quarta-feira, 20 de outubro de 2010

MORTE NA PÉRSIA



Morte na Pérsia é um dos livros mais belos e tristes que li na minha vida. Escrito por uma mulher no fim das suas forças, o livro fala de uma vertigem interior, de uma paisagem íntima chamada pérsia e morte. O que acontece quando o medo se aloja no coração?

As duas conversas com o Anjo são das coisas mais sublimes que já li.

Depois de ler este livro pequeno, fiquei com o coração cheio de Arte, Beleza, Medo e Solidão. Assim mesmo, com letras grandes. Mas o Medo e a Solidão já eram inquilinos antigos. Também o meu coração se podia chamar Pérsia.

«Sabes bem que ninguém pode entrar no coração de outra pessoa e unir-se a ela, nem sequer por um breve momento. Mesmo a tua mãe deu-te apenas um corpo, e quando começaste a respirar, não foi ar que inspiraste, mas solidão.»

terça-feira, 19 de outubro de 2010

AS VELAS ARDEM ATÉ AO FIM



Uma escrita belíssima, atenta às gradações dos afectos, ás intensidades dos gestos e sobretudo empenhada na compreensão das relações humanas. Porque tudo começa no dois – o amor, a amizade, a família, mas também o dissenso, a política e a guerra.


Henrik é traído pelo melhor amigo e pela mulher. Espera pacientemente quarenta e um anos. Diz que espera a vingança e a verdade. Uma verdade para além dos factos, porque «um acto ainda não é equivalente da verdade». Mas ele já encontrou a verdade na velhice e na morte, quando somos capazes de entender os corpos como corpos e os homens como seres mortais, um entendimento sem dor.


«Uma pessoa sempre responde com a sua vida inteira às perguntas mais importantes. Não importa o que diz entretanto, com que palavras e argumentos se defende. No fim, no fim de tudo, com os factos da sua vida responde às perguntas que o mundo lhe dirigiu com tanta insistência. Essas perguntas são as seguintes: Quem és tu?... Que querias realmente?... Que sabias realmente? A que foste fiel ou infiel?... A quê ou a quem mostraste ser corajoso ou cobarde?... São essas as perguntas. E uma pessoa responde como pode, duma maneira sincera ou mentindo; mas isso não tem grande importância. O importante é que no fim, uma pessoa responde com toda a sua vida.»


«Sobreviver a alguém, a quem amámos tanto que teríamos sido capazes de matar por ela, sobreviver a alguém, a quem estávamos ligados de tal maneira que quase morremos por isso, é um dos crimes mais misteriosos e inqualificáveis da vida.»


«Quem sobrevive a alguma coisa, não tem direito de formular uma acusação. Quem sobrevive a alguma coisa, ganhou o seu processo, não tem direito, nem razão para acusar alguém; era mais forte, mais astuto, mais agressivo.»


Só os mortos respondem bem e definitavemente.


Recomenda-se como leitura para uma noite ventosa e solitária, acompanhada de velas.

COM O DIABO NO CORPO



Um amor adúltero entre François, de dezasseis anos, e Marthe, de dezanove, casada com um soldado. A guerra serve de pano de fundo ao desvario dos amantes, sentida como um longo período de ociosidade e poesia. Ao conhecer Marthe, o rapaz encanta-se de imediato com a sua imprudência e gosto por Baudelaire e Verlaine. O amor é acompanhado por uma escalada do sentimento de tirania pelo ser amado. François enleia-se cada vez mais no amor, quanto mais acredita não amar Marthe, incapaz de se vergar aos códigos sentimentais, por ingenuidade. «Os momentos em que não podemos mentir são precisamente aqueles em que mais mentimos, sobretudo a nós próprios» (p. 63).


Na repetição dos encontros, os amantes descobrem o êxtase: «Não é na novidade, mas sim no hábito, que encontramos os maiores prazeres» (p.46). François sente-se como uma criança que dá um brinquedo a si própria, um brinquedo a quem pode fazer o que quiser, até mal, se o desejar. A cada novo dia, François testa os limites do amor e da entrega de Marthe, ébrio com os recém-adquiridos poderes da paixão. As loucuras da carne parecem aliviar os distúrbios da alma, desgastando uma paixão incapaz de se gastar pela submissão de Marthe, que perdoa todos os ataques de ciúme, crueldades e mentiras do rapaz. Uma submissão que resulta da certeza da sua paixão, enquanto a crueldade do seu parceiro resulta da sua duvida e incapacidade de aceitar que a ama.

«Mas o amor, que é o egoísmo a dois, sacrifica tudo a si próprio e vive de mentiras» (p. 59). O fim é trágico e Marthe morre – como morrem todos os nossos primeiros amores, para que a vida possa continuar, ainda que empobrecida pela recordação desse astro breve, é certo. A morte da amada não traz uma elevação redentora do sentimento, pelo contrário, a natureza egoísta do amor de François revela-se aí em toda a potência.

«Marthe! O meu ciúme seguia-a até ao túmulo. Eu desejava que nada houvesse depois da morte. É insuportável que a pessoa que amamos se encontre rodeada de outras companhias numa festa onde nós não estamos. O meu coração tinha aquela idade em que ainda não pensa no futuro. Era exactamente o vazio que eu desejava para Marthe, mais do que um mundo novo, onde pudesse juntar-me a ela um dia» (p. 140). O que importa não é que Marthe tenha morrido, mas sim a certeza de que ela tenha morrido chamando pelo amante.

«Quando Marthe dormia assim, com a cabeça encostada num dos meus braços, eu inclinava-me sobre ela para lhe ver o rosto envolto em chamas. Era como brincar com o fogo. Um dia em que me aproximei demais, sem, no entanto, o meu rosto tocar no dela, foi como a agulha magnética que passa um milímetro a zona interdita e se cola ao íman. A culpa é do íman ou da agulha? Era assim que sentia os meus lábios contra os dela. Marthe continuava com os olhos fechados, mas nitidamente como quem não está a dormir. Beijei-a, surpreendido pela minha própria coragem, embora na realidade tivesse sido ela que, mal eu me aproximara do seu rosto, puxara a minha cabeça para a sua boca. As suas mãos agarravam o meu pescoço. Não se teriam agarrado com mais fúria num naufrágio. E eu não compreendia se ela queria que eu a salvasse ou que me afundasse com ela» (p.45).

Fiquei a arder – saudades da desmesura que o primeiro amor apresenta e que nenhum mais nenhum nos traz depois. Porque nos tornámos cínicos, feridos e menos loucos. E, sobretudo, incapazes de ser salvos ou naufragar.

«Um homem desorganizado que vai morrer e não desconfia disso põe subitamente em ordem tudo à sua volta. A sua vida muda. Arquiva papéis. Levanta-se cedo e deita-se cedo. Renuncia aos vícios. Os seus familiares congratulam-se. Assim, a sua morte repentina parece ainda mais injusta. Ele teria sido feliz» (p. 139).

O CHÃO DOS PARDAIS


«Anne Frank morreu com quinze anos, quinze dias antes da libertação do campo para onde tinha sido levada. Se Deus não joga aos dados faz o quê?
(…)
Nós sobrevivemos ao horror pelo qual a família Frank e os amigos passaram. A humanidade sobreviveu. De forma imperdoável, porém. A menos que se constituam deveres.
(…)
Ele e Margarida eram quase recém-casados quando ele a levou ao anexo. Temos de ver isto porque não podemos ter a certeza que não repetimos. Nunca poderemos ter essa certeza. Os que perpetraram o horror eram em tudo iguais às vítimas, eram em tudo iguais a nós.
(…)
Os milhões de pessoas que morreram merecem que os deixemos em paz, dissera inesperadamente Margarida. Merecem que não precisemos deles para nos emocionarmos. Esse é o nosso único dever. Há neste momento milhares de pessoas escondidas por esse mundo fora e nós estamos aqui a visitar um sítio que foi tornado público só para satisfazer a curiosidade dos que querem ver para se emocionarem. Não devia ser permitido. Isto, as visitas aos campos, nada. Não é que não seja preciso ver. É que não devemos ver. Estamos obrigados a sentir para além do que os olhos vêem. A fé já foi inventada. É possível. Isto, os milhões de sapatos, os duches, os crematórios, são obscenos. Deviam ter sido arrasados. Nem sequer o pó desses sítios devia existir. Não se pode permitir a memória física do horror. Deixar que o horror tenha memória física é uma forma de o justificar. E não pode haver nunca justificação. Os visitantes procuram o descanso que nunca deveriam ter. Não há nada de nobre numa visita a um campo de concentração ou a este anexo. Não há solidariedade possível com os que sofreram, com os que foram deixados sofrer. Só nos chocamos com os factos sobre os quais não nos pode ser exigida responsabilidade alguma, com os factos em relação aos quais a nossa acção se tornou impossível. Precisamos da tranquilidade de saber que não nos pode ser exigido que actuemos. Que nunca poderemos ser acusados de termos sido cúmplices. Daqui a uns anos faremos museus às guerras que estão a decorrer neste momento. E iremos visitá-los só para nos chocarmos, para nos emocionarmos. Só temos de esperar que a nossa acção se torne impossível, que a nossa inacção se torne justificável, para que passemos a exigir que nos reconheçam como solidários. É só preciso esperar que o horror acabe para podermos ser completamente contra ele. Para estarmos dispostos a fazer tudo o que pudermos para acabar com ele. Mais tarde poderemos até chegar ao ponto de querermos compreender como é que tudo se passou, o que é que se passou. Tudo em nome da humanidade, dos abismos negros da humanidade.»