quinta-feira, 26 de julho de 2012

A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer



"(...) de uma coisa estou certo: o ser humano tem uma necessidade de consolo impossível de satisfazer.
Como posso, assim, viver a felicidade?
Procuro o que me pode consolar como o caçador persegue a caça, atirando sem hesitar sempre que algo se mexe na floresta. Quase sempre atinjo o vazio, mas, de tempos a tempos, não deixa de me tombar aos pés uma presa. Célere, corro a apoderar-me dela, pois sei quão fugaz é o consolo, sopro dum vento que mal sobe pela árvore.
Debruço-me.
Tenho-a! Mas tenho o quê, entre estes dedos?
Se sou solitário - uma mulher amada, um desditoso companheiro de viagem. Se sou poeta ou prisioneiro - um arco de palavras que com assombro reteso, uma súbita suspeita de liberdade. Se sou ameaçado pela morte ou pelo mar - um animal vivo e quente, coração que pulsa sarcástico; um recife de granito bem sólido.
Sendo tudo isso, é sempre escasso o que tenho!
As formas de consolo: se procuro umas, outras há que me perseguem sem que as convoque. Sussurram, odiosas. Enchem-me o quarto de murmúrios:
O prazer: - «Entrega-te sem restrições»!
O talento: - «Usa-me tão mal como a ti mesmo»!
A minha sede de gozo: - «Só os gulosos sabem viver»!
A solidão: - «Despreza os homens»!
Este desejo de morte: - «Fere, Mata»!

Stig Dagerman, A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer

segunda-feira, 23 de julho de 2012


Não há devassidão maior que o pensamento.
Essa diabrura prolifera como erva daninha
num canteiro demarcado para margaridas.

Para aqueles que pensam, nada é sagrado.
A ousadia de chamar as coisas pelos nomes,
a dissolução da análise, a impudicícia da síntese,
a perseguião selvagem e debochada dos factos nus,
o tactear indecente de temas delicados,
a desova das idéias – é disso que eles gostam.

À luz do dia ou na escuridão da noite
se juntam aos pares, triangulos e círculos.
Pouco importa ali o sexo e a idade dos parceiros (…)

Preferem o sabor de outros frutos
da árvore proibida do conhecimento
do que os traseiros rosados das revistas ilustradas,
toda essa pornografia na verdade simplória (…)

É chocante em que posições,
com que escandalosa simplicidade
um intelecto emprenha o outro!
Tais posições nem o Kamasutra conhece (…)”

wislawa szymborska, opinião sobre pornografia

"(...) Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa."
 
Clarice Lispector, Felicidade Clandestina

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,



Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,


Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco


Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,


Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,


Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,


Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?


Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,


Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.


Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,


Sempre, sempre, sempre,


Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,


Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...






Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,


Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.


Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.


Em quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!


Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!






À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada.


À direita o campo aberto, com a lua ao longe.


O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,


É agora uma coisa onde estou fechado,


Que só posso conduzir se nele estiver fechado,


Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.






À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.


A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.


Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.


Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima


Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.


Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha


No pavimento térreo,


Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,


E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.


Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?






Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?






Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,


Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,


Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,


E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,


Acelero...


Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,


À porta do casebre,


O meu coração vazio,


O meu coração insatisfeito,


O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.






Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,


Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,


Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,


Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...


Álvaro de Campos

domingo, 15 de julho de 2012

de qualquer dos modos vais acabar com o fígado podre e o coração partido


“Hesito em confessá-lo, com medo de proferir ainda alguns palavrões: parece-me bem que senti nessa altura, a necessidade de um amor. Obsceno, não é? Experimentava, no entanto, um sofrimento surdo, uma espécie de privação que me tornou mais disponível e me permitiu, meio forçado, meio curioso, tomar alguns compromissos. Pois que tinha necessidade de amar e ser amado, julguei-me apaixonado. Por outras palavras, fiz de parvo.

(…)

Tomei-me assim de uma falsa paixão por uma pateta encantadora, que tinha lido tão bem a literatura cor-de-rosa que falava do amor com a segurança e a convicção de um intelectual anunciando a sociedade sem classes. Tentei falar também do amor e acabei por eu próprio me persuadir. Até, pelo menos, ao momento em que ela se tornou minha amante e eu compreendi que a literatura cor-de-rosa, que ensinava a falar do amor, não ensinava a praticá-lo. Depois de ter amado um papagaio, tive de dormir com uma serpente. Procurei, pois, noutro sítio, o amor prometido pelos livros e que nunca encontrara na vida.

(…)

Fora do desejo, as mulheres aborreceram-me para além de tudo o que seria de esperar e, visivelmente, também eu as aborrecia. Nada de jogos, nada de teatro, eu estava, sem dúvida, dentro da verdade. Mas a verdade, caro amigo, é uma estopada.

Desesperado do amor e da castidade, lembrei-me, enfim, de que restava o deboche, que substitui muito bem o amor, faz calar os risos, restabelece o silêncio e, sobretudo, confere a imortalidade. Num certo grau de embriaguez lúcida, deitado, alta noite, entre duas raparigas, e vazio de qualquer desejo, a esperança já não é uma tortura, repare, o espírito reina sobre todos os tempos, a dor de viver está para sempre afastada.

(…)

O álcool e as mulheres forneceram-me, devo confessá-lo, o único alívio de que era digno. Confio-lhe este segredo, caro amigo, não receie utilizá-lo. Verá então que o verdadeiro deboche é libertador porque não cria nenhuma obrigação (…). Deixa-se, ao lá entrar, tanto o medo como a esperança (…) Servi-me, em todo o caso, sem medida desta libertação (…). Passarei isso por alto: o senhor sabe que até pessoas muito inteligentes tiram glória do facto de poderem esvaziar uma garrafa a mais que o vizinho. Eu teria podido, enfim, encontrar a paz e libertar-me nesta dissipação. Mas, mesmo aí, encontrei um obstáculo em mim mesmo. Foi o fígado, desta vez, e um cansaço tão horrível que ainda não me largou. Brincamos aos imortais e ao fim de algumas semanas já nem sequer sabemos se nos poderemos arrastar até ao dia seguinte.”

A cantiga do bandido explicada às criancinhas


“Nestas relações, aliás eu satisfazia ainda outra coisa, além da sensualidade: o meu amor do jogo. Eu amava nas mulheres as parceiras de um certo jogo, que tinha, pelo menos, o sabor da inocência. Veja bem, não posso suportar o tédio e só aprecio na vida as distracções (…).

Por conseguinte, eu ia no jogo. Sabia que elas gostavam que se não fosse muito depressa ao fim. Antes de tudo, era precisa conversa, ternura, como elas dizem (…). Mudava muitas vezes de papel, mas tratava-se sempre da mesma peça. Por exemplo, o número da atracção incompreensível, do «não sei quê», do «não há razões, eu não desejava ser atraído, estava, no entanto, cansado do amor, etc…» era sempre eficaz, posto que seja um dos mais velhos do repertório. Havia também o da felicidade misteriosa que nenhuma outra mulher jamais nos deu, que é talvez sem futuro, de certeza mesmo (…). Eu tinha aperfeiçoado, sobretudo, uma pequena tirada, sempre bem recebida, e que o senhor aplaudirá, tenho a certeza. O essencial desta tirada consistia na afirmação dolorosa e resignada, de que eu não era nada, não valia a pena prenderem-se a mim, a minha vida estava alhures, passava ao lado da felicidade de todos os dias, felicidade que talvez eu preferisse a tudo o resto, mas, enfim, era tarde demias. Sobre as razões deste atraso decisivo, eu guardava segredo, pois sabia que era melhor dormir com o mistério. Em certo sentido, aliás, acreditava no que dizia, vivia o meu papel. Não admira, pois, que as minhas parceiras se entusiasmassem também com o delas. As mais sensíveis das minhas amiguinhas esforçavam-se por me compreender e este esforço levava-as a melancólicos abandonos. As outras, satisfeitas por verem que eu respeitava as regras do jogo e tinha a delicadeza de falar antes de agir, passavam sem esperar às realidades. Tinha então ganho duplamente, pois que, além do desejo que sentia por elas, satisfazia o amor que eu me dedicava, verificando de cada vez os meus belos poderes.

Tanto isso é verdade que, mesmo se acontecia que algumas me não dessem senão um prazer medíocre, eu tratava, contudo, de reatar com elas, de longe em longe, animado, sem dúvida, por este desejo singular que é favorecido pela ausência, seguida de uma cumplicidade de súbito reencontrada, mas também para verificar que os nossos laços se mantinham ainda e que só a mim competia estreitá-los. Por vezes, chegava mesmo ao ponto de lhes fazer jurar que não pertenceriam a nenhum outro homem, para aplacar de uma vez para sempre, as minhas inquietações sobre este ponto. O coração, todavia, não tomava parte alguma nesta inquietação, nem a imaginação tão-pouco. Uma certa espécie de pretensão estava, com efeito, tão encarnada em mim que eu tinha dificuldade em imaginar, apesar da evidência, que uma mulher que havia sido minha pudesse alguma vez pertencer a outro. Mas este juramento que elas me faziam libertava-me, prendendo-as. Desde o momento que não pertenciam a ninguém, podia então decidir-me a romper com elas, o que, de outra maneira, me era quase sempre impossível. A verificação, no que lhes dizia respeito, estava feita de uma vez para sempre e o meu poder assegurado por muito tempo. Curioso, não? É, no entanto, assim, meu caro compatriota. Uns gritam: «Ama-me!» Outros: «Não me ames!». Mas uma certa raça, a pior e a mais infeliz: «Não me ames e sê-me fiel!»

Somente, aí está, a verificação nunca é definitva, é preciso recomeçá-la com cada ser. À força de recomeçar, contraem-se hábitos. Bem depressa o discurso nos surge sem pensarmos nisso, segue-se o reflexo: encontramo-nos um dia numa situação de possuir sem verdadeiramente desejar. Acredite-me, para certos seres, pelo menos, não possuir o que se não deseja é a coisa mais difícil do mundo.”


Albert Camus, A Queda

terça-feira, 10 de julho de 2012

Ask the Dust


“Aí vai o Bandini pela rua fora; não é alto mas é robusto, tem orgulho nos seus músculos, cerra os punhos para admirar a rija alegria dos bíceps, é absurdamente destemido esse Bandini, nada receia além do que não conhece neste mundo de misteriosos prodígios. Os mortos ressuscitam? Os livros dizem que não, a noite grita que sim. Tenho vinte anos, cheguei à idade da razão, preparo-me para percorrer as ruas da cidade à procura de uma mulher. Terei a alma já manchada, será melhor voltar para trás, será que um anjo me protege, será que as preces da minha mãe me tranquilizam, será que as preces da minha mãe me aborrecem?

[…]

Então que hei-de fazer? Devo erguer a boca aos céus, gaguejar ou balbuciar em voz temerosa? Devo bater no peito nu como num tambor ressonante para atrair a atenção do meu Cristo? Ou não será melhor e mais razoável que me resguarde e continue o meu caminho? Haverá inquietação e desejo ardente; haverá solidão, mitigada apenas pelas lágrimas que hão-de correr para me adoçarem os lábios secos. Mas haverá também consolação e haverá uma beleza semelhante ao amor de uma qualquer rapariga morta. Haverá riso, um riso contido, e uma serena espera nocturna e um vago receio da noite que trará consigo o ávido e injurioso beijo da morte. Depois será noite, o tempo dos doces óleos das praias do meu mar, derramados sobre os meus sentidos pelos capitães que abandonei no ímpeto sonhador da minha juventude. Mas serei perdoado por isso e por outras coisas, por Vera Rivken e pelo incessante adejar das asas de Voltaire, por me ter detido a ouvir e a observar essa ave fascinante, por tudo isso serei perdoado quando regressar à minha terra natal junto ao mar.”

Junkie literária à míngua


Junho foi passado com a Ressurreição de Tolstoi: um livro demasiado beato que não aquece nem arrefece. Não há nada mais terrível que um coração despido de paixão e de livros, sobretudo para quem está habituado a doses elevadas de ambos. É como uma fome que desorienta e mói e tudo varre. Como uma morte lenta e estudada. Reconheço que sou viciada nas sensações de vertigem e que tenho sérios problemas em sentir-me viva quando não sinto um tambor rugir descompassado no peito. E que até posso abdicar das ideias regadas a risos excessivos, das doses pouco recomendáveis de whisky e das histórias de amor fodido; agora sem livros, sem os livros grandes, belos e cruéis sinto-me como um trapo amarfanhado a um canto insípido da vida menor e isso é intolerável e sufoca como um verão desperdiçado numa aldeia do tédio.

Eu era novo, passava fome, bebia e tentava ser escritor. Fazia a maior parte das minhas leituras na Biblioteca Pública de Los Angeles, no centro da cidade, mas nenhum desses livros parecia ter qualquer relação comigo, ou com as ruas, ou com as pessoas que me rodeavam (…). Para encontrar algum risco, alguma paixão, era necessário recuar aos escritores russos anteriores à Revolução. Havia excepções, mas eram tão raras que depressa se esgotavam, deixando-nos a olhar para estantes e mais estantes cheias de livros incrivelmente enfadonhos. Apesar de um legado de muitos séculos e de todas as suas vantagens, os autores modernos não eram, afinal, grande coisa.

Tirava das prateleiras livro atrás de livro. Porque é que ninguém dizia nada? Porque é que ninguém gritava?”

Charles Bukowski



“et se la pensée était autant une affaire de peau que de cerveau?”

Didier Anzieu, Le Moi-peau

segunda-feira, 2 de julho de 2012

A MULHER





“Dá-me algo lento e fino
como uma faca nas costas
E se nada tens para dar-me
dá-me tudo o que te falta!
CARLOS EDMUNDO DE ORY
(…)
Quero uma mulher assim, de silêncios
venenosos, que me morda o tendão
do ombro e da língua, e abuse
de declarações de guerra e paz,
vá para o inferno e regresse
no meio de um mar de boatos
exibindo gloriosos arranhões,
e me arraste em jogos de malícia,
me esconda o coração e me deixe
doido dias inteiros atrás de pistas
e coordenadas.

Não quero uma mulher explicada,
prefiro o assombro. Antes aturar
mistérios, teimas, transes e jejuns,
mesmo às vezes a troça e o desprezo,
e que quando se sinta enfastiada
fuja sem aviso e se feche parindo
a escuridão.

Que me adore e se farte, me empurre
do alto das escadas, e se ria perdidamente
ou chore e me asfixie devagarinho
com os primeiros cabelos que lhe
nasçam brancos. Quero que até esse dia
em que se chegará tristemente
para pedir-me a mão logo depois
que o seu rosto se retire para sempre
de todos os espelhos.

No fim, nem me importa
que nunca venha a cruzar-se comigo,
que isto eventualmente ainda seja eu
a roubar acessórios em lojas
de senhora. Pelo menos não será
uma coisa que se explique nem alguém
que tenha a descortesia de dizer por aí
que chegámos a um entendimento.

Diogo Vaz Pinto

domingo, 1 de julho de 2012

Hurricane



Welcome to the inner workings of my mind
so dark and foul I can’t disguise
can’t disguise
nights like this I become afraid of the darkness in my heart
hurricane