um tanto pobre a encontrares, Ítaca não te enganou.
Sábio como te tornaste, com tanta experiência,
já hás-de compreender o que significam Ítacas.

Konstandinos Kavafis

A glória, como vós sabeis, é uma coisa amarga.



«Então, subitamente, o ronco cavo, prolongado, duma sirene irrompeu através da janela aberta e inundou o quarto quase às escuras – era um grito de dor, uma dor exigente, negra, sem limites; um grito negro de pez e glabro como o dorso de uma baleia e carregado com as paixões de todas as marés, com a memória de todas as viagens, as alegrias, as humilhações: o mar estava a gritar. Com toda a loucura e cintilação da noite, a sirene ressoava, transportando ao largo, do centro morto do mar, toda a sua sede do néctar negro que inundava aquele quartinho.
Tsukazaki voltou-se com uma rápida torção dos ombros e olhou lá para fora, para a água.
Nesse mesmo instante tudo quanto ficara acumulado no peito de Noboru desde o seu primeiro dia de vida se libertou e consumou. Até ao ressoar da sirene tudo tinha sido um esboço apenas, uma tentativa. Preparados os mais finos materiais, tudo estava pronto, convergindo para o momento da revelação. Mas um elemento faltava: o poder que transfigurasse os fragmentos esparsos da realidade num palácio radioso. Então, com a sirene, as partes juntaram-se. Formando um só todo, havia a lua e um vento de febre, a carne excitada de um homem e duma mulher, suor, perfume, as cicatrizes duma vida de mar, a confusa lembrança de portos de todo o mundo, um buraco na parede que não permitia respirar, o coração de ferro dum rapazinho – mas estas cartas tiradas de um baralho cigano estavam espalhadas, não mostravam nada. A ordem universal, que o grito da sirene finalmente estabelecera, revelava um círculo invencível de vida – as cartas emparelhavam-se: Noboru e mãe – mãe e homem – homem e mar – mar e Noboru…
Estava perturbado, molhado, com êxtase. Tinha a certeza de ter visto desenrolar-se um novelo, cujos fios traçavam uma figura sagrada. E isto tinha que ser protegido: tudo quanto sabia é que era o seu criador de treze anos.

– Se isto alguma vez for destruído, será o fim do mundo – murmurava, quase a sonhar. Acho que faria tudo para o impedir, por mais terrível que seja!»

Mirror



I am silver and exact. I have no preconceptions.
Whatever I see I swallow immediately
Just as it is, unmisted by love or dislike.
I am not cruel, only thruthful 
The eye of a little god, four-cornered.
Most of the time I meditate on the opposite wall.
It is pink, with speckles. I have looked at it so long
I think it is a part of my heart. But it flickers.
Faces and darkness separate us over and over.

Now I am a lake. A woman bends over me,
Searching my reaches for what she really is.
Then she turns to those liars, the candles or the moon.
I see her back, and reflect it faithfully.
She rewards me with tears and an agitation of hands.
I am important to her. She comes and goes.
Each morning it is her face that replaces the darkness.
In me she has drowned a young girl, and in me an old woman
Rises toward her day after day, like a terrible fish.

Sylvia Plath

Que Deus nos dê a todos nós, a nós os bebedores, uma morte tão suave e tão bela!



“Andreas já se tinha esquecido há muito tempo do seu apelido. Agora que estava a rever os seus documentos caducados, lembrou-se que se chamava Kartak: Andreas Kartak. Era como se depois de muitos anos de tivesse descoberto a si próprio.

Ainda assim, sentia-se de certo modo irritado com o destino, por este não lhe ter enviado de novo, como da última vez, um homem gordo de bigode e com feições infantis, que lhe possibilitaria ganhar mais dinheiro. Pois não há nada a que nos possamos habituar tão facilmente como aos milagres, quando estes acontecem de uma forma sucessiva. Sim! A natureza do Homem é tal, que se este se chega a tornar mau, quando não lhe é concedido ininterruptamente tudo aquilo que um destino casual e temporário lhe pareceu prometer. São assim os Homens – e podia esperar-se outra coisa de Andreas? O resto do dia, passou-o portanto em várias tabernas. Resignou-se com o facto de o tempo dos milagres que vivera pertencer ao passado, definitivamente ao passado, e de ter regressado aos seus velhos tempos. Decidido a viver a vida de uma lenta decadência, a que os bebedores sempre se prestam – os abstémios nunca saberão o que isso é! –, Andreas dirigiu-se novamente às margens do Sena, para debaixo das pontes.”