domingo, 26 de junho de 2011

um livro tem que ser como um machado



"Acho que só devemos ler a espécie de livros que nos ferem e trespassam. Se o livro que estamos lendo não nos acorda com uma pancada na cabeça, por que o estamos lendo? Porque nos faz felizes, como você escreve? Bom Deus, seríamos felizes precisamente se não tivéssemos livros e a espécie de livros que nos torna felizes é a espécie de livros que escreveríamos se a isso fôssemos obrigados. Mas nós precisamos de livros que nos afetam como um desastre, que nos magoam profundamente, como a morte de alguém a quem amávamos mais do que a nós mesmos, como ser banido para uma floresta longe de todos. Um livro tem que ser como um machado para quebrar o mar de gelo que há dentro de nós. É nisso que eu creio."

Franz Kafka, carta a Oscar Pollak, 1904

domingo, 19 de junho de 2011

Com a carne triste



BRISE MARINE

La chair est triste, hélas! et j´ai lu tous les livres.
Fuir! là-bas fuir ! Je sens que des oiseaux sont ivres
D´être parmi l´écume inconnue et les cieux!
Rien, ni les vieux jardins reflétés par les yeux
Ne retriendra ce coeur qui dans la mer se trempe
O nuits ! ni la clarté déserte de ma lampe
Sur le vide papier que la blancheur défend
Et ni la jeune femme allaitant son enfant.
Je partirai ! Steamer balançant ta mâture,
Lève l´ancre pour une exotique nature!

Un Ennui, désolé par les cruels espoirs,
Croit encore à l´adieu suprême des mouchoirs!
Et, peut-être, les mâts, invitant les orages
Sont-ils de ceux qu´un vent penche sur les naufrages
Perdus, sans mâts, sans mâts, ni fertiles îlots...
Mais, ô mon coeur, entends le chant des matelots!


Stéphane Mallarmé

A grande beleza arranhada



Há cerca de quatro meses, com a primavera atrasada, encontrava consolo apenas nas palavras de Herberto Hélder. Palavras de cão batido. Um amigo avisou-me, carinhosamente, que parasse de o ler. Parece que mata muitas pessoas. Respondi que não queria abdicar da beleza apesar do perigo que nela reconhecia: até os mortos têm direito à beleza por isso lhes oferecem flores. Ao que ele corrigiu: só os mortos têm direito à beleza, por isso lhes oferecem flores. Rematei o problema dizendo que pararia no dia em que ele me receitasse um livro upper, a salvo dos efeitos narcóticos da indignação e da raiva. Um pedido difícil, bem sei, dado que o desamor e a mágoa parecem ser os motores mais potentes do esforço literário. As maiores obras foram escritas na merda.

Contudo, através de outras mãos, acabei por encontrar esse livro-estimulante e dediquei os últimos dois meses e meio a essa paixão, que defini como intermitente para que o prazer pudesse durar mais: As Aventuras de Augie March de Saul Bellow. São as vantagens dos chamados calhamaços: juntamente com o tempo e o fôlego arriscamos um compromisso emocional.


No primeiro parágrafo, Augie apresenta-se a si e ao estilo da narrativa das suas aventuras: “Sou americano, nascido em Chicago – Chicago, aquela cidade sombria -, e encaro as coisas da maneira que aprendi a fazer sozinho, em estilo livre. Vou, portanto, fazer o relato à minha maneira: o que bater primeiro, é o primeiro a entrar; às vezes uma pancada inocente, outras nem tanto. Mas o carácter de um homem é o seu destino, diz Heraclito, e no fundo não há forma de disfarçar a natureza das pancadas, nem fazendo um tratamento acústico na ponta nem cobrindo os nós dos dedos com uma luva” (p.9). E está dado o mote para as 700 páginas que se seguem: o relato de um rapaz que cresceu pelas ruas de Chicago, a cidade dos gangsters, como um órfão, retirando do desamparo a garantia para a sua independência e busca pela liberdade.


A infância de Augie é passada entre a simples e resignada mãe, o irmão atrasado mental Georgie e o irmão mais velho, o combativo Simon, entretida pelas mentiras para sacar dinheiro às instituições de caridade e pelos ensinamentos da resmungona avó Lausch “sobre um mundo em que os crédulos, amorosos e simples vivem cercados pelos astuciosos e duros de coração” (p. 19). A adolescência é populada por vários empregos ocasionais, desde distribuir panfletos de propaganda para um teatro, ajudar na distribuição de jornais com o primo, pau para toda a obra do paralítico Einhorn, trato com pugilistas e breves incursões pela criminalidade.


“De tudo isto, o que queria eu para mim? O meu irmão Simon não era muito mais velho do que eu, e ele e outros rapazes da nossa idade já tinham percebido que era preciso viver a vida e escolhido a direcção que pretendiam seguir, enquanto eu continuava a andar em círculos (…)
Mas quando não existe nenhuma Sicília pastoril, nenhuma pintura livre da natureza, mas apenas a aflição profunda da cidade, e cedo somos forçados a ter objectivos profundos da cidade, sem nos mandarem, com o nosso éfode vestido, apresentar-nos perante Elias para começarmos a servir no templo, não enviados a cavalo pelas nossas irmãs chorosas estudar grego em Bogotá, antes acabamos por ir parar a um salão de bilhar – o que tem isso de elevado? (…) Amigos, companheiros humanos, homens e irmãos, não há maneira breve, condensada ou taquigráfica de dizer até onde isso nos leva. O próprio Crusoe, sozinho na natureza e sob o firmamento, passou tempos duros e complicados com o inumano, e eu estou no meio de uma multidão que produz resultados com muito mais dificuldade e relutância e sou parte dela” (p. 118-119).


Num primeiro olhar mais superficial e descuidado, Augie parece-nos uma folha ao vento, levado ao sabor das influências que o enredam. E ele está rodeado de gente manipuladora que o procura recrutar para os seus objectivos e realidade (Bellow começou por chamar ao seu romance «Vida entre maquiavélicos»). Porque todos andam à procura de alguém para partilhar a sua sina e Augie é um bom ouvinte, retirando a melhor polpa das apaixonantes personagens secundárias que o vão interpelando pelo caminho. Mas o nosso rapaz é salvo por um sentimento de oposição que traz dentro de si e “um enorme desejo de oferecer resistência e dizer «Não!» que não podia ser mais claro, uma sensação tão inequívoca como uma pontada de fome” (p. 162).

Com ligeireza, vai crescendo à deriva. Termina o secundário, apaixona-se, recusa ser adoptado por um casal abastado, envolve-se no contrabando de imigrantes, viaja clandestino em vagões de mercadorias com outros vagabundos, é preso por engano e pressente que “a escuridão existe. E é para todos.” (p. 239). Sofre as primeiras mortes e deslealdades. “E acontece também que, enquanto para defender outra pessoa falta vigor, para defender o gosto de ovo na boca não se medem esforços, e é assim que se distribui amor” (p. 341).


Todavia, Augie não é o desamparado que vai entrar para a estatística pelo lado do crime, da deliquência ou da desistência. Não, ele é demasiado teimoso e esperançoso para se deixar abater assim pela realidade. Fazendo da errância uma aliada, busca acertar em si, saltando de ocupação e interesse. É acometido pela febre da leitura mas a universidade não o entusiasma. “Afinal, quando o vento virava para sul e oeste e soprava dos currais dos matadouros trazendo a poeira das fábricas de fertilizantes para as belas trepadeiras que cobriam os muros, tinha a sensação de que tinha havido um salto de alguns dos estádios intermédios entre a bruta criação e a mente sublime, e que esse salto era muito grande” (p. 385). Gosta dos prazeres que o dinheiro proporciona mas não está disposto a sacrificar a sua liberdade para o obter. Em suma, Augie não alinha.


Através de um amor forte conhece a comunhão e pensa que a unidade humana talvez não seja um mas dois. Por isso, alinha com a sua amada e vai para o México treinar uma águia a caçar lagartos gigantes. A tarefa falha assim como a pureza dos sentimentos soçobra. Com o crânio e o orgulho ferido, Augie sangra durante algum tempo. “Porque o que não se sofre na carne é quase como um sonho, ou como disparos de luz, fogos-de-artifício que salpicam o céu e rodas de luz branca que espalham faúlhas numa terra triste” (p. 425-426).


Regressa a Chicago e tenta perceber que rumo dar à sua vida. Concebe utopias que são interrompidas pela guerra. Faz todos os esforços necessários para se alistar e combater. Pelo caminho, encontra o amor, concebe-o como definitivo e casa-se. Num acidente de guerra, naufraga e quase morre. Nas últimas páginas da sua narrativa, encontramo-lo na Europa, bem-sucedido financeiramente com negócios ilegítimos e lutando diariamente contra a faina de preocupações e segredos. Por amor e fé no humano.


“Ninguém imaginaria o esforço que há por detrás disso.
(…)
Stella chegou dos estúdios e foi tomar banho; gritou-me do quarto de banho:
- Amor, traz-me uma toalha, se fazes favor.
(…)
Sentei-me com o roupão pendurado no ombro e senti-me extremamente em paz (…). E é aí que está a coisa. É preciso um momento como este para percebermos como o nosso coração anda angustiado; e além disso, todo aquele tempo em pensávamos estar a vaguear ociosamente, estava a ser realizado um trabalho duríssimo (…). E nada disto pode ser visto do lado de fora. É tudo feito internamente. Isto acontece porque nos sentimos impotentes e incapazes de chegar a qualquer lugar que seja, incapazes de obter justiça ou desforra, e, então, dentro de nós, trabalhamos, guerreamos e combatemos, ajustamos contas, recordamos insultos, brigamos, reagimos, negamos, palramos, denunciamos, triunfamos, enganamos, superamos, vingamo-nos, choramos, persistimos, absolvemos, morremos e ressuscitamos. E fazemos isto tudo sozinhos! Onde é que está toda a gente? Dentro do nosso peito e da nossa pele, o elenco inteiro” (p.691).


No final do bildungsroman, Augie é já um homem feito, inteiro e que não saiu derrotado na empresa. Despede-se de nós com o seu riso optimista:


“Ainda estava gelado da caminhada pelos campos, mas, pensando em Jacqueline e no México, comecei a rir outra vez. Este é o animal ridens que há em mim, o animal que ri, sempre a ressurgir. O que há de tão risível em que Jacqueline, por exemplo, tão agredida por forças brutais, ainda se recuse a ter uma vida de desilusão? Ou será que rimos da natureza – incluindo a eternidade – por ela pensar que nos pode derrotar a nós e à força da esperança? Ná, não, creio. Nunca nos derrotará. Mas provavelmente a piada está nisto, em cima de nós ou dela, e o riso é um enigma que inclui os dois. Olhe-se para mim, viajando para todo o lado! Ora, sou uma espécie de Colombo daqueles que estão à mão de semear e acredito que podemos chegar até eles nesta terra incognita imediata que espalha diante de cada olhar. Pode muito bem dar-se o caso de eu ser um fracasso nesta linha de empreendimento. Provavelmente Colombo também deve ter pensado que era um fracasso quando o recambiaram acorrentado. O que não provou a inexistência da América” (p. 709).


Circulando com o mesmo à vontade pelos antros de Chicago como pelos salões dos abastado, buscando o amor e praticando as boas intenções com todo o mesmo vigor com que se envolve em negócios obscuros, Augie não pertence a nenhum dos lados da barricada da grande batalha da Humanidade. Não é dominado pela inocência nem pela malícia. É o espírito livre americano que Walt Whitman cantou nos seus versos e a sua narrativa segue as pancadas dessa liberdade num ritmo intenso, apaixonado, bem-humorado, como um longo improviso de jazz, onde se misturam referências da high culture e da mitologia com lições de esquemas das ruas escuras de Chicago: “primeiro tem de se testar aquilo de humano com que se consegue conviver. E se o mais elevado estiver naquela taberna vazia e abafada, com as moscas, o rádio quente a zumbir entre jogadas e a cerveja de Sox Park, o que poderá fazer-se senão aceitar a mistura e dizer que a imperfeição é sempre a condição do que encontramos? Do mesmo modo, os meus olhos arranhados verão sempre a grande beleza arranhada. E deuses podem aparecer em qualquer lugar” (p. 353).

sábado, 18 de junho de 2011

Ataques de existência



«Tem-se vinte e três anos ou trinta e um, ou ainda mais, e descobre-se ao atravessar uma rua ou quando cai o chaveiro, que, realmente, se existe. Contra isto, não há nenhuma protecção segura. Nem a teoria nem o álcool podem garantir uma prevenção impenetrável contra o ser-aí. Safer thinking, safer drinking – não serve em todos os casos» (p. 17).

«Deprimido torna-se quem transporta pesos sem saber para quê. Então, a vida torna-se demasiado pesada para si mesma, porque já não pode contar mais com o apoio do seu fundamento anónimo de resistência para se ir consolidando. O deprimido não acolhe a carga com um positivismo jovial, mas sim com um último esforço ruinoso (…), na depressão o individuo esgota-se na tentativa desesperada de querer aquilo que não quer. Os depressivos são estóicos clínicos por detrás dos quais se ocultam revolucionários fracassados» (p. 38-39).

domingo, 12 de junho de 2011

Com a alma junta




Estes dois senhores andam a restaurar a minha confiança na vida.