domingo, 21 de janeiro de 2024

Aballay

 


«Esta noche, Aballay, ha decidido despergarse de la tierra.

Bien es real que el llano, que es lo único que él conoce, no tiene columnas, ni nunca há visto más que las de un pórtico, en la iglesia de San Luis de los Venados.

Recuerda que para escabullirse de las discipinas de su madre, se trepaba a un árbol. Acepta que al presente está intentando lo mismo: huirse de su culpa, y busca adónde subir.

No le valdría, actualmente. Ni un ombú, si probara el refugio de su altura y follaje. Sería descubierto, sería apedreado, aunque no supieran la verdadera causa, solamente por portarse de una manera extraña. Tampoco nadie le alcanzaría un mendrugo.

Está firme, a conciencia, en el trato consigo mismo de separarse del suelo y llevar su vida en penitencia. […]

El fraile, dijo que montaban a la columna. Él, Aballay, es hombre de a caballo. Tempranito, a los primeros colores del día, Aballay monta en su alazán.

Le palmea con cariño el cuello y consulta: "¿Me aguantarás?" Supone que su compañero acepta y, mientras avanzan al trote suave, lo prepara: "Mirá que no es por un día... Es por siempre."»

domingo, 14 de janeiro de 2024

Israel e o Islão

 


«Abu Jafar Muhammad at-Tabari nasceu por volta de 839 na Pérsia setentrional e a sua obra de historiador e de teólogo seria esquecida, ou conhecida apenas pelos especialistas, se um sonho não tivesse refulgido na sua mente. Não queria contar apenas a história do seu tempo ou de uma época determinada, mas sim toda a história do mundo, começando pela criação até às guerras que, no seu tempo, ensanguentavam o mundo árabe. E também não queria relatar apenas uma versão de cada facto mas, sim, todas as versões que os homens contam de todos os acontecimentos, de tal forma que o seu livro se tornasse aquele entrelaçado de realidade e de eventualidade, de possibilidade e de impossibilidade, ou de possibilidades opostas, que constitui o universo. […]

Inspirado por estas vozes intermitentes, Tabari escreve as Notícias dos Profetas e dos Reis. […] Quando chegou o ano de 915 tinha escrito cento e vinte volumes. Tinha quase oitenta anos e podia morrer.

Esta obra gigantesca perdeu-se. Alguém fez dela um resumo em doze volumes, deixando de lado muitos dos factos e das versões que Tabari tinha referido, na sua vontade delirante de ser exaustivo. […] Desta tradução, a parte inicial, aquela que conta a Bíblia, é provavelmente a mais bela.

Espero que muitos leitores leiam apaixonadamente este livro: venerável como um texto sagrado e encantador como as Mil e Uma Noites. Ninguém melhor do que Tabari, devoto muçulmano sunita, pode revelar-nos a forma como as duas civilizações religiosas, que hoje em dia se combatem tão miseravelmente, se baseiam uma na outra, enroladas como duas árvores que unem as suas raízes. O Islão adoptou com amor as grandes figuras do Antigo Testamento: Adão, Abraão, José, Moisés. Salomão: apoderou-se delas, retocou-as, transformou-as; e, agora, temos a sensação de que a humanidade ouviu duas vezes a mesma música – sempre a mesma música, orquestrada de segunda vez de uma forma completamente diferente para nos deliciar com o seu esplendor e com as cores dos seus sons.

A primeira impressão que nos deixa o mundo islâmico é de ser muito mais vasto do que o mundo judeo-cristão. […]

No sopé da montanha de Qaf estendem-se duas imensas cidades de esmeralda, Jabalqa e Jabarsa. […]

Aqui Alá projectou uma história diferente da história humana: porque os habitantes de Jabalqa e Jabarsa não descendem de Adão e nunca ouviram falar dele nem de Satanás. […]

O mundo islâmico é ainda mais vasto no tempo. O nascimento de Adão que, no Antigo Testamento, encerra os seis dias da criação, em Tabari-Balami é precedido pela criação dos anjps, pela sua revolta, pela soberania de Satanás e pela insurreição que ocupam milhares de anos no início dos tempos. Depois nasce Adão. […]

Na Bíblia, a criação de Adão parece instantânea. […] Em Tabari-Balami tudo acontece muito lentamente. […] Depois, Deus ensina-lhe uma ciência secreta que não tinha ensinado aos anjos. Ensina ao gigante de argila o nome dos demónios e das fadas que se encontram na terra, dos quadrúpedes que estão no mar e fora do mar, dos animais que pastam, que roem, caminham, voam; o nome das coisas secas e das coisas húmidas, das coisas leves e das coisas pesadas; do Inverno, do Verão, do céu, da terra, das montanhas, da planície e do deserto. […]

Passados cem anos, Alá – o Benigno, o Misericordioso – perdoa a Adão. Desta vez, as lágrimas de alegria, caindo na terra, dão origem ao narciso, ao amaranto e a todas as flores da planície.

[…] A fábula tem uma dignidade imensa porque pertence ao reino de Salomão que, no mundo islâmico, assume uma importância que não é inferior à do reino de Abraão. […]

Com este soberano das fadas e dos ventos, abandonamos a terra firme onde vivem e sofrem os homens e penetramos no reino da feérie, que nenhuma obstáculo delimita. Já não é o Génesis o Êxodo ou os Reis com aquelas guerras sanguinárias, aquelas adorações ímpias e os longos descansos no deserto. Não há senão riqueza, esplendor e maravilhas. […]

Nesta grande tapeçaria, penso que aquilo de que os leitores mais gostarão seja sobretudo uma frase: “A primeira coisa que Alá criou foi a pena e tudo aquilo que quis criar disse à pena que o escrevesse. Depois, quando se pôs a escrever, Alá criou o céu, a terra, o sol, a lua e os astros e, então, a esfera terrestre começou a girar”.»


domingo, 24 de setembro de 2023

Coração em chamas


 "Escrever é defender a solidão em que se está; é uma acção que brota somente de um isolamento afectivo, mas de um isolamento comunicável, em que exactamente, pela distância de todas as coisas concretas, se torna possível um descobrimento de relações entre elas.

[..]

E dessa derrota. derrota íntima, humana, não de um homem particular, mas do ser humano, nasce a exigência de escrever. Escreve-se para reconquistar a derrota sofrida sempre que falámos longamente.

E a vitória somente pode dar-se ali onde se sofreu a derrota, nas mesmas palavras.

[..]

Salvar as palavras da sua falsa pompa, da sua vacuidade, endurecendo-as, forjando-as, perduravelmente, é o que é procurado, mesmo sem o saber, por quem deveras escreve.

[..]

Que é o que quer dizer o escritor e para quê dizê-lo? Para quê e para quem?

Quer dizer o segredo; o que não pode dizer-se com a voz por ser demasiado verdade; as grandes verdades não costumam dizer-se a falar. A verdade do que se passa no secreto seio do tempo é o silêncio das vidas, e que não pode dizer-se. «Há coisas que não podem dizer-se», é verdade. Mas isto que não pode dizer-se é o que tem de escrever-se.

Descobrir o segredo e comunicá-lo, são os dois acicates que movem o escritor.

[..]

Na sua solidão descobre-se ao escritor o segredo, não completamente, mas num devir progressivo.

[..]

A verdade precisa de um grande vazio, de um silêncio onde possa alojar-se, sem que nenhuma outra presença se misture com a sua, desfigurando-a.

[..]

Só dá a liberdade quem é livre.

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Albânia ou Ilíria











 

Incipit Vita Nova ou a Vida Vivificante


María Zambrano. Dela posso dizer: das melhores coisas que li nos últimos tempos e em toda a minha vida. O seu pensamento é denso, funde alquimicamente filosofia e poesia, e alude a tudo o que eu venho pensando, ou melhor, pressentindo nos últimos anos da minha aventura. Deixo dois excertos mas tudo é profundo e delicioso:

"A clareira do bosque  é um centro onde nem sempre é possível entrar; da extrema olha-se para ela e o aparecimento de algumas pegadas de animais não ajuda a dar esse passo. É outro reino que uma alma habita e guarda. Algum pássaro avisa e chama para ir até onde a sua voz for marcando. E obedece-se a ela; depois não se encontra nada, nada que não seja um lugar intacto que parece ter-se aberto nesse único instante e que nunca mais se dará assim. Não há que procurá-lo. Não há que procurar. É a lição imediata das clareiras do bosque: não há que procurá-las, nem tão-pouco procurar nada nelas. [...]"

"[...]. Algum animal sem fábula olha nesta lonjura. Algum farrapo desprende-se de uma brancura não vista, algo que não é signo. Nada é signo, como se se vislumbrasse um reino onde o que significa e o significado fosse um só e o mesmo, onde o amor não tenha que ser amparado nem a natureza ande como uma ovelha perdida ou surpreendida que aparece e se esconde."

sábado, 4 de fevereiro de 2023

em louvor do vento

 Às vezes talvez uma simples dor no dedo mínimo de um pé ou o brilho nos olhos

                                                                                                                     de uma mulher

que passa e passa decididamente decerto para sempre e sinto ser possivelmente

                                                                                                                                 essa mão

inconfundível devido a uma determinada pressão no ombro desde sempre esperada

sim talvez essa dor ou esse brilho ou esse brilho e essa dor simultaneamente

distraem-me do vento que roda lá fora que roda loucamente lá fora que

roda como se rodar fosse para ele uma verdadeira maneira de ser

que roda envergando todas as suas vestes de inúmeras peças tufadas compridas e                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          transparentes

e ascende das areias invariavelmente passivas da praia humilde

feminina sensível às constantes embaixadas envolventes do mar

até às pedras altas do velho forte altas e altivas no cimo da sua altura e da sua idade

na forma de um vulto esguio redondo e rodopiante de pinheiro ou simples

                                                                                            ampulheta ou clepsidra

O vento a essas horas incertas perdidas da noite quando a obscuridade

desde há tanto que mais parece desde sempre cobriu com o seu manto

todas as coisas designadamente os compridos corpos humanos

e abafou os miúdos inumeráveis ruídos que costumam acompanhar a luminosidade

                                                                                                                                  cega do dia

entoa então por vezes nas árvores e nas casas e em coisas como os arames e as mais

                                                                                                        variadas saliências da terra

o seu canto levíssimo levitante vagamente triste cortante mais cortante mesmo

que a faca cujo gume acaba de sair das múltiplas mãos dos móveis amoladores

um canto que faz lembrar o uivo de certos animais feridos talvez na raiz da sua

                                                                                                                      sensibilidade

ou a súbita irrupção dos primeiros violinos numa sala abafada pelo veludo das

                                               cadeiras ou as peles das senhoras da alta sociedade

um canto próprio inconfundível decerto inolvidável para quem uma noite o ouviu

dificilmente dicionarizável porque a essas horas os académicos dormem

sonhando talvez com o discurso de ingresso de um novo membro na academia

e o vento é de uma sociabilidade altamente duvidosa e canta canta nas dobras da

                                                                                                                                          noite

Eu estou deitado e então sinto a ponta dos pés nos lençóis recém-mudados

sinto como mais uma parte do meu corpo os próprios lençóis

e imediatamente faço calar o coro que na rádio canta o messias de haendel

e abre assim um espaço que não é o do meu quarto mas sim o da catedral

de toledo aconchegada na penumbra de certas tardes dos fins de maio

O vento vem na sua suavíssima voz e toda a gente morre de súbito para mim

os cuidados deitados talvez comigo desaparecem inspiro profundamente

e sinto-me tão bem que até me parece penoso dizer que me sinto tão bem

não vá eu deixar porventura de me sentir assim tão bem não vá o vento calar-se

Deve haver algures no meu corpo um lugar expressamente reservado para a voz

                                                                                                                                do vento

uma cavidade qualquer assim como as salas dos aeroportos destinadas às pessoas

                                                                                                                  muito importantes

mas esta minha só para o vento a única pessoa muito importante para mim

As ramadas das árvores agora sim agora devem viver

agora devem manifestar vivamente que vivem

haverá talhadas luminosas e brancas na crista das inúmeras ondas do mar da baía

e eu oiço completamente o vento e ouvir o vento é suficiente para me sentir vivo

para sentir as amplas asas da paz abertas no peito no leve leque das suas penas

Desvaneceram-se decididamente na vasta sede da noite

as rápidas mulheres munidas de imensos pés que sem reservas amei

jamais imprimi palavra alguma nas páginas brancas do papel tão brancas e

                                                                                                sucessivas como dias

não tenho passado nem coisas quaisquer a fazer acabo até agora mesmo de nascer

Neste momento sou apenas sou pelo menos desde os pés da cama até à

                                                                           cabeceira a voz vasta do vento

e a minha cama range como quando pomos os pés nesses velhos sobrados onde

                                                                                                 se deixa grelando a batata

cresce o ritmo da minha respiração o pulso bate-me cada vez mais apressadamente

volto-me vagamente vagarosamente mais ou menos lá para donde pressinto que

                                                                                                                           o vento vem

é possível que morra de um momento para o outro quando menos espere

e a cabeça me fique a baloiçar ao vento de um lado para o outro primeiro

de parede para parede do quarto depois lá fora entre leste e oeste

Há um vento impetuosamente solto na noite da minha vida um vento

mais louco do que mulheres esbeltas e lentas nos seus longos cabelos

e sinto que as pontas dos pés me chegam mais longe cada vez mais longe

e não leio na agenda nenhumas horas marcadas nem sei de locais de encontro

não necessito tomar o metro pedir um gin tónico que vá bebendo gole

a gole no bar deserto pensando talvez que ali esteve um dia hemingway esperando

                                                                                                                           talvez como eu

saboreando o leve sabor amargo do gin desfazendo o limão vendo as cortinas

                                                                                                           esvoaçar ao vento

O vento vibra na sua voz de vento alarga aos quatro cantos

aos inumeráveis recantos da noite as espirais translúcidas do seu vulto

infunde uma vida irritante saltitante e irrequieta em coisas

como latas amolgadas e enferrujadas enferrujadas precisamente nas partes amolgadas

como madeiras apodrecidas pelo salitre e pela chuva como portinholas

                                                                                                   desengonçadas

o vento sopra na areia enverga as vestes cheias de folhos e dobras

da areia possivelmente para ter um mínimo de corpo e tornar-se visível

e bailar rodopiando no largo à volta do vulto do cruzeiro

e caminhar caminhar cada vez mais caminhar cada vez a passos mais largos

e proceder à sistemática ocupação dos mais recônditos recantos da terra

Vejo vislumbro através da janela levemente entreaberta

que o vento circula a muitos quilómetros por hora na estreita estrada

que o vento enche preenche o espaço arenoso indeciso e nublado entre estas poucas

                                                                                                                         casas sonâmbulas

que passa a mão inquieta de muitos dedos abertos dispersos e diluídos

primeiro aqui pela aldeia depois possivelmente por toda a terra

e não tardará talvez a elevar vales a aplanar muitos dos montes

num trabalho perseverante e esgotante que são joão baptista e cristo

aliás ocupados com outras coisas se devem ter visto impotentes para levar a cabo

E eu aqui sem nenhuma memória abandonado até por estas paredes ainda há

                                                                                                        pouco à minha volta

apenas dispondo deste resto de corpo onde o vento pode à vontade

vibrar quando quiser até quando quiser e assim vibrando

demonstrar que existe que vive e dizer eu sou o vento e nasci em tantos

do tal em tal sítio e a sua afirmação valer como um bilhete de identidade

Creio que morreria se não pressentisse não sei bem como

mas através de um latejo levemente diferente do coração

que o vento já tão irrequieto esta noite ficaria talvez triste

por ver desaparecer não um dos poucos amigos e admiradores veneradores

atentos e obrigados que talvez sinceramente tenha

não um espectador interessado do longo e variado festival que nestes momentos

                                                                                                                                apresenta

mas uma coisa mais um obstáculo mais a demolir e a vencer

Tenho oito cadeiras trabalhosamente entrelaçadas no distante vime da juventude

quando pelas tardes de calma e calor me banhava na vala junto ao moinho

e os vimes os mais ginasticados emissários da vegetação das margens

cortavam em tiras a sombra que poisava ao de leve na água

tenho essas oito cadeiras disponho-as em fila com a seca solenidade de um

                                                                                                                    cerimonial

e rígido e digno da minha estatura liberta enfim das volumosas volutas dos

                                                                                                                 barbitúricos

aguardo cheio de calma que o vento se sente multiplicadamente nas oito cadeiras

                                                                                                                                 que tenho

Talvez o vento levante a voz aumente ainda mais de volume

convoque ventos de outros espaços e sopre na força irresistível e tempestade

e venha violentamente até mim e varra da minha casa

e varra da minha vida tudo absolutamente tudo o que não seja o vento

e sejam talvez coisas planas e chatas e domésticas e imensamente

miúdas e não disponham desta voz côncava do vento

Há nuvens negras que se deslocam apressadamente para o sul

há filas de canas que oscilam e fazem ao vento a elegante reverência da vassalagem

ou pelo menos da boa educação tudo se anima vibra soa na noite

O vento vai vencendo obstáculos dispõe cada vez de maior espaço

anexa pela violência territórios que ainda há pouco lhe opunham certa resistência

ensaia agora a sua vastíssima valsa na ampla sala da noite

canta uiva produz esse inimitável som impossível de procurar nas páginas dos

                                                                                                                        dicionários

afina a voz para as mais agudas notas do seu canto dilacerador e íntimo

Virá o dia muitos corpos afastarão finalmente da fronte os últimos véus do sono

muitos olhos procurarão a luz sentirei mais minhas as pontas dos pés

o canto quezilento e quebradiço dos pássaros no pátio nas árvores nos beirais

disputará o lugar à voz do vento nos meus ouvidos

Voltarão primeiro um por um depois em bandos os cuidados

as pontas dos cabelos compridos de mulheres jovens entrar-me-ão para a boca

mas é provável é mesmo muito provável que algures nalguma parte profunda e

                                                                                                        perdida do meu corpo

continue vazia arejada e arrumada com o pó limpo uma sala

exclusivamente reservada à única pessoa verdadeiramente importante

até que um dia eu para sempre me veja disperso no vento e não passe

talvez de um secundaríssimo instrumento na complexa e simples orquestra do                                                                                                                                  vento


ruy belo

domingo, 22 de janeiro de 2023

México

Essa lua enlutada, esse desassossego

A convulsão de dentro, ilharga

Dentro da solidão, corpo morrendo

Tudo isso te devo. E eram tão vastas

As coisas planejadas, navios,

Muralhas de marfim, palavras largas

Consentimento sempre. E seria dezembro.

Um cavalo de jade sob as águas

Dupla transparência, fio suspenso

Todas essas coisas na ponta dos teus dedos

E tudo se desfez no pórtico do tempo

Em lívido silêncio. Umas manhãs de vidro

Vento, a alma esvaziada, um sol que não vejo.


Também isso te devo.


Hilda Hilst

domingo, 15 de janeiro de 2023

em Creta, com o Minotauro




EM CRETA, COM O MINOTAURO


I


Nascido em Portugal, de pais portugueses,

e pai de brasileiros no Brasil,

serei talvez norte-americano quando lá estiver.

Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,

se usam e se deitam fora, com todo o respeito

necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.

Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria

de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações

nasci. E a do que faço e de que vivo é esta

raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo

quando não acredito em outro, e só outro quereria que

este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,

espero envelhecer

tomando café em Creta

com o Minotauro,

sob o olhar de deuses sem vergonha.


II


O Minotauro compreender-me-á.

Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida.

É metade boi e metade homem, como todos os homens.

Violava e devorava virgens, como todas as bestas.

Filho de Pasifaë, foi irmão de um verso de Racine,

que Valéry, o cretino, achava um dos mais belos da "langue".

Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num novelo de que se lixou.]

Teseu, o herói, e, como todos os gregos heróicos, um filho da puta,

riu-lhe no focinho respeitável.

O Minotauro compreender-me-á, tomará café comigo, enquanto

o sol serenamente desce sobre o mar, e as sombras,

cheias de ninfas e de efebos desempregados,

se cerrarão dulcíssimas nas chávenas,

como o açúcar que mexeremos com o dedo sujo

de investigar as origens da vida.


III


É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado

a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia

aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,

como toda a gente, não sabe português.

Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.

Conversaremos em volapuque, já

que nenhum de nós o sabe. O Minotauro

não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,

de toda esta merda douta que nos cobre há séculos,

cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos

os escravos de outros. Ao café,

diremos um ao outro as nossas mágoas.


IV


Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta

de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver vergonha]

de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,

teremos nenhuma pátria. Apenas o café,

aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,

da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café

contudo e que eu, com filial ternura,

verei escorrer-lhe do queixo de boi

até aos joelhos de homem que não sabe

de quem herdou, se do pai, se da mãe,

os cornos retorcidos que lhe ornam a

nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,

à Palestina, e outros lugares turísticos,

imensamente patrióticos.


V


Em Creta, com o Minotauro,

sem versos e sem vida,

sem pátrias e sem espírito,

sem nada, nem ninguém,

que não o dedo sujo,

hei-de tomar em paz o meu café.


Jorge de Sena