quarta-feira, 28 de março de 2012

Quem é o sexo de ler?

Uma tarde na biblioteca: a carne em bulício, impossível estudar. Das prateleiras, um canto de sereia. Levanto-me e deixo-me conduzir pelo chamamento até encontrar a sua boca: O Sexo de Ler de Bilitis de Pierre Louÿs.
Trago o livro para casa, bem junto ao peito, como quem se orgulha de um crime. As mãos seguras da sua textura. Durante dias não faço mais do que olhá-lo, tocá-lo e adormecer junto dele. Sonho com a fantasia de um sexo de ler: o prazer de fazer um fellatio e receber na boca um jorro quente de poesia, um texto-carne a penetrar-me, a doer-me fundo e um orgasmo acontecendo pelas palavras (que palavras?).
Enleada nestes devaneios, vou adiando o momento da leitura do livro. Os meus melhores amores são os sonhados, por arder. Depois, começo lentamente a desflorar o livro, com gestos do pudor mais lascivo. O prefácio de Maria Gabriela Llansol serve de preliminar; um êxtase tumultuoso na melhor, mais perfeita figuração do sexo – “o nome de uma alegria recortada num fundo de aflição”, “uma matéria figural irradiante e enigmática. Uma folha de água caindo às águas. E, como linguagem, um vazio iluminado pelo encantamento – quem é o sexo?

Quem é o sexo?

Sem resposta, cavalgo as restantes páginas em frenesim, apalpando nas entrelinhas a aproximação dessa cena sem imagem, cena inaugural da cultura e, sobretudo, da escrita. Porque a leitura mais não é do que um acto de amor diferido, mediado pelo papel, as frases indizíveis buscando o aconchego dos corpos desencontrados pelo Tempo.

“a frase luta, alterna de género, o seu único intento é arrancar ao leitor a tira que lhe venda os olhos, não para que veja a cena, mas para que sinta que nasceu cego, não há cena de sexo, apenas o incontornável que a todos nos foi dado como forma de matéria atractiva, os corpos atraem-se, moça, por aquele halo que escapa à visão, o leitor encosta-se à prateleira dos livros já lidos, atordoado com a notícia, recolhe o braço com que ia em busca de alívio num outro tomo qualquer, volta a estendê-lo, recolhe a notícia que se escondia naquele corpo ainda vestido,
olha para as sandálias ainda espalhadas pelo chão, não as vê, é noite, vê, sim, que ser leitor é

uma vida passada em tantos outros lugares, uns com ele, outro adversos, uns do seu género, outros sedutores e ofuscantes, passou e não sabe dizer o que viu, é a vida que não sabe dizer-se, baixa-se e pergunta

«onde está a minha leitura?»,
onde paira o sexo fugaz que se esvaiu nos infravermelhos?,”

E o orgasmo acontece. O resto – os poemas, o corpo do texto, são deliciosos e firmes, mas incomparáveis ao supremo júbilo da cabeça e do beijo de Llansol, onde o Sexo de Ler se abre e mostra de soslaio: imagens arredias que não se fixam na língua mas cujas afterimages fazem estremecer a carne.

pensa: o herói dura, mesmo a queda lhe foi pretexto para ser: seu supremo nascer.



Quem, se eu gritasse, me ouviria dentre as ordens
dos anjos? e mesmo que um me apertasse
de repente contra o coração: eu morreria da sua
existência mais forte. Pois o belo não é senão
o começo do terrível, que nós mal podemos ainda suportar,
e admiramo-lo tanto porque, impassível, desdenha
destruir-nos. Todo o anjo é terrível.
E assim eu me reprimo e engulo o chamamento
dum soluçar escuro. Ai! de quem poderíamos
nós então valer-nos? Nem de anjos, nem de homens,
e os bichos perspicazes repararam já
que nós não estamos muito confiados em casa
neste mundo explicado. Resta-nos talvez
qualquer árvore na encosta, que de novo a vejamos
diariamente; resta-nos a estrada de ontem
e a fidelidade amimada dum costume,
que gostou de estar connosco, e por isso ficou e se não foi.
Oh! e a Noite, a Noite, quando o vento cheio de espaço dos mundos
nos desgasta a face - , a quem não restaria ela, a ansiada,
a das desilusões suaves, que a cada coração solitário
espera penosa. É mais leve aos amantes?
Ai! eles apenas se tapam um com o outro a sua sorte.
Pois não o sabes ainda? Arroja dos braços o vácuo
para os espaços que respiramos; talvez as aves
sintam o ar alargado com um voo mais íntimo.

Sim, as primaveras precisavam de ti. Muitas estrelas
esperavam de ti que as sentisses. Levantava-se
uma onda no passado e aproximava-se, ou,
ao passares pela janela aberta,
um violino entregava-se. Tudo isto era missão.
Mas cumpriste-a tu? Não estavas tu sempre
distraído ainda de expectativa, como se tudo te anunciasse
uma Amada? (Onde queres tu abrigá-la,
se os grandes pensamentos estranhos em ti
entram e saem e muitas vezes pernoitam.)
Se, porém, a saudade te assalta, canta as Amantes;longe
ainda de ser imortal bastante o seu sentimento célebre.
Canta aquelas - quase as invejas! - abandonadas que tu
achavas tanto mais amorosas que as satisfeitas. Recomeça
sempre de novo o inacessível louvor;
pensa: o herói dura, mesmo a queda lhe foi
só um pretexto para ser: seu supremo nascer.
Mas as amantes recolhe-as a Natureza cansada
de novo em si, como se não houvesse duas vezes as forças
para cumprir tal obra. Celebraste já bastante
a Gaspara Stampa, para que qualquer donzela
a quem fugiu o amado, ao exemplo sublimado
desta amante, sinta: Oh fosse eu como ela?
Pois não hão-de finalmente estas antiquíssimas dores
tornar-se-nos mais férteis? Não é tempo que, amando,
nos libertenos do amado e, trementes, vençamos a prova?:
como a seta vence a corda, para, concentrada ao saltar,
se superar a si própria. Pois nenhures há parar.
Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como somente outrora
santos ouviam, de tal forma que o apelo imenso
os erguia do solo; eles, porém, impossíveis,
continuavam de joelhos e nem o atendiam:
de tal maneira ouviam. Não que tu, nem de longe,suportasses
a voz de Deus. Mas ouve o hálito,
a mensagem ininterrupta, que se forma de silêncio.
Um rumor rola agora daqueles mortos jovens para ti.
Onde quer que entrasses, nas igrejas de Roma e Nápoles,
não ouviste o seu fado dirigir-se-te, tranquilo?
Ou era uma inscrição que se te impunha, sublime,
como há pouco a lápide de Santa Maria Formosa.
Que querem eles de mim?Que afaste baixinho
o véu da injustiça que, por vezes, impede um pouco
o movimento puro de seus espíritos.

É estranho, de certo, não morar mais a Terra,
não mais praticar actos apenas adquiridos,
às rosas, e a outras coisas tão prometedoras,
não mais dar o sentido dum futuro humano;
aquilo que fomos em mãos infinitamente tímidas
não mais ser, e abandonar até o próprio nome
como um brinquedo partido.
Estranho, não continuar a desejar os desejos. Estranho,
ver voar solto pelo espaço o que estava
em relação. E o estar-morto é custoso,
e há tanto a recuperar, até gradualmente se sentir
um pouco de Eternidade. - Mas os vivos cometem
todos o erro de distinguir demais.
Os anjos (diz-se) não sabem muitas vezes se andam
entre vivos ou entre mortos. A corrente eterna
arrasta pelos dois reinos todas as idades
sempre consigo, e em ambos as domina com a sua vozpotente.

Afinal já nos não precisam, os de morte precoce;
suavemente nos vamos desacostumando do que é terreno, como nos alheamos
brandamente dos seios maternos. Mas nós, que precisamos
tão grandes mistérios, para quem do luto tantas vezes
nasce progresso feliz - : poderíamos nós ser sem eles?
Será vã a lenda de que outrora repassou o torpor árido?,
de tal forma que só no espaço assustado, de que de repente partiu
um jovem quase divino, é que o vácuo entrou nessa vibração
que agora nos arrasta e consola e ajuda.


Rainer Maria Rilke, As Elegias de Duíno

O Lobo das Estepes


Harry Haller é um homem que lê, lê muito. Abandonou família, pátria, profissão, sociedade e moral para se dedicar ao espírito e à liberdade, pagando o seu preço em solidão e sofrimento. «“A maioria das pessoas não querem nadar antes de saber.” Não tem piada? Pois se nasceram para a terra, e não para a água! E é óbvio que não querem pensar; foram feitos para viver, não para pensar! Pois aquele que pensa, aquele que tudo centra no pensar, pode realmente ir muito longe nesse campo, mas para todos os efeitos trocou a terra pela água, e um dia há-de ir ao fundo.»

Incapaz de encontrar abrigo ou descanso, auto-intitula-se Lobo das Estepes, subvivendo como animal desgarrado num mundo que lhe é estranho e incompreensível, cujas ambições e prazeres não partilha minimamente. Alimenta-se na demanda das raras réstias de ouro que iluminam a vidinha, rasgando-a numa explosão ek-stática que desagrega qualquer individualismo. Mas o êxtase dura apenas um instante, que é o tempo da eternidade, e Harry decide-se assim pelo suicídio: «é próprio do suicida sentir o seu eu, com ou sem razão, como germe da natureza especialmente perigoso, equívoco e ameaçado, como se estivesse suspenso no mais afilado cume de um rochedo onde um ligeiro toque do exterior ou a mínima fraqueza do interior bastariam para o precipitar no vácuo.»

E é exactamente na noite em que a lâmina de barbear o aguarda, que o instinto de sobrevivência de Harry começa a espernear. O lobo das estepes encontra então uma linda e pálida rapariga com um rosto masculino que percebe o que falta a Harry: ser cuidado e obedecer. «Obedecer é como comer e beber – quando se passou muito tempo sem isso, não há nada que o valha.»

“Seria mais inteligente da minha parte não te dizer isto. Mas não quero ser inteligente, Harry; desta vez, não. Quero outra coisa bem diferente. presta atenção, abre os ouvidos! Hás-de ouvir, depois hás-de voltar a esquecer, depois hás-de rir à conta disso, e chorar à conta disso. toma atenção, pequeno! Vou brincar contigo à vida e à morte, maninho, e vou-te por as cartas na mesa, bem à vista, ainda antes de começarmos o jogo!”

O jogo começa com a aprendizagem que Hermínia lhe impõe: comer beber, foder e dançar. Culmina num teatro de desagregação de personalidade, cujo preço de entrada é a razão, uma trip alucinatória de pendor nietzscheano que procura atingir a cura pela doença. A farsa termina em
tragédia, com facadas passionais e a insistente angústia das estepes. Mas num golpe de magia, Harry pressente que a vida é jogo e que afinal aos jogos não convém a seriedade, sentindo-se capaz de palmilhar mais uma vez e sempre o inferno do seu interior e aprender a única coisa verdadeiramente imortal – o riso.

A lição final é, mais uma vez nietzscheana: é preciso chorar e passar pela tristeza mais funda para que possamos rir com todos os dentes e experimentar a alegria mais exclusivamente. A liberdade, meu caro, existe mas é preciso pagar o seu preço, sem cobardias nem avarezas.