quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Um bom livro é difícil de encontrar


Como no amor, talvez existam livros que se impõem como paixões maiores, diminuindo a eventualidade de arrebatamentos fátuos.
Tenho lido muito. Quando me deito na cama para descansar os ossos dos múltiplos alugueres quotidianos e ler, é como se o tempo se dilatasse de forma milagrosa. Às vezes, consigo ler um livro inteiro nessa hora. No entanto, jamais pouso numa palavra para voar e adormeço invariavelmente como que envolta numa tristeza pós-coital, não sabendo o que fazer desse novo silêncio que fica após cada livro. Nem sabendo como o nomear: deserto, morte ou paz?
Sinto-me uma leitora insípida, frígida como uma estátua. E é tão difícil viver sem um livro bonito. A vida parece mais absurda e os dias surgem aflitivamente habituais, como se toda a hipótese de uma cumplicidade se tornasse insustentável. Tento entender as razões desta esterilidade. A primeira que me ocorre é culpar o Crime e Castigo de Dostoiévski. O meu livro mais amado. Durante anos temi a sua leitura, dezenas de vezes li o primeiro capítulo e dezenas de vezes desisti, tomada por um mal-estar que passava das letras para a minha pele.
Foi na sequência de um desgosto amoroso que consegui ter força para me confrontar com a revolta de Raskólnikov. Rodion Romanovitch Raskólnikov, ainda hoje não consigo dizer o seu nome sem me deliciar com a sua subtil aspereza. Nunca me senti tão próxima, tão fisicamente solidária com uma personagem como nesse Outono. Com o coração em carne viva, nada importava, porque todas as noites me reunia nos teus braços, Ródia, e era-me impossível não te amar no teu desacordo íntimo com o mundo e orgulho ferido.
- Agora só te tenho a ti – acrescentou Raskólnikóv. – Vamos juntos... Eu vim a ti. Somos ambos malditos, então vamos juntos!
- Vamos aonde – perguntou cheia de medo e, involuntariamente, deu um passo para trás.
- Como posso saber? Só sei, tenho a certeza, que iremos pelo mesmo caminho, e mais nada. Até ao mesmo destino!
Sónia olhava e não percebia nada. Apenas sabia que ele estava muito infeliz, infinitamente infeliz.
- Ninguém, deles, compreenderá nada se lhes falares – continuou Raskólnikov -, e eu compreendi. Preciso de ti, por isso aqui estou.
Nunca mais amei um livro depois do Ródia. O nosso affaire d’amour terminou quando ele partiu e encontrou a redenção. Durante meses, esperei com calma o mesmo destino, julgando que sendo camaradas no nosso desacordo, teríamos forçosamente de seguir juntos pelo mesmo caminho. Mas a redenção não me aconteceu ainda.
E é difícil viver sem um livro bonito. A solidão não encontra aconchego e fica-se refém da melancolia. Temos, portanto, um primeiro diagnóstico, talvez demasiado leviano: a ligação melancólica com um único livro. Segundo Freud, a melancolia caracteriza-se por uma identificação narcísica do objecto perdido com o ego que passa a comandar todos os investimentos da líbido. Ocupado por um luto quase impossível, o melancólico torna-se incapaz para o amor e para o trabalho.
Numa primeira abordagem, o diagnóstico parece válido. Ainda segundo Freud, o melancólico não tem qualquer tipo de vergonha ou pudor, denotando uma propensão extraordinária para a confissão das suas infâmias. Uma parte do ego toma outra parte por objecto, avaliando-a criticamente. Os inúmeros stripteases que tenho feito no meu blog seriam justificados por essa premente tendência a comunicar-me que encontra satisfação apenas no auto-desnudamento. Além disso, o complexo melancólico é indissociável da mania e é bem verdade que durante muito tempo habitei esse pólo, devorando compulsivamente vários livros sem me ligar a nenhum.
Sempre dependi da beleza para viver. E sempre que a encontrei, consumi-a com toda a voracidade que era capaz, sem qualquer tipo de avareza. Nunca contei que me faltasse. Mas falta-me. Talvez tenha abusado das suas doses, apunhalando o meu coração até restar apenas uma ferida aberta. E é difícil sobreviver num país e tempo onde tudo escasseia, sobretudo a beleza. Será este o meu crime e terei de suportar o seu castigo até encontrar a redenção.

Até lá, vou prevaricar com vários livros. Mesmo que tudo me pareça detrito. Porque é preciso escoar o luto que sucede aos grandes amores. E não há nada mais temível que uma mulher de um só livro.

sábado, 14 de setembro de 2013

À espera da primavera

Ainda não sou flor.
Que se cheire ou se leve para casa e se ponha numa jarra junto a uma janela.
Criei já algumas raízes, é verdade, regadas com o sangue do meu coração, à força de tanto o apunhalar com a voracidade de uma beleza maior.
De tal modo que, às vezes, penso que já não tenho coração. E rio e ironizo, como quem perdeu um acessório fora de moda.
Mas não é verdade: embora raramente, ainda me acontece ser acometida por uma comoção imensa numa rua qualquer. Uma comoção que chega sem aviso e ameaça ceifar-me qual caule indefeso.

E então sei e sinto que uma mulher não pode morrer sem primeiro florir.