sábado, 27 de agosto de 2011

«Não é por o mundo não parar de girar, que temos de ficar agoniados.»

ITALO SVEVO

Tanatografias




«Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria. Deve haver certamente outras maneiras de salvar uma pessoa, senão estou perdido.»

ALMADA NEGREIROS

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

And if it is not love then it's the bomb, the bomb...




Depois de muitos dias intensivos de estoicismo apercebi-me que continuo extremista. Depois de ter dedicado alguns anos à investigação afincada do projecto hedonista, tomando o prazer e o riso como missão, retornei a Lisboa com a minha revolução sexual concluída, as finanças arruinadas e com os nervos algo descompensados. Há este problema de fundo com a via do êxtase: toma-se o momento presente como absoluto e tudo o resto vai colapsando. Mas é preciso ter a coragem de destruir, já dizia o Stirner, e não lamento os dias esbanjados.


Decidi então experimentar o outro extremo, a atitude estóica, ocupando os dias a ler, a trabalhar e a cozinhar. Resultado: tornei-me uma dona-de-casa com alguns laivos intelectuais e aprendo a persistir e a contrariar a minha inquietação. A coisa corre bem. Mas chego à conclusão que a doutrina do meio-termo enunciada por Aristóteles é a mais acertada. Desde que me conheço que desprezo a palavra “moderação” mas a minha aprendizagem revela-me que é preciso ir por aí para viver bem, ou viver menos mal. Ao clamor tchekhoviano “É preciso trabalhar!”, é preciso adicionar “É preciso conhaque!” Em nome da saúde mental, é preciso ter horários para servir o dever narcóticos e horários para desatinar e descompensar: é tudo, com efeito, uma questão de dosagem.


E por isso ontem, segui leve pela noite adentro: dançar, dançar para cansar o corpo e aliviar a cabeça que pensa sempre demais do que deve. Voltei a reencontrar a beleza nocturna nos corpos que se agitam como quem empenha todo o vigor das últimas forças. São corpos que apostam o sono em nome de uma alegria que os invade na claridade pela sua ausência, mas que não desistem de acreditar e procurar. Uma cambada de crentes popula os bares e uma oração diferente, uma oração da convulsão, sobe pelas raios eléctricos da noite. E ouvem-se as coisas mais bonitas porque a escuridão torna as palavras mais espontâneas: um tipo com cara de anjo despede-se às seis da manhã dizendo que vai para o seu quarto beber uma garrafa de vodka e desmembrar uma grama de cocaína; tem um ar santo, parece um daqueles monges habituados a visões beatíficas. “É a minha cena. Ando a desfrutar imenso da minha relação comigo”, diz antes de partir, mas não como quem se justifica. E ao vê-lo ir-se, sabe-se que, apesar de utilizar meios travessos (e quem não os utiliza, feitas as contas?), ali vai um tipo em paz consigo, mesmo que momentânea. E vêem-se as coisas mais despropositadas, subitamente justificadas por uma aura de sonho que envolve a visão e a torna estranhamente mais turva mas também mais curva. No Copenhaga, o cinema português dança com passos histéricos ao som do Hit the Road Jack e insinua-se em ti uma suspeita de que talvez nem tudo esteja perdido neste país ! Tens os pensamentos planos e suaves, esqueces as horas, os planos de regressar e fazes all-in com mais um Jack Daniels, saboreando o contraste do gelo nos lábios contra o calor que ameaça o peito. Porque sabes, de um modo seguro e íntimo que tudo corre bem e os vivos estão, afinal, ainda vivos e fortes.


E depois há o dia a raiar, as gaivotas girando loucas num céu que pica, o sol vigoroso das nove horas que reinicia o trabalho da criação. Mas é domingo, ainda há calma, o mundo dá uma pausa. E entras finalmente no táxi e casa é agora uma palavra querida. E aí acontecem sempre as conversas mais hilariantes e profundas, porque os deuses, depois de mortos pelo progresso das luzes e das fábricas, reencarnaram taxistas. Deus e o Diabo, a coisa é uma roleta, nunca se sabe quem te leva a casa. E o taxista pergunta se te divertiste. Dizes sim, com um sorriso fino. Ele diz que estás com um ar feliz. Respondes que estás a pensar no amor. Ele pergunta porque voltas então para casa sozinha. Não tens essa resposta, Deus e o diabo são ambos matreiros nas perguntas que te fazem. Na incerteza avanças que não sabes, que se calhar o melhor é ele fazer inversão de marcha, voltar ao ponto onde te apanhou. E então ele diz: “Não, relaxa, ouve aí essa morna angolana e vais para casa descansar”. E ele aumenta o som, e tu encostas a cabeça, cabelos ao vento fresco, olhos sonhando as avenidas e o rio, os poros todos a ouvir a voz africana mais sedosa do mundo. E sabes que tiveste a dose de beleza que te vai permitir mais dias calmos, sem sentires que esfacelas as asas contra as barras da gaiola. E que, desta vez, voltas a casa guiada por Deus.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

"Nunca disse que fosse sempre um erro entrar no país das fadas. Disse somente que era sempre perigoso" (Chesterton)

“Vistas de perto, as coisas passavam-se muito menos tranquilamente: os judeus que chegavam ao cimo da ravina, empurrados pelos askaris e pelos Orpo, uivavam de terror quando descobriam a cena, debatiam-se, os embaladores batiam-lhes com a chibata ou cabos de metal para os obrigarem a descer-se e a deitarem-se, já por terra eles continuavam a gritar e tentavam levantar-se, e as crianças agarravam-se à vida tanto como os adultos (...). Para alcançar certos feridos, era preciso andar por cima dos corpos, estes escorregavam de modo atroz, as carnes brancas e moles rolavam sob as minhas botas, os ossos quebravam-se traiçoeiramente e faziam-me tropeçar, eu atolava-me até aos tornozelos na lama e no sangue. (...), disparava quase ao acaso, sobre tudo o que via espernear, depois recompus-me e tentei prestar atenção, apesar de tudo era preciso que as pessoas sofressem o menos possível, mas de qualquer maneira não podia rematar senão os últimos, por baixo havia já outros feridos, não mortos ainda, mas que em breve o estariam. Não era eu o único cujos nervos não aguentavam, também alguns atiradores tremiam e bebiam entre uma e outra fornada. Reparei num jovem Waffen-SS, não sabia o nome dele: começava a disparar de qualquer maneira, com a metralhadora encostada à anca, ria horrivelmente e esvaziava o carregador ao acaso (...). Aproximei-me dele e sacudi-o, mas ele continuava a rir e a disparar ali diante de mim, arranquei-lhe a metralhadora e esbofeteei-o, a seguir mandei-o ir ter com os homens que reabasteciam os carregadores; Grafhorst mandou-me outro homem para o substituir e eu lancei-lhe a metralhadora gritando: “E faz-me isso como deve ser, entendido?!!” Perto de mim, outro grupo estava a ser trazido: o meu olhar cruzou-se com o de uma bela rapariga, quase nua, mas muito elegante, calma, com os olhos cheios de uma tristeza imensa. Afastei-me. Quando voltei estava ainda viva, semivirada sobre o dorso, uma bala saíra-lhe por debaixo do seio e ela arquejava, petrificada, os belos lábios tremiam-lhe e pareciam querer formar uma palavra, fitava-me com os seus grandes olhos surpresos, incrédulos, olhos de ave ferida, e esse olhar cravou-se em mim, rasgou-me o ventre e deixou escorrer dele um jorro de serradurra, eu não passava de uma simples boneca e não sentia nada, e ao mesmo tempo queria de todo o coração curvar-me e limpar-lhe a terra e o suor misturados na fronte, acariciar-lhe a face e dizer-lhe que já estava melhor, que tudo correria da melhor maneira, mas em vez disso disparei-lhe convulsivamente uma bala na cabeça, o que bem vistas as coisas vinha a dar no mesmo, para ela em todo o caso não para mim, porque a mim a ideia daquele desperdício humano insensato invadia-me uma raiva imensa, desmedida, continuava a disparar sobre ela e a cabeça rebentara-lhe como um fruto, e então o meu braço soltou-se de mim e partiu só ele pela ravina, disparando para um lado e para o outro, eu corria atrás dele, fazia-lhe sinal com o outro braço dizendo-lhe que esperasse por mim, mas ele não queria, ria-se de mim e disparava sobre os feridos sozinho, sem mim, que finalmente esgotado, parei e comecei a chorar. Agora, pensava, acabou-se, o meu braço nunca mais voltará, mas para minha grande surpresa ali estava ele de novo, no seu lugar, solidamente preso ao meu ombro, e Hafner aproximava-se de mim e dizia-me: “Está bom, Obersturmfuhrer. Eu substituo-o.” (p. 125-127).

"Aí tendes, malditos sejais, saciai-vos com este belo espectáculo!" (Platão)

Nietzsche demonstrou exemplarmente como o humano (ou melhor, a definição de humano que a nossa cultura privilegiou) se baseia num conjunto de cinco ou seis promessas que se fixam na carne através de um processo de habituação histórica edificado sobre uma mnemotécnica da dor. Com o horror passa-se o mesmo: é tudo uma questão de gradação das doses inicias e um progressivo incremento, até que o individuo reclame a sua necessidade imperiosa.

“É a primeira vez”?, perguntou delicadamente o Hauptmann. Baixei o queixo. “Há-de habituar-se”, acrescentou ele, “mas nunca completamente, talvez”. Ele próprio estava pálido, mas não tapava a boca.
(...)
Os cadáveres empilhavam-se num grande pátio empedrado, em pequenos montes desordenados, espalhado por aqui e por ali. Um imenso zumbido, obsidiante, ocupava o ar: milhares de pesadas moscas azuis esvoaçavam por cima dos corpos, dos charcos de sangue, das matérias fecais. As minhas botas pegavam-se ao empedrado do chão. Os mortos estavam já a inchar, contemplei a sua pele verde e amarelada, os rostos informes, como os de um homem espancado. O cheiro era imundo; e este cheiro, eu sabia-o, era o princípio e o fim de tudo, a própria significação da nossa existência. Este pensamento destroçava-me o coração. (...) Eu queria fechar os olhos, ou tapar com a mão os meus olhos, e ao mesmo tempo queria olhar, olhar até à saciedade e tentar compreender através do olhar aquela coisa incompreensível, ali, diante de mim, aquele vazio para o pensamento humano. Desamparado, virei-me para o oficial da Abwehr: “Você leu Platão?” Ele olhou para mim, desconcertado: “O quê?” – “Não, não é nada” (p. 41).

No segundo dia da minha odisseia literária pelo holocausto, dei comigo a chorar perante uma cena que descreve outra execução colectiva. E o que me comoveu não foram os pormenores das massas cranianas espalhadas pela terra e pelo rosto dos atiradores nem a agonia aflita de alguns moribundos, mas sim esta frase: “Olhei para os judeus: os mais próximos de mim pareciam calmos, mas pálidos” (p. 84) e a visão de uma marcha ordeira para a morte sem qualquer perturbação ou resistência, cravou-se-me no peito com vigor, murmurando suavemente quão facilmente o humano se reduz a simples carne para matadouro e a cultura, a chamada “cultura superior” retorna à matança que a fundou e refunda todos os dias, umas vezes sob formas mais sofisticadas mas nem por isso menos cruéis.

it's all so quiet, ma...


Nestes últimos tempos, tenho andado grávida. Grávida de qualquer coisa que forçou a sua vinda através de caminhos daninhos. Não sei o que vou parir mas suspeito que irei parir-me mulher dentro em breve. Não tenho medo.

Já não esbracejo com a raiva de um cão batido, já não corro a cidade com sedes acres e o meu ventre não reclama mais facas. As noites não picam mais a carne com as suas insónias. Estou calma, quase pedra. Depois da negra noite da alma e de alguns êxtases breves da carne, surgiu em mim um estoicismo involuntário, uma capacidade de modelar o tédio e a angústia com artifícios honestos.

Passo os dias sem ver pessoas e curiosamente não lhes sinto a falta. Cada uma é uma cidade bombardeada, como diria Eugénio de Andrade, e é tarefa mais fácil amá-las com uma certa distância. Vou lendo os dias. Se casarei ou não, já não me interessa; o amor não obscurece nem alumia a caligrafia singela das horas. Será talvez, apenas, um verão que asfixia na cidade abrasada. Ou eu, a parir uma solidão mais sólida que a pedra. De qualquer dos modos, está-se estranhamente bem.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

"Um anjo no Inferno voa na sua própria pequena nuvem de Paraíso" (Eckhart)







Uma odisseia não se pode levar a cabo sem um homem desabrigado no início dos inícios.


E o homem garatuja as suas memórias para descobrir se ainda é capaz de sofrer. É estóico, recto e culto, como convém, e sabe quão raramente um pensamento humano acontece. Não está à procura do caminho para regressar a casa, está desabrigado no lar burguês que construiu para si, para a mulher relativamente bela e de boa família com quem casou com alguma repugnância e a quem trata de homenagear de quando em quando, com pouco prazer mas sem repulsa excessiva, para garantir a paz no seu lar. O tear de Penélope foi substituído pelos teares mecânicos e alinhados da fábrica de rendas que dirige.


Também ele combateu e fez o que tinha a fazer, sem hesitações. Saiu dela “um homem vazio, cheio unicamente de amargura e de uma longa vergonha, como areia que range entre os dentes” (p. 19) e com o horror impresso na retina. Não pode regressar como herói. Não pode regressar. O regresso a casa pode apenas equivaler ao desejo sofocliano de não ter nascido. A guerra é perpétua e ninguém pode escolher o lado da trincheira que ocupa – isso é apenas uma fantasia consoladora dos vencedores.


Sou culpado, o leitor não, muito bem. Mas o leitor deveria apesar de tudo ser capaz de dizer para consigo que teria feito também aquilo que eu fiz. Talvez com menos zelo, mas talvez também com menos desespero, mas seja como for de uma maneira ou de outra. Penso que me é permitido concluir como um facto estabelecido pela história moderna que toda a gente, ou quase, num conjunto de circunstâncias dadas, faz o que se lhe diz que faça; e, peço desculpa, há poucas probabilidades de ser o leitor a excepção, tal como eu não a fui. Se nasceram num país ou numa época em que não só ninguém aparece para matar as vossas mulheres e os filhos dos outros, dêem graças a Deus e vão em paz. Mas mantenham sempre presente no espírito esta ideia: talvez tenham tido mais sorte do que eu, mas nem por isso são melhores do que eu. Porque no momento em que tenham a arrogância de pensar sê-lo, aí começa o perigo.” (pag. 27).



Já quase nada lhe interessa. Mantém aventuras esporádicas com belos rapazes como um cuidado de higiene. Resta-lhe apenas a literatura. Não fosse a guerra, ter-se-ia ocupado das coisas belas e calmas, fazendo ou ensinando literatura. E gostaria de ter tocado piano. “Tocar só para mim, em casa, ter-me-ia cumulado de satisfação. Bem entendido, ouço muitas vezes música, e nisso tenho um vivo prazer, mas não é a mesma coisa, é um prazer de substituição. Tal como os meus amores masculinos: a realidade, não coro ao dizê-lo, é que teria preferido decerto ser uma mulher. Não necessariamente uma mulher que vivesse e agisse neste mundo, uma esposa, uma mãe; não, uma mulher nu, deitada de costas, com as pernas abertas, esmagada sob o peso de um homem, agarrada a ele e trespassada por ele, afogada nele e tornando-se o mar sem limites em que ele mesmo se afoga, prazer sem fim, e sem princípio também. Ora não foi assim. Em vez disso, dei comigo jurista, funcionário da segurança, oficial SS, e depois director de uma fábrica de rendas. É triste, mas é como é.” (p. 29).



Uma odisseia não se pode levar a cabo sem um homem desabrigado no início dos inícios. E este homem não está abrigado no homem que é porque os abrigos do humano foram calcinados pelos fornos crematórios.



E uma odisseia não pode efectuar-se sem o amor por uma mulher distante. “Uma só, mas mais do que tudo no mundo. Ora essa, justamente, era a que me estava proibida. É bastante concebível que ao sonhar ser uma mulher, sonhando-me um corpo de mulher, eu a procurasse ainda, quisesse aproximar-me dela, quisesse ser como ela, quisesse ser ela. É inteiramente plausível, ainda que nada mude ao caso. Dos tipos com quem fui para a cama, nunca amei um só que fosse, servi-me deles, dos seus corpos, é tudo.” (p.29)

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Apetece muito uma odisseia literária

Para celebrar os últimos dias dos meus vinte e oito anos começo hoje a ler As Benevolentes de Jonathan Littell. Apetecia há muito mas só agora chegou o tempo.

domingo, 14 de agosto de 2011

Há uma gravidez do pensamento no tédio





“Para o pensador, bem como para todos os espíritos sensíveis, o aborrecimento é aquela desagradável «calmaria» da alma que precede a viagem venturosa e os ventos joviais. É preciso que eles suportem e aguardem o seu efeito. É exactamente isso que as naturezas medíocres não conseguem atingir por si! Afastar de si o aborrecimento, a qualquer preço, é coisa tão comum como trabalhar sem prazer. Talvez seja isto que distingue os Asiáticos dos Europeus – serem capazes de um repouso mais longo e mais profundo. Mesmo os seus narcóticos actuam lentamente e exigem paciência, em contraste com a rapidez repugnante do veneno europeu – o álcool”.

Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência

Sigo nietzscheana.






“E então se o prazer e o desprazer estiverem de tal modo entrosados que, quem quiser usufruir o máximo de um, seja obrigado a ter também o máximo do outro? Que quem quiser aprender a «rejubilar até aos céus» tenha também de se preparar para a «depressão até à morte». E é talvez, assim, que as coisas sejam!”

Friedrich Wilhelm Nietzsche, A Gaia Ciência

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Lê-se numa noite e deixa mazelas de graça






Também eu ceei com os doze naquela ceia
em que eles comeram e beberam o décimo terceiro.
A ceia fui eu; e o servo; e o que saiu a meio;
e o que inclinou a cabeça no Meu Peito.

E traí e fui traído.
e duvidei, impacientemente, e descartei-me;
e pus com Ele a mão no prato e posei para o retrato
(embora nada daquilo fizesse sentido).

Não subi aos céus (nem era caso para isso),
mas desci aos infernos (e pela porta de serviço):
comprei e não paguei, faltei a encontros,
cobicei os carros dos outros e as mulheres dos outros.

Agora, como num filme descolorido,
chegou o terceiro dia e nada aconteceu,
e tenho medo de não ter sido comigo,
de não ter sido comido nem ter sido Eu.

Manuel António Pina

It's all right, ma...




Está tudo bem, mãe,
estou só a esvair-me em sangue,
o sangue vai e vem,
tenho muito sangue.


Não tenho é paciência,
nem tempo que baste
(nem espaço), deixaste-me
pouco espaço para tanta existência.


Lembranças a menos
faziam-me bem,
e esquecimento também
e sangue e água a menos.


Teria cicatrizado
a ferida do lado,
e eu ressuscitado
pelo lado de dentro.


Que é o lado
por onde estou pregado,
sem mandamento
e sem sofrimento.


Nas tuas mãos
entrego o meu espírito
seja feita a tua vontade,
e por aí adiante.


Que não se perturbe
nem intimide
o teu coração,
estou só a morrer em vão.


Manuel António Pina

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

“The whole world is three drinks behind" - Humphrey Bogart

Confesso que voei






Mas, se nestas seis décadas e meia
eu fui capaz de algum voo

– concedo, semelhante ao das galinhas,
isto é, rudimentar, desgracioso,
com muitíssimo dispêndio de energia
para pouca ascensão, breve e apenas
em desespero de causa;
em todo o caso uma forma de voo
pelo qual me sustentei no ar
em horas de menos peso –

devo agora, fechado o ciclo do voo,
como os pássaros pousar.

E isto não é como uma loja
que muda de ramo
ou que em fins de Dezembro
fecha para balanço.
Nem como executar
um mandado de detença.
Nem expiar a desordem
de, sendo pedestre, ter voado.
Nem um remate compulsivo
à sedição.

Pousar, é tudo. Regressar
ao afago das coisas da terra.
A terra cobrar por fim o que lhe devo
e eu cobrar dela o que me deve
desde a primeira hora.

Voei, está voado.
Nada de nostalgias.



A.M. Pires Cabral

Metereologia fodida



METEOROLÓGICA


Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter

Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas

Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)

A vida
é livro
e o livro
não é livre

Choro
chove
mas isto é
Verlaine

Ou:um dia
tão bonito
e eu
não fornico.


Adília Lopes

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Provérbio medieval

«Per aspera ad astra».

Até às estrelas pela adversidade.

Provérbio brasileiro



Coração alheio é terra que ninguém pisa.

Descansa em mim



Desconfiei do teu rosto na primeira noite. Mas a primavera negava-se com pudores rijos e eu tinha bebido demasiados whiskies por distracção. Confundi-te com um comboio e coloquei o meu corpo na linha para te travar.
Alguém gritava o meu nome pela janela enquanto eu te ordenava:
Cala-te e fode-me,
Depois, partiste rude e indelicado, murmurando semelhanças com actrizes de Hollywood que eu desconhecia.
No dia seguinte acordei dorida, a memória da loucura impressa em sangue pisado nas minhas vértebras. Alguém me disse que eu andava a brincar com tudo isto e isso alegrou-me ainda mais. E o tempo foi fluindo, com o vento de feição sobre os selins da esperança.
Tornei a reencontrar-te no teu despropósito e qual soldado da legião estrangeira, pensei que podia sair incólume. E foi como uma febre veloz, sem pausas para convalescença. Os dias abundavam de fomes e ameaças de enfarte e o meu corpo inquieto cirandava pela cidade. Só no teu olhar insistente encontrava a calma. E eram as palavras – sempre as palavras - as palavras mais belas, tão longamente queridas, que bebi com sedes arcaicas. Delirante, desafiei os deuses e prometi-te eternidades exclusivas. Porque eu era um livro de pernas abertas que só tu conseguias ler.
Falavas de amor, de queda, de anjos e eu julguei que todos os campos bombardeados que tinha atravessado serviam apenas para te amparar. São malícias da inocência, perdoa, meu querido, com tanto ruído não percebi que também eu caía e que os meus braços jamais seriam raízes.
No apeadeiro final, restei paisagem acidentada nos estilhaços de uma janela. Fiquei a sós com a tarefa de me fiar mulher. Recusei os venenos amargos que me ofertavam e não tomei outros corpos como paliativos. Deixei-me estar quieta, muito quieta, a brincar com a morte. Durante dias a fio meditei nos cães de caça e na fome que os treina.
E três vezes a pergunta bateu à porta:
Quem te fez mal?
E três vezes a recusei com uma vírgula de ironia no sorriso:
Quem me fez, mal?
Apenas por caminhos travessos se alcança a ponta do desamor.
Parece que os gregos tinham razão e as paixões servem apenas para compor belos epitáfios. Por isso descansa em paz, meu amor. Dentro de mim. Não tenho outras águas para arrumar as saudades que restam.

Regresso sempre com o mesmo espanto pueril aos meus primeiros amores




Manhã de Embriaguez

“Ó meu Bem! Ó meu Belo! Fanfarra atroz em que não cambaleio. Cavalete féerico! Hurrá pela obra inaudita e pelo corpo maravilhoso, pela primeira vez! Isto começou com risos de criança, em risos de criança há-de acabar. Este veneno vai ficar em todas as nossas veias, mesmo quando, regressada a fanfarra, formo devolvidos à antiga inharmonia. Ó nós agora tão dignos destas torturas, cumpramos fielmente a jura sobre-humana feita ao nosso corpo e à nossa alma gerados: esta promessa, esta demência! A elegância, a ciência, a violência! Prometeram-nos enterrar na sombra a árvore do bem e do mal, banir as honestidades tirânicas, afim de que pudéssemos nosso puríssimo amor. Isto começou com uma certa náusea e isto acaba – não podendo assenhorear-nos já de tal eternidade, - isto acaba por uma debandada de perfumes.

Risos de criança, discrição de escravos, austeridade das virgens, horror destas caras e destes objectos, sagrados sejais pela recordação desta vigília. Isto começou com toda a grosseria, eis que isto acaba em anjos de fogo e de neve.
Breve vigília de embriaguez, santa!, quanto mais não seja pela máscara que nos deste! Afirmamos-te, método! Não esquecemos que exaltaste outrora todas as nossas idades. Temos fé no veneno. Sabemos dar a nossa vida inteira todos os dias.
Eis o tempo dos ASSASSINOS.”

Jean-Arthur Rimbaud