segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Boneca de Tripas - Parte 2


Um pensamento que não mata nem morre. O medo, o terror, o pânico. Noite adentro, a mastigar, a ruminar, impedindo os olhos de descansarem. As pálpebras carregadas de ansiolíticos. E o pensamento a martelar, a mastigar incessantemente, roldanas de aço até ao delírio. E eu a querer apenas dormir, fechar os olhos, a tentar cavalgar a onda sem sucesso. A ser engolida pelas palavras que se soltaram dentro da minha cabeça, como notas numa composição insana. Acocorada, debruçada sobre o meu ventre, a desejar, a implorar uma pausa. Esmagada contra a almofada, os vincos da roupa impressos na minha carne.



Liberdade. Quantos comprimidos são precisos para matar o pensamento? O pensamento que me rói do avesso. Sim, exactamento quantos, para que esta porra acabe?



A geometria das paredes alonga-se, o tecto deixou de ser o companheiro vítreo da adolescência eufórica, nele não se projectam mais as esperanças de um futuro mais leve, mais brilhante. Desde que o medo se infiltrou, vísceras adentro sem piedade. Começou a roer em silêncio e apoderou-se de tudo. Medo de ter medo. Um intruso indesejado que se tornou imperador impiedoso.



Um pensamento que não mata nem morre. Vai moendo. Lentamente. Sorrateiramente. Minando o que pode. Um líquido corrosivo. Um sabor a ferrugem e crime na boca. O medo de que a boca se volte para dentro e comece a triturar tudo, os dentes, o estômago, a memória e a dignidade. Olhar para o real e não dar fé nele. Olhar para as paisagens urbanas e apenas o paladar de papel de jornal na minha garganta. Olhar os rostos dos outros e não decifrar neles a minha humanidade.



E o medo a galopar, veloz no meu colo, no meu peito, a trepar pelo pescoço, numa tensão de máquina no meu queixo. Olhar uma mãe e a sua filha e tremer. Leveza e cães. Haverá uma falha, uma brecha no real que me possa acolher? Afinal quantos comprimidos, ao certo, são necessários para matar o pensamento? Fórmula desejada...



O cansaço, a insónia, as olheiras, o suor abafado e condenado. Do outro lado, alguém a batalhar contra o sono, contra a morte certa e urgente. Contra o esquecimento. Os fantasmas brancos da madrugada e a certeza de existirmos sós naquela hora desassossegada. A luz amarela e violenta do candeeiro a insinuar que o mundo acabou e que se esqueceu de nós. De nos vomitar na nossa artificialidade. Cinco da manhã. Agitação. Morangos silvestres sem uma história prestes a ser apagada.



Seis. Sete. Até que tudo se imobiliza, a noite abraça o universo que afinal se resume a um pensamento obsessivo de um, que insite nos bastidores da consciência, sem comparecer ao seu encontro. Uma sereia, morangos silvestres de novo e uma melancia. A minha história a fugir para um disparate qualquer. Ou os comprimidos fazem efeito e adormeço, desmaio, desligo ou passo a ser apenas vestígios de ossos e sangue que um pensamento mastigou a seco. E se não houver espuma do mar? Se não vier o dia seguinte? Se não vierem dias melhores para que possam voltar os dias piores, para que tudo acabe bem para depois ficar tudo mal?



Como desligo isto? Quantos comprimidos afinal? Quantos? Para derrotar a raiz tuberculosa do medo.

Corpo Presente


Vencedor do Man Booker 2007, este livro de Anne Enright é possante, irado e implacável. Cada vez me convenço mais que a escrita das mulheres, desde sempre treinadas para a dor e para o silêncio, consegue ser mais impiedosa. Um dedo afiado na ferida; é isso que Veronica Hegarty faz a si própria depois do suicídio do seu irmão mais próximo. Obriga-se a recordar os traumas de infância onde cada um se tornou um caso perdido, as discórdias de jovens adultos que afastaram a fraternidade de ambos.


«A bebida não era o seu problema, mas acabou por se tornar o seu problema, o que foi um alívio para todos os interessados. «Estou um pouco preocupada com Liam, por andar a beber», portanto, após algum tempo, já ninguém conseguia ouvir nada do que ele dizia.
O que era merecido, pois só dizia merda. O álcool deu cabo dele, como sempre faz. Mas estou a tentar perceber quando foi – quando deixei de me preocupar com ele e comecei a preocupar-me por ele beber


Veronica recorda a descoberta de que Liam era molestado pelo senhorio da avó, o homem que esta rejeitou na sua juventude, que possivelmente também terá molestado a sua mãe e a própria Veronica. Escava no sangue em busca do erro, do mal-entendido onde as vidas e o futuro deles se confundiu. Obriga-se a embater desastrosamente na sua vida.


Até que ponto as nossas famílias disfuncionais (porque todas o são, não fossem elas compostas por pessoas) e os pequenos grandes incidentes, segredos e traumas condicionam a nossa vida de adultos? Seremos sempre eternas crianças em busca de paliativos para curar as cicatrizes dos nossos tímidos começos?


«Olho para as pessoas em fila para pagar e pergunto-me se estarão a ir para casa ou a afastar-se das pessoas que amam. Não há outras viagens. E penso que constituímos refugiados peculiares, a fugir do nosso próprio sangue, ou para junto do nosso próprio sangue; a pulsar para trás e para a frente ao longo das veias fantasmagóricas, que envolvem o mundo numa mixórdia de sangue.»

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Do not go gentle into that good night


Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.

Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.

Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.

Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.

Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.
And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.
Dylan Thomas

Memória e Delírio



«Los locos van libres por las salas y pasillos o por las habitaciones de los hombres, sin que ello inspire el menor recelo de evasión o desorden. Incluso algunos de ellos, pertenecientes a familias distinguidas, acompañan a las visitas, hacen los honores de la casa. Guardan las más suaves formas de cortesía y buena educación.»

Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura é o primeiro romance de António Lobo Antunes que li. O livro, o 14º escrito pelo autor, é composto por 35 capítulos ordenados em 7 partes que se assumem como os 7 dias da criação do mundo. Neste livro que Lobo Antunes classificou como poema, cabe de facto todo o mundo e toda a sua criação, através da viagem interior ziguezagueante entre a memória e a fantasia, empreendida por Maria Clara, numa polifonia de vozes e delírio.

O pai doente nos Cuidados Intensivos serve de pretexto a Maria Clara para ousar entrar em quartos e sótãos proibidos, onde vai recordar a distância do seu pai e fantasiar uma explicação para a ausência deste, onde se vai defrontar com a beleza da irmã que inveja, com a solidão da mãe na cama fria onde o marido não dorme há muitos anos. Lobo Antunes maneja de modo tão inovador a técnica do fluxo de consciência que nos sentimos como o psiquiatra de Maria Clara, tentando descortinar a verdade do delírio, das fantasias que inventámos para gerir melhor a nossa dor e a dor dos outros.

Não é um livro fácil – demorei-me um mês e meio na sua leitura. Todas as palavras são escolhidas a dedo, deliciosas e amargas consoante a circunstância, mas sempre poderosíssimas. A certa altura, podemos até dizer que a escrita de Lobo Antunes se torna penosa pela repetição obsessiva de certas imagens e frases. Mas a vida também é assim, o nosso tempo é marcado pela batuta das nossas obsessões, pelas frustrações que nos venderam, pelas falhas que nos apontaram, pelos afectos que desejámos, pelos polegares no pescoço que nunca se demoraram docemente e nos quais ficámos a cismar precisamente pela sua pressa.

A quase ausência de enredo também não facilita o trabalho do leitor, obrigado a lidar com os delírios de uma menina metida consigo mesma, a perscrutar goivos e freixos, a boina ridícula da avó todas as tardes a caminho do casino do Estoril para apostar mais algumas jóias ou talheres para reaver a riqueza e dignidade de outrora, o passado com cheiro a pobre do pai, os encontros fortuitos da mãe com o motorista no Guincho, a irmã pretendida por todos os homens de rosto enfiado em revistas femininas e telefonemas suspirados. Lobo Antunes disse numa entrevista «Para mim, muitas vezes a intriga não é mais do que o prego no qual se penduram os quadros». Ou ainda, citando Clarice Lispector, «As palavras são apenas anzóis, para apanhar o que está nas entrelinhas» e os acontecimentos do quotidiano podem escassear mas dentro de nós há uma roldana imparável, de aço, que vai roendo e mastigando tudo e que desliza às vezes, por engano ou descuido, para nos triturar.

Chegamos ao fim e sabemos que não podemos fugir aos nossos fantasmas, que eles nos vão espiar por detrás dos nossos ombros erguidos, tímidos e inconvenientes. E que a verdade que nos compõe não é só a dos factos, a do real, mas também dos delírios que nos fazem e desfazem. E que raramente podemos confessar a alguém, excepto aos profissionais da mente, sob pena de sermos excluídos da normalidade da vida de todos os dias, reclamada por todos mas onde ninguém habita.

«se eu pudesse conversar com alguém e podendo conversar com alguém se conseguisse falar».


Uma viagem empreendida para recordar a menina que brincava às fadas junto ao lago, que mais tarde dava pontapés nas pedras e odiava todos e que acabou casada com um homem que não suporta o toque e um filho que não reconhece nem lhe apetece, a habitar às escondidas o refúgio da sua meninice e das suas ilusões. Tentando descobrir o momento em que perdemos o rumo da nossa vida, em que a guinada ocorreu e o fracasso começou a devorar a nossa eternidade. Quando, exactamente quando, foi que nos fodemos?

«Hoje estava capaz de me ir embora: pegar nas chaves do carro sem motivo nenhum
(as chaves estão sempre no prato da entrada)
descer as escadas
(não descer pelo elevador, descer as escadas)
até à garagem da cave, ver o fecho eléctrico abrir-se com dois estalos e dois sinais de luzes, ver a porta auomática subir devagarinho e logo na rua acelerar o mais depressa possível, queimando semáforos, na direcção da auto-estrada, sem ligar aos painéis que indicam as cidades e a distância em quilómetros, sem uma ideia na cabeça, sem destino, sem mais nada para além da pressa de ir-me embora, colocar entre mim e mim o maior espaço possível, esquecer-me do meu nome, dos nomes dos meus amigos (…). Parar num desses restaurantes das bombas de gasolina à beira das portagens e comer sem olhar para ninguém, sem reparar em ninguém nem sequer nas crianças que correm entre as mesas e acelerar de novo segurando o volante com força tal como em pequena segurava o guiador da bicicleta (…).


Hoje estava capaz de me ir embora: as paredes da casa apertam-me, tudo me parece tão pequeno, tão inútil, tão estranho. Entrar na cozinha. Fazer o almoço. Servi-lo. Esperar pela refeição seguinte. Apagar o fogão. Servi-la Atender a meio da tarde a voz do meu marido a saber como estou, receber as cartas da Ana de que não compreendo o endereço. Abandonar as cartas de Ana de que não compreendo o endereço. Abandonar os telefonemas e as cartas também. Hoje estou mesmo capaz de me ir embora antes que fique louca como os cães, correndo em círculos na noite (…).

Hoje estava capaz de me ir embora. Metia todo o dinheiro da gaveta no bolso, deixava aqui a mala, os documentos, os sinais de quem sou. Se me perguntarem o que faço responder que não tenho profissão. Sou apenas uma mulher num restaurante das bombas de gasolina à beira de uma portagem, a mastigar calada (…).


Há momentos na vida em que necessitamos tanto de um sorriso. À falta de melhor toco-me com o dedo no vidro.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Boneca de tripas - Parte 1


Dia de Natal e eu fechada na casa-de-banho a sangrar, o sangue escuro, espesso a sair sem parar, a escorregar pelas pernas, o piso da casa de banho ensopado, pontuado por manchas de postas de carne azuis e violetas, eu a desfazer-me numa dor afiada líquida entre as pernas sem sequer…. Um grito de angústia, de socorro, sufocado na manga da camisola de lã grossa que a minha avó me ofereceu no outro natal. No natal em que eu não era, não fui uma menina feia trancada na casa-de-banho a sangrar silenciosamente.


«Como foste capaz, Solange?», a voz severa da figura seca da minha mãe a despertar-me naquela tarde abafada de Agosto em que retirei um a um os peixes raros do meu pai do aquário esverdeado e os coloquei na carpete da sala, junto aos brinquedos gastos noutras tardes solitárias de Verão.


Uma agonia aquática entre as pernas, submersa nos ladrilhos da casa de banho em postas de carne azuis e violetas. Enquanto a minha família ceia reunida na mesa, partilhando doces e sorrisos abrigados do frio sonolento que assobia nos ciprestes das traseiras do quintal. Noite de natal, peixes demoníacos a devorar as minhas vísceras num rodopio de esferas de vidro no meu ventre. Sabres de metal que me atravessam e rasgam a carne.

O medo cortante de que a minha mãe ou a minha tia ou o meu pai descubram a minha ausência e me surpreendam nesta lama de sangue espalhada pelos ladrilhos e

«Como foste capaz, Solange?».


Minutos a fio a assistir ao duelo de escamas contra o algodão da carpete – uma agonia de guelras e bocas escancaradas num som que nunca mais me esqueci e que voltei a ouvir anos depois à beira da cama da minha avó - o cheiro a peixe da morte, quando ninguém sabia que ela morria - é apenas uma gripe, está de cama a ver se se cura – diziam, enquanto eu pressentia, eu sufocava com o cheiro a peixe no quarto da minha avó e olhar de aquário dela em mim, talvez a adivinhar que anos depois, na noite de natal… eu na casa de banho a sangrar, uma dor afiada entre as pernas.

Até que aquela coisa horrorosa sai de dentro de mim, rasgando a carne para se vir espalhar no meio das postas de sangue azuis violetas, as goelas ainda arriscam um choro mas este desmaia, fracassa no embate contra os ladrilhos frios e vermelhos da casa-de-banho do meu crime. E de novo, o barulho das guelras debatendo-se em golfadas de água impossíveis.

Os peixes novamente no aquário, ondulando levemente, os olhos como redomas viscosas a mirarem o vazio e eu a olhá-los, a cismar, extasiada, debruçada sobre o vidro acastanhado num esgar de limos e crueldade. Fascinada mesmo depois da surpresa da minha mãe

«Como foste capaz, Solange?»


Por a dor dos outros não nos poder doer, não passar apenas de uma agonia de guelras encerrada no silêncio das algas de um aquário. Doces e sorrisos abrigados do frio sonolento que assobia nos ciprestes das traseiras do quintal, isolados do lamaçal de sangue de uma casa-de-banho onde não ousam adivinhar que um cordão umbilical é arrancado com os dentes, que podia escapar à descarga do autoclismo, mas… Lá se vai… lá se foi, o quê?

Uma criança entediada por não ter irmãos nem actividades de verão a brincar a inventar o poder demiurgo da vida e da morte, a criar o universo num Agosto distante encerrado em cortinas de tédio, quentes e inimigas. Desta vez não há tempo, apenas a pressa de limpar a mancha, todas as manchas com a esfregona e depois um saco que hei-de atirar cheio de pedras de calçada para o lago do parque, onde um Natal deixei cair, enquanto brincava com a minha prima, a minha fita de cabelo rosa. A minha fita de cabelo rosa que eu adorava perdida no lago de sangue de uma casa de banho na noite de natal.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

D.Juan, o sedutor vítima do seu desejo


JULIETA: Sabes o que eu vejo D. João… cada corpo que se ergue na tua vida é uma cruz assinalando a morte de um pedaço da tua alma… carne branca talhada em pedra tumular a que te agarravas num desespero de náufrago… Tu trazias em ti a essência de Romeu… e no entanto a forma exterior era a de D. João, às apalpadelas, por caminhos ínvios, numa procura febril do rasto de Julieta. Cada mulher era a esperança duma alvorada… a promessa esquiva do possível caminho do encontro com a tua bem-amada… Detinhas-te e caminhavas mais à frente, cheio de mágoa, frustrado na tua eterna pesquisa. E por isso foram muitas.. porque em cada uma delas tu celebraste a momentânea esperança do encontro final. E assim eras cruel e destruías onde passavas… e os homens chamaram-te cínico, ímpio e dissoluto… Eles só viam as ruínas que tu deixavas pelo caminho e anunciavam que a tua presença era mensageira de desgraça… Mas nenhum deles soube ver a profundidade da tua mágoa, nem os teus pés que sangravam no choque de cada pedra em que tropeçavas julgando que era uma flor.

sábado, 25 de outubro de 2008

A Moeda Viva




Michel é um funcionário público que orçamento eventos culturais e não acredita no poder de redenção da arte nem no progresso civilizacional («A cultura é isto, dizia eu para comigo, um bocado chata, mas é bom assim, cada um de nós é remetido para o nada de si mesmo»). O seu quotidiano é desesperançado e resignado e a sua visão do mundo é altamente corrosiva para as alminhas sem demais inquietações: após o trabalho, Michel vai a um peep-show ver ratas em movimento e em directo, para limpar as ideias e esvaziar os testículos. Encerrado numa solidão sem testemunho nem solidariedade, não se interessa pelos semelhantes nem mesmo pelas mulheres, apenas no seu prazer efémero. O serão é passado em frente ao televisor, sem problemas pois tem cento e vinte e oito canais.



«Quando estava prestes a entrar na banheira, senti a chegada, sob a forma de uma barata tonta, de um acesso de neura. Logo havia de ser agora, um acesso de neura; não podia chegar em melhor altura. Aí vinha ela a caminhar pelos azulejos, a criatura; tentei apanhar um chinelo, mas sabia bem que, no fundo, tinha poucas hipóteses de a esborrachar. Se assim era, não valia a pena tentar. Mesmo a tailandesa Oôn, mais a sua vagina elástica, também pouco poderia fazer. Estamos todos condenados à partida. Tal como as baratas tontas, também as neuras copulam sem graça nem alegria aparente; mas copulam furiosamente, e as suas mutações genéticas são rápidas; contra elas, somos completamente impotentes» (p. 45).



Desabituado das regras da convivência social, evita o contacto com o outro bem como a consciência de si próprio. «Lentamente, tudo se vai tornando difícil; a vida resume-se a isso» Podemos armar-nos em espertos e fingir que aprendemos alguma coisa com a vida, mas é sempre ela que acaba com tudo. Até lá, à morte, vamos passando o tempo com passatempos, rodeando-nos de ideias, livros e recordações para evitarmos a realidade crua – a solidão – na ponta da faca de uma refeição nua.



Plataforma gira em torno do fenómeno do turismo sexual e explora o tema tabu de uma economia baseada no erotismo, no comércio de corpos e troca de fluidos, também abordada noutro livro-murro no estomâgo de Houellebecq, As Partículas Elementares.



«Passa-se com certeza alguma coisa para que os ocidentais não consigam deitar-se uns com os outros; talvez haja razões de narcissismo, individualismo, culto da perfeição ou outra coisa qualquer. A verdade é que, a partir dos trinta anos, as pessoas passam a ter dificuldades em encontrar novos parceiros sexuais; e no entanto, sentem uma grande necessidade deles, embora se trate de um desejo que se vai dissipando lentamente. Assim, passam trinta anos das suas vidas, a quase totalidade do tempo de adultos, num estado de permanente carência sexual. (…) Neste momento, a única prática com algum significado é o sadomasoquismo. (…)




De um lado, centenas de milhões de ocidentais que têm tudo o que querem mas não dispõem de satisfação sexual: procuram-na, procuram-na incessantemente, mas não a encontram – e são profundamente infelizes. Do outro lado, há milhares de milhão de pessoas que não têm nada, que morrem de fome na flor da idade e vivem em condições de total insalubridade, mas que vendem a única coisa de que dispõem – o seu próprio corpo, a sua sexualidade intacta».




Os ocidentais tornaram-se demasiado racionais, abdicaram dos seus instintos e da sua animalidade, e consequentemente são incapazes de dar e receber prazer, com toda a fraqueza e dependência que este implica. Resta apenas uma sexualidade profissional, cerebral até, com regras e acordos pré-estabelecidos, como no caso das práticas sadomasoquistas, a carne na sua experiência dos limites, em busca de uma afectação marcante e permanente como uma tatuagem ou uma cicatriz, para gente culta e inteligente que perdeu o interesse pelo sexo no seu sentido arcaico.


O amor, a única possibilidade de santificação, termina abruptamente com a morte de Valérie, companheira de Michel, num violento ataque terrorista do Oriente contra o Ocidente e o livro termina com um hino solitário ao desencanto da contemporaneidade:


«Até ao final, continuarei a ser um filho da Europa, um filho da inquietação e da vergonha; não sou depositário de qualquer mensagem de esperança. Não sinto ódio pelo Ocidente, quando muito um enorme desprezo. Sei apenas que, sendo como somos, exalamos um imenso fedor a egoísmo, a masoquismo e a morte. Criámos um sistema em que, pura e simplesmente, é impossível viver; um sistema que, ainda para mais, continuamos a exportar». Que gera mais perdas que ganhos.

domingo, 19 de outubro de 2008

A Metamorfose


Passados muitos anos, voltei a reler A Metamorfose de Kafka. Recordei o gume da frase de abertura: «Certa manhã, ao acordar após sonhos agitados, Gregor Samsa viu-se na sua cama, metamorfoseado num monstruoso insecto.» O absurdo da história voltou a impressionar-me profundamente, e não me refiro à metamorfose de Gregor Samsa num insecto (ou verme com Valdimir Nabokov defendia ser a tradução correcta da palavra alemã Ungeziefer) – afinal, estas coisas acontecem quotidianamente a muitos de nós – mas à servidão voluntária do protagonista que, acordando numa situação-limite, não consegue quebrar com a formatação que lhe impuseram e que ele assumiu, continuando a insistir na permanência no real, no correcto, no concreto e no útil para a comunidade, para lá de toda a racionalidade.


A razão tem destas coisas quando se apura demasiado, acaba por nos trocar as voltas e enredar no absurdo de termos perdido o nosso tempo a trabalhar desalmadamente num trabalho chato para um patrão filha-da-puta, para pagar uma dívida que nunca existiu e sustentar vícios e parasitas que a sociedade de consumo transformou em necessidades vitais. E um dia acordamos - e que é feito da nossa humanidade, onde estão os outros, a comunidade que sustentava o nosso quotidiano na sua hipocrisia, frustração e monetarização -, mas não conseguimos desligar o programa, e vamos tentando em vão equilibrar-nos nas frágeis patas que substituíram os nossos membros inferiores, para apanharmos o próximo comboio e não chegarmos mais atrasados ao trabalho que detestamos, porque não podemos ficar o dia inteiro na cama a olhar para as paredes ou colados ao tecto do nosso quarto, não foi para isso que nos preparam. Se é certo que a liberdade tem um preço e apenas temos que decidir se o queremos pagar, também o tempo de vida que desperdiçamos, nos será reclamado.

Dos treze para os vinte seis, a passagem do tempo não alterou a minha leitura da obra, mas percebi que me tornou mais crua e ácida para com as vítimas. É triste o que acontece a Gregor Samsa numa certa manhã, mas assim como o seu pai agressivo, a sua mãe ausente e a sua irmã egoísta, também eu me sinto incapaz de compaixão por ele, não comungando do seu espírito de sacrifício. Chego, mais uma vez ao final do romance com um sentimento de angústia e revolta: odeio a sua família e desprezo Gregor, incapaz de odiar e de se revoltar – um verme, no final das contas. Descarto-o porque desde o início ele se torna descartável; violento-o também porque ele assim o pede.


Desde tenra idade que tenho um problema com as vítimas; detesto os agressores mas entendo-me bem com eles, a sua linguagem é básica e a retaliação é fácil. Pelo contrário, não lido muito bem com a vítima que aceita ser espancada e espezinhada, que consente na sua servidão e na violência sobre si. Os cristãos chamam-lhe abnegação, humildade, altruísmo, perdão, uma infinidade de palavras com conotações positivas que nos permitirão o acesso a um reino paradisíaco, além, sempre num futuro próximo, que tarda ou parece não se cumprir. (Neste ponto, surgem-me sempre inúmeras questões – será que dão uma pulseira aos eleitos com livre acesso a todas as festas e banquetes? Será que há animadores nesse local idílico? Haverá sessões de karaoke? E que prazeres se praticam lá, para além dos pecaminosos mortais?).


Essa moral cristã de levar uma bofetada e oferecer a outra face, arrepia-me, tira-me mesmo do sério. Caso haja sessões de karaoke no reino do além, poupem-me ao espectáculo deprimente daquela inglesa rechonchuda com uma saia demasiado curta a revelar as coxas rosa-suíno e o ventre marcado pela menopausa e um divórcio mal resolvido, que costuma aparecer nestas noites a cantar o hit I Will Survive de Gloria Gaynor. Porque eu – e esta é uma das poucas certezas que vou tendo- não sou capaz de sobreviver a isso. Prefiro ficar por cá a beber whiskies e a tomar calmantes para suportar os dias mais pesados. Sofrendo agora e aqui, sem terror de vir a sofrer depois, mesmo que rodeada de querubins assexuados e enlouquecedoramente alvos.

Debaixo do mesmo céu


Conseguia ver-se uma ampla planície do Alentejo, com um sobreiro, glorioso na sua solidão, a suportar o quebrado pôr-do-sol violeta, que inundava a alma de Elisa, de fantasmas antigos e saudade, sentada de olhos fitos no horizonte, num poial de pedra branca e gelada.


Com a mão esquerda ia pescando punhados de terra que levava à boca de modo intermitente, e observava aquele sobreiro, que sabia-se lá há quanto tempo ali estaria, olhava o seu tronco rugoso acastanhado e os seus braços esguios semi-cobertos pela doença da cortiça, o ténue verde da sua copa e angustiava-se no pensamento de que aquela árvore lhe sobreviveria, tentando descortinar o segredo da sua longevidade.

Aquela árvore fora testemunha de várias espécies que por aquelas terras passaram e permanecia sólida na sua certeza altiva de que todos passariam menos ela. Elisa ia comendo compulsivamente terra, procurando a comunhão com aquele ente que ela suspeitava ser Deus, testemunha da progressiva degradação da espécie humana. Provavelmente, remontava ao tempo dos dinossauros, e um dia a última matriarca dessa raça há muito extinta também contemplara a árvore e percebera pelos insanos raios violetas que a atravessavam, que nada era capaz de deter o curso do mundo, que o seu ventre se tornara infértil e que aquela paisagem era um prenúncio de viragem.

Quanto tempo passara? Há quanto tempo estava ela ali, gelada numa presença espectral de estátua? Qual era o seu nome? Donde viera e que história era a sua? Olhou em pânico para as suas mãos secas e pareceu-lhe que também estas eram de madeira, pousadas sobre um regaço húmido com cheiro a terra molhada, devassada pelo labor das charruas e dos bois.


Tinha contemplado por demasiado tempo – quanto tempo, ao certo? – o sobreiro, que acabara por assimilar em si a sua natureza insuspeita de árvore. Tentou levantar-se mas não era possível, os seus pés haviam-se convertido em raízes, como tentáculos teimosos ancorados no centro da terra, tentou gritar mas não soube mais que nome evocar – esquecera aliás todas as palavras. Acabou por se acalmar, afinal toda a história fora apagada e saboreou o último rasgo amarelo violeta daquela tarde.


Preparou-se para uma longa noite de silêncio e imutabilidade e, antes da escuridão abraçar a paisagem, olhou de relance para o seu companheiro solitário, na outra extremidade do horizonte, com um tom de desafio e pensou “Agora somos só tu e eu”. Foi este o seu último pensamento. Houve ainda um breve instante em que se imaginou uma árvore exótica – uma palmeira, por certo! – a destoar numa paisagem frugal e quieta.


De ora em diante, ficou por ali, debaixo de sóis violentos, chuvas miudinhas, orvalhos pesados, acolhendo pássaros ensonados em noites primordiais e abrigando homens cansados na sua sombra de verão. Sem pensamentos, nem sentimentos de saudade. Ali, apenas. Sem ponta de inveja pela outra árvore. Havia bastante espaço para ambas e uma eternidade para apreender a sua distância. Debaixo do mesmo céu.

Oh Brother, where art thou?


POEMA EM LINHA RECTA


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenha calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenha agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe . todos eles príncipes na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que, contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ò príncipes, meus irmãos,
Arre estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos . mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos

domingo, 12 de outubro de 2008

O Amante

«Não havia que atrair o desejo. Ele estava naquela que o provocava ou não existia. Ou estava lá desde o primeiro olhar ou não existia (…). Desde o primeiro instante ela sabe qualquer coisa deste género, ou seja, que ele está à sua mercê. Logo, que outros além dele poderiam ficar também à sua mercê, se a oportunidade surgisse. Sabe também outra coisa, que doravante chegou o tempo em que não pode escapar a certas obrigações que tem para consigo própria (…).

Ele, treme. Olha-a primeiro como se esperasse que ela fale, mas ela não fala. Então ele também não faz qualquer gesto, não se despe, diz que a ama como um louco, di-lo muito baixo. Depois cala-se. Ela não lhe responde. Poderia responder-lhe que não o ama. Não diz nada. De repente sabe, ali, nesse instante, sabe que ele não a conhece, que nunca a conhecerá, que não tem maneira de conhecer tanta perversidade. E ao fazer tantos e tantos desvios para a agarrar, não poderá nunca. Cabe-lhe a ela saber. Sabe. A partir da ignorância dele, ela sabe de repente; já na barcaça ele lhe agradava. Ele agrada-lhe, a coisa só dependia dela (…).

Anos depois da guerra, depois dos casamentos, dos filhos, dos divórcios, dos livros, ele veio a Paria com a mulher. Telefonara-lhe. Sou. Ela reconhecera-o logo pela voz. Ele dissera: queria só ouvir a sua voz. Ela dissera: sou eu, bom dia. Ele estava intimidado, tinha medo como dantes. A sua voz tremia de repente. E com o tremor, de repente, ela voltara a encontrar a pronúncia da China. Ele sabia que ela tinha começado a escrever livros, soubera-o pela mãe dela que voltara a ver em Saigão. E depois dissera-lho. Dissera-lhe que era como dantes, que ainda a amava, que nunca poderia deixar de a amar, que a amaria até à morte.
»

O desejo comanda todas as operações, enclausura o ser desejado numa redoma, condenado a desejar, amado convertido em amante. Devemos temer sempre aquele que nos deseja. A raíz etimológica da palavra "desejo" remete para a ideia de rapto, desviar alguém através de astúcias e armadilhas.

Esperança

Habito nesta casa velha de três andares há mais de 40 anos. Conheço cada canto escuro de humidade, o ranger frágil das escadas de madeira que atravessam todos os andares, as zonas que o sol ilumina fortemente de manhã e as curvas por onde passa no seu ocaso. Conheço intimamente as manchas de café nos sofás com motivos florais gastos na sala de estar onde já ninguém está, a poeira instalada de modo persistente nos móveis antiquados, os quadros de todas as estações enquadrados por cada janela desta casa silenciosa.

Nasci no quarto de meus pais, no segundo andar, em 1913, numa tarde pontuada por uma chuva mansa e persistente, apenas perturbada pelos gritos de agonia da minha jovem mãe, que aumentaram de intensidade quando a parteira lhe mostrou o meu corpo prematuro e violeta e minha mãe se apercebeu de que o seu primeiro filho era uma menina de olhos excessivamente grandes, morta à nascença.

Penso que minha mãe nunca recuperou verdadeiramente daquela perda e que uma parte da sua juventude e alegria ficou para sempre encerrada no meu rosto violeta. Recordo o seu empenho e diligência em escolher-me um nome para colocar na lápide de mármore e a sua exigência ao severo padre da aldeia em baptizar-me numa cerimónia em que ninguém compareceu para além de minha mãe, nem sequer o meu pai, que decidira sofrer em silêncio e só, observando de quando em quando minha mãe, para se certificar de que esta não tinha perdido o juízo.

Ao longo dos anos, vivi sempre a seu lado, incapaz de a abandonar, espiando todos os movimentos do seu corpo pequeno e magro, os olhares que longas vezes se perdiam no horizonte, sempre atenta à sua voz rouca e frases quebradas, vigiando a escuridão absoluta das suas noites de insónia, sempre descobrindo no seu colo o espaço da minha ausência, da menina Esperança, «Com amor e eterna saudade dos seus pais».

Fui ficando, conheci os meus irmãos, acompanhei os seus primeiros passos, as aventuras da sua infância, as primeiras desventuras da adolescência, comunguei das suas alegrias e tristezas nos almoços de domingo, onde todos permaneciam silenciosos e encerrados no seu mistério e minha mãe sorria, de quando em quando, como uma estátua enigmática de pedra branca. Até que todos foram partindo, um por sua vez, minha irmã para casar e meu irmão para estudar e perder-se no mundo.
Meu pai, homem trabalhador e sóbrio, de mãos pesadas, grossas e ásperas, sempre instalado nos fins de tarde na doçura da sua presença, a fumar cachimbo e a observar atentamente as nuvens azuladas do fumo, morreu na tarde de verão mais quente que alguma vez vivi. Partiu sem um queixume, sem uma sombra no seu olhar, poucas semanas depois de saber que meu irmão abandonara o curso de Direito em Coimbra para partir pelo mundo como marinheiro. Almoçou calmamente como sempre o fazia, levantou-se e anunciou a minha mãe que iria descansar um pouco, beijou de modo trémulo a testa de minha mãe, que tricotava distraidamente na sala de estar, rodeada pelos motivos florais ainda não tão gastos do sofá, e cambaleou até à rede ancorada na figueira que abraça as traseiras desta casa, seguido pelo seu cão Tejo.
Morreu nessa rede, embalado num sono pesado, na mesma rede onde fui concebida numa manhã branca e ligeira por um casal jovial e risonho que nunca encontrei, a rede onde a minha irmã chorou a perda do seu primeiro amor, onde meu irmão sonhou com paisagens inóspitas e mulheres exóticas de países distantes, a rede onde minha mãe se sentou incontáveis vezes, olhando as estrelas em noites frias com um olhar pesado e vazio, tentando imaginar à força que aspecto teria eu tido aos 3 anos, aos 4, aos 7, aos 20, que linhas de carácter teriam tecido meu destino e que conversas teríamos as duas. Sem imaginar jamais que ali estava eu, a seu lado, sem respirar mas atenta a todas as ondas que dela emanavam. Sempre, como uma sombra a quem ninguém devolve o olhar. Como o cão Tejo que até morrer de cansaço e velhice, permaneceu ainda sete anos junto da rede onde meu pai faleceu, fiel na sua espera inútil e na esperança do dia em que o dono regressaria. Porque os cães e os fantasmas não conseguem compreender a ideia da morte.

Aforismo #1


O sexo por sexo é uma das maneiras mais eficazes de boicotar o contacto com o outro.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

A Mulher Certa


O amor é, desde Platão, uma questão política. A ligação amorosa coloca tudo o que há de mais límpido e visceral na mesa – é no fundo o significado de intimidade. Implica a perda do controlo total da situação, o arrebatamento pela paixão, a vertigem da entrega – todas as cartas na mesa. Embora todas as pessoas desejem viver um grande amor, nem todas são capazes: há todo um conjunto de factores como o medo, a insegurança, o preconceito, as diferenças sociais, os abismos culturais, que impedem a rendição absoluta. Além disto, há os que preferem continuar a jogar, depois de verem a mão dos outros, porque acham que pode haver uma mão mais alta algures capaz de os satisfazer profundamente.


A Mulher Certa de Sándor Márai fala da pessoa certa, de amor, de mentira, de manipulação, de dor e solidão. É um livro que deve ser lido numa noite de insónia. A moral da história? Para poucas pessoas existe uma pessoa certa e para uma infinidade ainda menor esta pessoa coincide com o ser amado. Para a maioria «existem somente pessoas, e, em todas elas, um pedacinho da pessoa certa, mas em nenhuma se concentra tudo o que se aguarda e dela esperamos. Nenhuma pessoa reúne em si tudo isso, nem existe a certa, a única, a maravilhosa, essa figura singular que nos traz felicidade. Existem somente pessoas, e em todas elas, há escórias e um raio de luz, tudo…»


É sempre mais fácil afastarmo-nos ou deixar que venham até ao nosso hall de entrada apenas, temendo que a nossa sala de reserva onde conservamos a nossa querida solidão contenha mais cadáveres que tesouros. O desencontro tem a seu favor elevadas probabilidades face à união autêntica. O amor acontece muito raramente, o mais das vezes são apenas duas solidões protegendo-se uma à outra, como diria Rilke, ou duas pessoas a verem televisão sentenciadas por uma vida, como cantava Nina Simone.


«Tens aqui lume. Tu como resistes nesta luta contra o cigarro?... Eu não consigo, pelo que já desisti. Não aos cigarros, à luta. Um dia, também terei de ajustar estas contas. Um homem deve perguntar-se se vale a pena, ou não, viver mais cinco ou dez anos sem cigarros, ou se lhe convém abandonar esse vício vergonhoso e mesquinho, que acaba por matá-lo, mas que, enquanto não o mata, lhe enche a vida de uma estranha matéria que, simultaneamente, acalma e estimula o sistema nervoso. Depois dos cinquenta anos, é uma das questões mais sérias da vida. Eu respondo-lhe com espasmos na coronária e a decisão de assim prosseguir, até à morte. Não hei-de renunciar a este veneno amargo, porque não vale a pena. Dizes que não é assim tão difícil desacostumarmos?... Claro, é lá agora difícil. Eu também consegui, e não foi só uma vez, enquanto valeu a pena. O mal é que pensava todo o dia no cigarro. É preciso olhar também para isto, um dia. Temos de nos render, face à nossa própria fraqueza e se precisarmos de uma droga, convirá pagar o preço. Então, tudo se torna mais simples. Dizem-me: “Não és um herói.” E eu respondo: “É bem possível que não seja um herói, mas também não sou um cobarde, porque tenho a coragem de viver as minhas paixões”»


A questão das paixões não pode ser avaliada por valores mercantis, como «valeu a pena», em termos de ganhos e perdas: trata-se apenas se queremos fazer uma coisa e se a fazemos ou somos cobardes e nos deixamos ficar na antecâmara da emoção. No factura final, o corpo está sempre em cheque: vergado à solidão ou recordando o arrebatamento do amor. Portanto arrisquemos uma aposta alta de vez em quando - a sorte favorece os audazes. Dizem...

domingo, 21 de setembro de 2008

Desejos

Desejo a você
Fruto do mato
Cheiro de jardim
Namoro no portão
Domingo sem chuva
Segunda sem mau humor
Sábado com seu amor
Filme do Carlitos
Chope com amigos
Crônica de Rubem Braga
Viver sem inimigos
Filme antigo na TV
Ter uma pessoa especial
E que ela goste de você
Música de Tom com letra de Chico
Frango caipira em pensão do interior
Ouvir uma palavra amável
Ter uma surpresa agradável
Ver a Banda passar
Noite de lua Cheia
Rever uma velha amizade
Ter fé em Deus
Não Ter que ouvir a palavra não
Nem nunca, nem jamais e adeus.
Rir como criança
Ouvir canto de passarinho
Sarar de resfriado
Escrever um poema de Amor
Que nunca será rasgado
Formar um par ideal
Tomar banho de cachoeira
Pegar um bronzeado legal
Aprender um nova canção
Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada
Pôr-do-Sol na roça
Uma festa
Um violão
Uma seresta
Recordar um amor antigo
Ter um ombro sempre amigo
Bater palmas de alegria
Uma tarde amena
Calçar um velho chinelo
Sentar numa velha poltrona
Tocar violão para alguém
Ouvir a chuva no telhado
Vinho branco
Bolero de Ravel
E muito carinho meu.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 20 de setembro de 2008

Na Corda Bamba


Não sei quando foi que começou ou se aconteceu de súbito. As grandes rupturas penetram na nossa cabeça, em segredo e sem margem para falhas, não se fazem anunciar, acontecem e pronto já está. Sei apenas que algo – uma mola, um elo, um pilar ou, então, outra coisa qualquer cuja natureza desconheço – se partiu dentro de mim, de modo irrecuperável. No lugar dessa perda, desse abandono, dessa quebra fatal, ficou apenas a solidão instalada com toda a pompa e circunstância na sua certeza inquestionável. Faz frio aqui. Arrefeceu tão de repente e todas as dádivas com que podia aquecer a minha alma se retiraram.
Um palco vazio, no centro, uma boneca de trapos abandonada, que não sabe seduzir sem jogar, sem arriscar a sua vida. Toda uma vida na corda bamba a saborear o risco da vertigem. Sabia que algum dia havia de cair, só não sabia para que lado – continuo sem saber. Sei apenas que a minha alma está em queda livre, vai pagar o preço da liberdade, sem laços nem amarras que a amparem. E de repente, um súbito desejo de assentar, de ser estável, de ser doce. Tarde demais.
Ontem olhei uma criança nos olhos e ela começou a chorar. Não sei o que ela viu em mim mas não pude evitar. Talvez tenha visto o colapso da esperança. Comecei a chorar juntamente com ela, num pranto progressivo de desespero. Em redor, os ditos adultos, olhavam a cena com alguma estupefacção. A menina correu para o abrigo das pernas da mãe, que rapidamente a acolheu e tratou com leviandade a sua tristeza. Eu, fiquei ali sozinha, sem ninguém para me consolar, a chorar mais calmamente.
Arrefece. O sono e a indiferença invadem as ruas de cada cidade, atravessam como um vento subtil as divisões de todas as casas, imiscuem-se como uma mulher delambida em todos os recantos da alma humana.
Arrefece e nenhuma fantasia, paixão ou amor resta na paisagem deserta. Deixo-te ir na corrente do esquecimento. Abandono-te antes que me abandones. Foi sempre assim. Deito, com alguma reticência, algumas lágrimas pela tua partida. Porque levas algo meu na tormenta que te arrasta. Algo que não sei se é irrecuperável.
Arrefece. Porque nunca estiveste aqui. Foi tudo imaginação minha. E se nos voltarmos a encontrar, o que é possível, vou devolver-te o gelo que instalaste em mim. Vou devolvê-lo como uma bofetada subtil, para te magoar um pouco. Foi sempre assim.
Arrefece. Lá fora uma manhã de sábado pouco credível. Aqui, neste recanto solitário, apenas uma pergunta: será alguma vez diferente? Não pretendo abdicar da minha potente natureza feminina para suportar as tuas incertezas e inseguranças. Quero um homem a meu lado, sem medo de mim, sem ilusões, que me veja realmente. No entanto, custa-me sacrificar a imagem que criei de ti. Mas afinal os ídolos servem para isso mesmo – para derramar o sangue. O nosso, claro. Foi sempre assim.

domingo, 14 de setembro de 2008

Uma Questão de Beleza






Adorei este livro de Zadie Smith – foi o primeiro que li dela e fiquei encantada com a fluidez dos diálogos hiper-realistas e a inteligente e perspicaz descrição da dinâmica psicótica das famílias. O livro aborda tantas questões que me é impossível escrever tudo o que haveria a dizer sobre este romance, por isso opto pelo silêncio de uma citação, escolhida pela óbvia comunhão.

Até agora, uma coisa era certa: Claire Malcom era viciada em auto-sabotagem. Segundo um padrão tão profundamente mergulhado na sua vida que Byford suspeitava que ele tivesse origem no início da infância, Claire sabotava compulsivamente todas as possibilidades de ter uma felicidade pessoal. Parecia estar convencida de que não era felicidade o que merecia (…) Tinha chegado a um ponto de alegria pessoal. Por fim, aos cinquenta e três. E, portanto, naturalmente que era o momento perfeito para sabotar a sua própria vida. Com esta finalidade, tinha dado início a um caso com Howard Belsey, um dos seus mais antigos amigos. Um homem por quem não sentia desejo sexual de espécie alguma (…) Toda aquela situação era perversa, tanto mais por ela não a poder defender, nem sequer perante si mesma (…). No momento do seu maior compromisso emocional, tinha intervido no casamento mais bem sucedido que conhecia. (…) Tal como explicou o Dr. Byford, ela era realmente a vítima de um transtorno perverso e particularmente feminino: sentia uma coisa e fazia outra. Era uma estranha para si mesma.


E ainda seriam assim, pensou ela – estas novas raparigas, esta nova geração? Ainda sentiriam uma coisa fazendo outra? Ainda quereriam apenas ser queridas? Ainda seriam objectos de desejo em vez de – como Howard diria – objectos desejantes? Se pensasse nas raparigas que estavam sentadas de pernas cruzadas com ela, nesta cave, em Zora, na sua frente, nas raparigas iradas que gritavam a sua poesia no palco – não, não via nenhuma alteração importante. Continuavam famintas, continuavam a ler revistas femininas que odiavam explicitamente as mulheres, ainda se cortavam com pequenas facas em lugares que julgavam não poder ser vistos, ainda fingiam os seus orgasmos com homens de quem não gostavam, ainda mentiam a toda a gente sobre todas as coisas.


Sim, Claire, penso que pouco mudou desde os anos 60: continuamos mulherzinhas em busca de afecto, encurraladas entre o desejo asfixiante de agradar e a imperatividade da afirmação e independência. Sem submissão. Sem entrega. Os tempos de cólera que correm são mais difíceis para a condição feminina: a revolução femininista dos anos 60 não passou de um acumular de tarefas para a mulher - uma esposa dedicada, uma mãe irrepreensível, uma profissional competitiva e bem-sucedida, uma amante obrigada ao orgasmo - em vez de uma efectiva promoção da mulher. Em suma, estamos bem fodidas, mas não como pretendiam as sufragistas quando decidiraram queimar os soutiens. A mim, os soutiens nunca me incomodaram.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

A NÁUSEA OU A DOR DE EXISTIR





A Náusea é de facto um livro brutal, seco e de uma frieza metálica encantadora. O narrador, Antoine Roquentin, é um homem só e condenado à liberdade, como todos os modernos que se lhe seguiram. É um indivíduo, feio e ruivo, nada mais. Um indivíduo à deriva na sua própria existência, perdendo gradualmente a comunhão com os outros seres, atingindo pela Náusea, uma espécie de contaminação irreversível que perpassa dos objectos para os sujeitos e que desnuda a farsa oculta pela ideia de progresso da civilização burguesa. A guerra de um contra todos continua, escondida, mas declarada: em Beirute, em Lisboa, em Paris.

O ser humano está condenado a uma solidão irremediável, contido num paradoxo: a vontade de amar e ser tocado e a impossibilidade de alcançar o outro. Roquentin recorda a sua relação com Anny e a obssessão desta pelos «momentos perfeitos», uma moral que consiste em estar à altura do que nos acontece e aproveitar todos as situações excepcionais para potenciar ao máximo a sua afecção, e a sua incapacidade de corresponder às expectativas dela.

Era uma vez um rei que tinha perdido uma batalha e sido aprisionado. Vivia a um canto, nos acampamentos do vencedor. Um dia vê passar, agrilhoados, o seu filho e a sua filha. Não chorou, não disse nada. Em seguida, vê passar, agrilhoado também, um servo seu. Então pôs-se a gemer e a arrancar os cabelos. Tu próprio podes inventar os exemplos. Bem vês: há casos em que não se deve chorar – ou então é-se imundo. Mas, se deixarmos cair uma cavaca em cima dum pé podemos fazer o que quisermos, gemer, soluçar, saltar ao pé coxinho. O que seria tolice seria ser estóico constantemente: era esgotarmo-nos sem proveito.

No encontro final entre ambos, Anny mostra-se destroçada pelo esforço de sobreviver a si própria, tendo deixado de acreditar na possibilidade de acção e dos afectos. No entanto, não procura em Roquentin algum consolo paliativo nem lhe permite a mínima aproximação. A última vez que a vemos é com uns olhos inexpressivos. O outro que não devolve o olhar, como uma superfície oca onde o reflexo deixou de acontecer: bombas explodem em Beirute, Lisboa arde e em Paris dança-se.

Um dos pontos mais arrebatadores deste tratado da melancolia é a descrição que o narrador nos vai fazendo das pessoas que encontra durante as suas deambulações, revelando simultaneamente um conhecimento cirúrgico e um desprezo acutilante da alma humana. Achei particularmente interessante a descrição que o narrador faz da empregada de limpeza do seu hotel, uma negra pequena com quase quarenta anos que casou com um bonito rapaz, que todas as noites chega a casa embriagado:

“A ideia vai-a roendo, tenho a certeza, mas com lentidão, com paciência: ela reage, mas não é capaz de se consolar, nem de se abandonar ao seu mal. Pensa no caso um bocadinho, um bocadinho pequenino, tira partido dele. Sobretudo quando está acompanhada, porque os outros a consolam, e também porque faz bem falar no assunto com um tom presumido, com ar de quem dá conselhos. Quando anda sozinha pelos quartos, ouço-a cantalorar, para afugentar os pensamentos. Mas passa todo o dia cabisbaixa, cansa-se depressa e amua:
«É aqui», diz ela tocando na garganta, «trago aqui um nó.»
Há avareza na sua maneira de sofrer. Nos seus prazeres deve haver também. Admira-me que esta mulher não tenha vontade, às vezes, de se libertar daquela dor monótona, daquele resmonear que volta a moer, assim que ela deixa de cantar; que não deseje sofrer por uma vez, afogar-se no desespero. Mas, ao mesmo tempo que quisesse não poderia: aquele nó veda-lhe a saída ao sofrimento.”

A longa descrição de um típico dia de domingo é um dos capítulos mais deslumbrantes: “Uma mulher nova, com ambas as mãos apoiadas à balustrada, voltou para o céu o seu rosto azul, riscado de sombra pela pintura dos lábios. Houve um instante em que perguntei a mim próprio se ia pôr-me a gostar dessa gente, de toda a gente. Mas afinal o domingo era deles, e não meu.

Aconteceu-me qualquer coisa: já não posso duvidar. Qualquer coisa que veio à maneira de uma doença, não como uma vulgar certeza, não como uma evidência: que se instalou sorrateiramente, pouco a pouco. A dada altura senti-me um tanto esquisito, algo incomodado, mais nada. Tomado o seu lugar, essa coisa não mexeu mais, ficou como estava, e pude assim convencer-me de que não tinha nada, que tinha sido um rebate falso. Mas eis que o mal começa a propagar-se.” Exacta descrição do que sinto: também a mim me aconteceu qualquer coisa, o pânico parece ter-se instalado faustosamente no rés de chão do meu pensamento. Estou só à espera de o vomitar. Talvez no domingo dos outros.

domingo, 3 de agosto de 2008

Longe de Veracruz



«Destroçado, regressei a Barcelona.
(…)
Lembro-me como se fosse hoje. Soaram as seis em ponto da tarde naquele maravilhoso relógio da parede que a nossa mãe comprara a um antiquário de Berga. As seis badaladas soaram de forma contundente, como a quererem dizer-me que eram os seis golpes secos que em plena fronte acaba de me dar a vida. Li a graciosa legenda que inscrevera no relógio um artesão anónimo: “Quem me olha demasiado perde o seu tempo.” E sorri levemente, mas notava-se que estava triste. Não era fácil ocultar que estava preocupado. Lembro-me muito bem do que sentia. Pensava: “Alguém me fodeu.” Dizia isto, incapaz de pensar noutra coisa diferente, e repetia: “Alguém me fodeu”. Dizia-o insistentemente e a frase ressoava como doze badaladas juntas, enquanto fechava com força o meu único punho e sustinha a respiração e abafava um grito angustiado, chorando em segredo, ligeiramente transtornado.»

«Levanto-me e vou à janela ver como chove, e digo a mim mesmo que, no fundo, as desgraças dos romances são sempre belas porque nelas não corre sangue autêntico (…) Mas Heine já disse que depois das grandes tragédias acabamos sempre por assoar o nariz».

terça-feira, 22 de julho de 2008

A Esteticização da Vida Moderna


«Não existem livros morais ou imorais. Os livros são mal ou bem escritos. É tudo.»

O Retrato de Dorian Gray é um livro fascinante, embriagante e alucinatório. Um veneno misterioso perpassa pelos aforismos amorais de Lord Henry, pela estecização da experiência implementada por Dorian Gray e pela cadência musical das palavras reunidas por Óscar Wilde.

Dorian Gray é um jovem, belo e inútil, um Adónis de virtudes e inocência que aceita posar para o pintor Basil Hallward, sem perceber o poder sublime da sua beleza. A consciência desse poder e a semente do vício brotam nele no dia em que conhece Lord Henry e contempla o seu próprio retrato finalizado. Qual jovem Narciso ou Fausto, Dorian Gray formula então o desejo de que a sua imagem jovem e bela se perpetue no seu rosto e que a degradação e a velhice atinjam apenas o seu retrato.

Cumprido misteriosamente o seu desejo, Dorian Gray empenha-se numa vida de prazeres mundanos e vícios, cujo marca perturbadora ele vai observando no seu retrato, cedendo a todas as tentações, de modo a minar todos os códigos do monstruoso, do imoral e do ilegal, sob o altar do seu valor estético. «A consciência e a cobardia são uma e a mesma coisa. A consciência é apenas a marca comercial da firma». Dorian Gray procura saborear ao extremo o sabor de todas as tentações e pecados, com o objectivo de escapar ao sofrimento – avaliando cada acto pelo valor estético da sua sensação – em busca de uma juventude e alegria sem limites. Tudo se pode converter num prazer delicioso, até mesmo a acção mais abjecta, desde que repetida suficientes vezes – esta é a regra do vício que comanda as demandas de Dorian e o transforma em espectador da sua vida como se de uma obra de arte se tratasse.

«A vida não se rege pela vontade ou pelas intenções. A vida é uma questão de nervos, de fibras, de células lentamente edificadas onde se oculta o pensamento e a paixão tem os seus sonhos. Podes julgar-te seguro e achares-te forte. Mas a tonalidade circunstancial de uma sala, ou um céu matinal, ou determinado perfume que em tempos apreciaste e traz consigo subtis memórias, um verso de poema esquecido com que de novo te deparas, a cadência de uma peça musical que deixaste tocar… digo-te, Dorian, que é dessas coisas que depende a vida.»

Ao desafiar todas as leis da afectividade em nome de uma salvação da alma pelos sentidos, Dorian Gray acaba por perder a sua alma, sob o choque perpétuo das experiências intensas, restando-lhe apenas a sua imagem degradada para contemplação: um espectador de si próprio reduzido ao mistério do visível, que ousa ultrapassar num acto de fúria contra o seu duplo e que lhe arrebata a vida. As grandes paixões devem vergar-nos ou partir. Ou nos matam ou acabam por fenecer. As mágoas e os amores superficiais perduram enquanto os grandes amores e dores são eliminados pela sua própria plenitude, como se houvesse no homem um mecanismo de defesa, semelhante á estrutura traumática, que o protege de experiências intensas ou o arruína para toda a vida.



O fim trágico-cómico de Dorian Gray resulta da vontade que o protagonista sente em experimentar uma última sensação, o castigo – a religião e a literatura sempre afirmaram que todo o crime tem um castigo – e na impossibilidade de realização deste último desejo. O único carrasco que resta no púlpito é o olhar dos outros que atravessa o nosso reflexo no espelho e perturba o curso da aventura individual que determinámos para nós. Numa época em que tudo faliu, em que cadafalso nos podemos sacrificar senão no no altar do próprio?



«A verdadeira razão por que todos nós pensamos tão bem dos outros é que todos temos
medo de nós próprios. A base do optimismo é o puro terror.
»

domingo, 13 de julho de 2008

Em Nome da Terra



Depois do êxtase de Na Tua Face, optei por ler mais um livro de Vergílio Ferreira para ver se me curava da obsessão. Escolhi Em Nome da Terra, um conjunto de reflexões de um homem idoso, despejado num lar pela filha, que se dedica a recriar a imagem do corpo e da história da sua mulher, até que a terra o engula com o seu apelo derradeiro.

A descrição da vida no lar é extremamente bem conseguida: um conjunto de seres aposentados de ser gente, à espera da morte enquanto vão ruminando as contas finais com a vida. Foi exactamente o que senti quando entrei pela primeira vez num lar há uns anos atrás para visitar uma vizinha minha com cara, cabelos e mãos de bruxa que alegrou a minha infância com a sua extrema bondade, doces e alguns bibelots, e que o meu coração sentiu sempre como uma avó autêntica. Era uma senhora muito magra e independente até que os filhos a decidiram colocar num lar, após a morte do marido, de modo a poderem apoderar-se com alguma antecipação dos bens da velhota, sem terem que esperar que o destino acertasse as contas com ela.

«Os filhos são uma invenção da nossa fraqueza, o modo mais barato de se ser eterno. Um modo proletário de ser Deus (…). Porque um filho, pois, é um ser sagrado. Mas o sagrado está também neles por acréscimo e quando se tira o acréscimo o que lá fica é quase sempre um estupor» (p. 39).

Após alguns meses, decidi visitá-la porque lhe tinha prometido que, mesmo vivendo em Lisboa, nunca me esqueceria de a visitar sempre que fosse ao Algarve. Ela não sabia que era e será sempre uma das figuras mais encantadoras dos meus tempos de criança tímida. Foi uma das visões mais deprimentes da minha vida: ao entrar na sala de estar, contemplei rapidamente um conjunto de velhos sentados em torno de uma televisão cujo som ensurdecedor não os despertava da espera obstinada da morte. Nos seus olhos a marca cinzenta do abandono e da desistência. Todos juntos mas irremediavelmente só sem paciência nem alento para atentar na desistência alheia.
Com algum esforço, lá reconheci a minha adorada vizinha com cara de bruxinha, com os cabelos brancos, outrora compridos até aos joelhos que usava sempre atados e cobertos por um lenço, curtos e soltos junto ao pescoço. Estava muito bonita, parecia agora uma boneca aristrocrata alva numa quietude partilhada com os anjos. Completamente alheada de tudo o que acontecia em torno de si, olhava-me sem reconhecer e falava com a minha mãe num delírio comovente que, ela julgava ter lugar à 30 anos atrás, quando existia apenas o meu irmão mais velho e ela ainda vivia ao nosso lado, útil, independente e bondosa. Terminada a hora do lanche que consistia num frugal pão com manteiga e copo de leite, despedimo-nos e decidi que nunca mais lá voltaria, para não ver os seus olhos cinzentos líquidos de ruína e recordações a sós com algumas contas ainda por liquidar.

«Gostava de me sentir livre de tudo, a gente carrega imensas coisas às costas, mesmo sem darmos conta, mesmo sem sabermos. As coisas do nosso uso, as pessoas das nossas relações, os hábitos da nossa monotonia, as ideias do nosso sustento mental. Tudo isso ocupa um espaço enorme do nosso ser (…). O homem investe-se nas coisas e no resto porque é carga a mais para si. Deus fez-nos cheios de buracos na alma e o nosso dever é tapá-los a todos para navegar (…). Prepararmo-nos para a morte é irmos morrendo tudo até ficarmos só cheios de nós» (p. 39).

Era qualquer coisa como isto que ouvi o José Saramago dizer recentemente na apresentação do novo romance do Mia Couto: vivemos com a ilusão de que sabemos o que a morte é, mas quando nos deparamos com essa experiência, percebemos que se trata de um mistério que nos ultrapassa. Dizia o Saramago que quando o pai morreu percebeu que não sabia que ele tinha sido, mas que o melhor que podemos fazer com as pessoas velhas é deixá-las em paz pois elas têm tanto a resolver consigo antes de poderem partir.

Temo que o mesmo me aconteça com o meu pai. Gostava de saber a sua história, as suas vitórias e as suas derrotas e falhas, as recordações mais queridas e aventuras mais despropositadas da sua infância e juventude, mas a sua complicada história com a minha mãe, onde eu vim a nascer enquadrada, tornou impossível este diálogo, porque conflituante com a outra versão dominante, fazendo da nossa história de amor entre pai e filha, uma ausência de ternuras ditas em voz alta. Porque estas, as palavras de ternura e partilha, nunca assentaram bem nos campos de batalha.

Mas será que alguma vez os filhos compreendem ou suspeitam do ser gente dos pais? E os pais será que conseguem adivinhar a verdadeira natureza dos filhos? Seremos alguma vez capazes de retirar o acréscimo de sagrado e mágoas que acumulamos ao longo de uma vida?

A morte é talvez o único striptease magistral e eu gostava de o fazer aos 99 anos.

domingo, 29 de junho de 2008

A Verdade de Cada Face


Há muito tempo que um romance não me enchia tanto: depois de ler Na Tua Face de Vergílio Ferreira dei por mim a voltar ao início do livro, como se apenas me apetecesse ler e reler aquela história até deixar de me sentir tão saciada e poder voltar às minhas deambulações de leitora compulsiva. Já tinha lido Aparição quando tinha 15 anos, mas na altura o autor não me tocou tanto, talvez porque não estivesse numa altura de contemplação. Provavelmente, o existencialismo é uma coisa que vem com a idade, só a partir de certa altura encontramos uma certa velocidade lenta para observar, entender e sobretudo aceitar que as coisas são como são, sem as podermos encaixar rigidamente em categorias demasiado estreitas, como o bem e o mal, o belo e o feio, o amor e o ódio. Afinal, somos humanos, demasiado humanos, embora uns o sejam mais que outros.

«O feio. O horrível. Onde é que estão? Porque são uma invenção nossa, a Natureza está-se perfeitamente nas tintas. Ou é imensamente generosa como Deus e na generosidade cabe tudo. Ou é estúpida como o que simplesmente existe e não tem estética nenhuma ou estupidez a acompanhar. A estética do que existe é só existir. Tanto cabe nela a Helena do Menelau como a caca dela, quando é a hora de a aliviar, a ver se penso melhor. A ver se arranjo uma razão para empacotar com uma fita e um laço a razão que não tenho» (p. 29).

O livro fala da memória, de uma capacidade de olhar e recordar a nossa história quando já temos idade para poder ter uma. Uma idade em que todos os contrários da equação da vida se parecem anular, para virem no fim a equivaler a zero.

«Tanta coisa ainda quente na lembrança. Podia agora chamá-las e elas vinham, animais familiares. Talvez venha a chamá-las. Mas não agora. E é sempre preciso despertá-las da sonolência, chamá-las talvez aos berros como às crianças malcriadas e desobedientes. Ou deixar que me apanhem distraído e me saltem à frente como ladrões. Mas tu, não. Tu vens por ti sem te chamar procurar – quem é que te chama? Há quarenta anos, que é já tempo para tudo ser mortal. E sempre nesse rápido instante em que disse o teu nome e ficaste imóvel, a entender» (p.7/).

«São frases assim dispersas, vêm vindo atrás de nós como um cão. E o passado é isso, um instantâneo de imagens, frases avulsas. Devem talvez formar uma constelação, não a sabemos» (p.15).

Isto faz-me pensar que a nossa história é como uma grande casa, com vários compartimentos, uns mais escuros e com odor a humidade, que nos recusamos a visitar, mas que insistem em nos assaltar de vez em quando, perturbando a claridade das divisões onde gostamos de nos demorar, pelo conforto que proporcionam à nossa identidade. Provavelmente, só quando chegamos a uma idade avançada (se tivermos essa sorte), podemos dar-nos ao luxo de ficar a sós connosco e visitar todas as facetas e ramificações do nosso percurso sem razão, tentando decifrar nele o nosso mistério. E reviver certos episódios que sufocámos à pressa, numa idade anterior, em que certas coisas não eram permitidas por causa do inferno da voz dos outros no nosso interior.

Fez-me também pensar em ti e que devíamos ficar juntos para sempre, até nos engolirmos, para que pudéssemos depois partir e separar-nos. Entretanto, tranco-te num quarto onde o dia nunca acaba e permitirei a uma parte de mim visitar-te sempre que lhe aprouver e abandonar-te sempre que lhe apetecer. Talvez imagine outros encontros nossos e tudo não passará de imaginação, até que tudo se esgote. Ou não.

Em certos momentos, serei doce e terna, noutros insistirei em torturar-te, talvez te fale até de outros quartos da minha mente, apenas para te espetar facas na barriga e me deleitar com a tua dor, prisioneira do meu sonhar. Outras vezes, irei apenas ver o que fazes na minha ausência. Se te surpreender a jantar ou a cear, sentirei de imediato uma dor fulminante e aguda na cabeça – como podes sobreviver sem o meu alimento, como podes expulsar-me por outras fomes, como consegues preencher um espaço que devia ficar vazio para sempre?

Talvez um dia escreva a nossa história – a única possibilidade de sobrevivermos num espaço contíguo ao real, porque a minha memória é ainda fraca – a propósito, reservei-te um quarto arejado, com luz e janelas, para que possas escapar a qualquer momento, antes que eu agarre o essencial de nós. Prometes? Leva então contigo toda a contaminação e ternura e deixa o palco vazio e abandonado.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Em Carne Viva




Pergunto-me se algum dia as nossas feridas podem cicatrizar, se existirá recuperação possível de um modo de dor inominável que nos atravessa e corta de lado a lado, deixando-nos indiferentes a tudo, até nos tornarmos incapazes de sentir empatia pelos outros e reconhecer o direito da dor neles. Os românticos responderiam prontamente que sim, que existe salvação e que ela acontecerá pelo amor. Mas entretanto, a humanidade passou por dois séculos de progresso e razão, cada um de nós foi-se encarcerando em prisões confortáveis onde jogamos pelo seguro e nos tornamos fortes incomunicáveis de uma batalha travada contra nós mesmos, e os dias da minha vida vão passando e ninguém aparece para erguer as persianas da minha alma, que escapou sei lá para onde, talvez cansada de viver intensamente e sem ligações.

Nestes dias de angústia, andei a ler de modo desapaixonado (claro está, pois se a minha alma decidiu ir de férias) Em Carne Viva do escritor israelita David Grossman. De modo muito resumido, conta a história de um homem – Yair – que decide iniciar uma troca de correspondência, com uma mulher desconhecida – Miriam -, após observá-la uma noite e reconhecer no seu sorriso magoado algo da sua dor fundadora. Juntos, eles vão apalpando as zonas mais obscuras do outro em busca de um nome para a dor e também para a salvação, construindo uma intimidade original, baseada apenas em palavras e troca de segredos e infâmias, vivendo uma comunhão apaixonada dentro de uma bolha isolada da realidade e do quotidiano de cada um.

Em busca de uma nudez total, de uma sinceridade sem fronteiras que não se paute pela beleza da mentira, mas pela sordidez da verdade – porque a verdade parece ser sempre sórdida e tentamos sempre esconder dos outros todos os nossos pequenos delitos e grandes infâmias, o nosso lixo e fezes, para não perdermos a sua estima. Porque estamos convencidos, no fundo de nós mesmos, que não somos tão puros e estreitos de alma com as pessoas que prezamos, porque insistimos em amar nos outros a força que gostaríamos de ter. E assim, vamos vivendo o quotidiano, contraíndo o esfincter, pagando as contas e fazendo alguns projectos excêntricos nos intervalos de todas as exigências. Ignorando a mancha dos outros e sufocando na dor que não temos a coragem de vomitar. Até que a vida acaba ou explodimos antes dela acabar, restando apenas destroços em carne viva, que ninguém quer tocar, talvez por medo da contaminação.

Yair e Miriam entrelaçam-se através das palavras que trocam, com o compromisso de não se encontrarem fisicamente, para que os corpos não insistam em tocar-se das maneiras que lhes impuseram e depois se separem, porque esse é o nosso impulso natural, separar-mo-nos e, não o contrário. No entanto, todos esperamos o momento em que algo contrarie esse impulso natural, alguém nos toque delicadamente no rosto e deixe nas nossas profundezas uma marca de frescura que se sobreponha ao odor da podridão e da solidão.

Ao princípio, tocámo-nos como dois estranhos.
Depois, como nos ensinaram.
Só depois ousamos tocar-nos como eu e tu.


Embora aprecie bastante a versão portuguesa do título do livro, prefiro sem dúvida a opção inglesa: Be My Knife. Porque o amor pode de facto conter a salvação, mas terá que ser forte, incisivo e agudo como uma faca, para escavar até às feridas mais retraídas.
O Amor é que tu sejas a faca com a qual escavo dentro de mim”, escreve Miriam. Uma faca que nos permita nomear a dor, a ofensa, a humilhação, o abandono, para depois saborear o toque terno de uma mão na face. E a abertura radiante das persianas que insistem em permanecer fechadas até esse encontro. Até lá, parto em busca da minha alma e espero encontrá-la como um homem adulto subitamente desfeito num pranto libertador de lágrimas, para que possamos, por agora, fazer as pazes.

domingo, 25 de maio de 2008

Klaus Klump - A Inquietante Estranheza


"Há exercícios para treinar a verdade como, por exemplo, ter medo. Ou então ter fome. Depois restam exercícios para treinar a mentira: todos os grupos são isto, e todos os negócios. Estar apaixonado é outra forma de exercitar a verdade.



Klaus comandava pela primeira vez os negócios da família. Não tinha medo, nem fome, nem estava apaixonado. Cada dia era, pois, um exercício novo da mentira. Já tinha feito a vida real (tinha-a feito como se faz uma construção, algo material), agora começara o jogo: ganhar mais dinheiro ou menos. Nada de essencial: mas a mentira interessante é aquela que quase parece verdade. Klaus sentia a necessidade de transformar aquele jogo em algo fundamental. E faria isso até ao fim. Como fizera antes na guerra e na prisão. Quase que não via, aliás, diferenças nas três situações: era preciso ganhar ou não perder, e ele estava só. Eis tudo."



Foi o primeiro livro de Gonçalo M. Tavares que li. Se gostei ainda não sei, mas que me atingiu em cheio e com força naquilo que mais me move, isso sim, posso afirmar. Em tempos de guerra e angústia como os que vivemos, ninguém sai incólume: "Ninguém escapa à lógica económica. Os ganhos, as perdas, o lucro. Poderá a tua moeda ser estranha – o teu corpo, por exemplo – mas é moeda: utensílio de troca”.

Acredito profundamente que vivemos numa época de guerra total, de um contra todos e que só os mais astutos se salvarão - os mais sensíveis irão apodrecer lentamente nas suas confortáveis camas, com sonhos intermitentes induzidos por ansiolíticos e álcool, por que não sabem, não conseguem ver de que barricadas os miram. É a pior forma da guerra e do mal: dormir com o inimigo sem o suspeitar. Uma arma apontada e visível acaba por ser mais confortável.


sexta-feira, 23 de maio de 2008

Sapho - Costumes de Paris



Escolhi este livro porque no seu prefácio António Lobo Antunes diz tratar-se da mais bela história de amor que leu e, como sempre tive um fraquinho muito especial por histórias de amor plenas de magia, arrebatamento e ruína, não pude deixar de comprar a tal obra e empenhar-me na sua leitura.


Terminada a leitura num dia de ressaca inquietante, fiquei com uma sensação estranha. Afinal, a mais bela história de amor não ultrapassa o retrato de uma intimidade quotidiana entre um jovem aspirante a cônsul, Jean Gaussin, e uma mulher voluptuosa mais velha e mestra nas artes amorosas, Fanny, conhecida por todos os homens como Sapho.


É numa festa parisiense de mascarados que Fanny escolhe o jovem Jean para lhe devotar toda a sua vida e paixão. Durante 5 anos, Jean acredita não amar Fanny, vivendo obececado com a ideia de rompimento, que vai adiando, até se ver completamente enredado na intimidade doméstica que entretanto se firma entre os dois. O fim adivinhei-o desde o início, será Fanny, a amante descontrolada, que irá abandonar o hesitante amado: os que dão e os que amam partem sempre mais levemente dos que recebem, e é nestes que a falta do outro se faz sentir de modo mais agudo com o peso das carícias e palavras de outrora - ser amado e não amar, eis a maior cilada.


As ligações amorosas, aquelas que tendemos a julgar as mais livres e as mais íntimas, colocam mais em jogo do que a pura espontaneidade. Nelas projectamos, todos os nossos fantasmas e tendemos a escolher - ou ser escolhido - por um parceiro que nos toca nas questões mais profundas, que não são nunca as melhores. Gaussin cai na armadilha do ciúme e do vício, sem saber que as suas redes são mais poderosas do que as do amor e empatia. Esta é a história de amor mais honesta que alguma vez li; nela podemos ler a transição de um modelo romântico da coisa para algo que ainda não é possível classificar, embora estejamos todos a trabalhar nisso.


"Pudor, reserva, para quê? Os homens são todos iguais, presas de uma raiva de vício e de corrupção, e este garoto não era diferente dos outros. Engodá-los com aquilo de que gostam é ainda o melhor meio de os segurar. E o que ela sabia, essas depravações do prazer que nela tinham inoculado, Jean, por sua vez, aprendia-as, para as passar a outras. Assim corre o veneno e se propaga, queimadura do corpo e da alma, semelhante a esses archotes de que fala o poeta latino, e que passavam no estádio de mão em mão."


domingo, 18 de maio de 2008

Gente Feliz com Lágrimas - A Persistência das Velhas Questões


Recomendado por duas pessoas muito queridas, Gente Feliz com Lágrimas foi talvez uma das leituras mais penosas e viscerais da minha vida. Nele relembrei a minha infância, o meu pai severo e distante, as primeiras desilusões e a formação de um mistério no qual sempre me soube contida mas nunca decifrada.


À sua maneira, o romance de João de Melo, cativa pelas várias vozes narrativas, pelas metáforas e adjectivos multi-sensoriais extremamente inteligentes, pela história de amor e veneração de Nuno e Marta, e repele pelo modo heavy como nos relata a saga de uma família condenada pelos afectos sufocados, que vão condenando gerações através da herança de gestos que não se efectivaram, de palavras que não se cumpriram. Nos espaços que o afecto não preenche, instala-se a falta e uma solidão inescapável que acaba por consumir a possibilidade mais pura de amor, porque a violência original, a cena primitiva da nossa concepção dificilmente é eliminável.


«Acontecia então que o meu pobre cão de pai latia de prazer. Prisioneira daquele corpo, a mãe sufocava ainda, amarrada pela inconcebível e obstinada força dos braços dele. Era quando ele se esvaía todo na sua golfada morna, pastosa e tão orgulhosamente masculina. Se não repetissem - e raramente o faziam - a mãe erguia-se, ia ao bacio, esfregava-se energicamente a um pano para nós desconhecido ou mesmo inexistente. Quando voltava para a cama, ele dormia tão profundamente como a paz das folhas de figueira nas noites de Verão. Dormia com o mesmo sono dos ratos, sem memória alguma e sem qualquer remorso de nos ter feito o mal do barulho, o mal de ser o único, o dono e senhor daquele corpo profanado no seu pudor (...).


Toda a minha vida girou afinal em torno e em função dessa paixão primitiva e anterior (...). Porque quando tive o outro destino de Marta, dei por mim a amá-la à maneira dele, a gostar de dar-lhe palmadinhas nas nádegas e a fazê-la gemer sob a força dos mesmos abraços. Contudo, muitos anos mais tarde, quando naufraguei nas águas revoltas da minha relação com Marta e perdi o pé à vida, apresentei-me ao mais louco psiquiatra de Lisboa. Um dedo categórico espetou-se-me à frente do nariz e deixou-me petrificado:

- O senhor está é inventando a infelicidade e ficcionando o seu triunfo: parece uma noivinha angustiada na noite de núpcias. A gente pega no escafrando, meu caro Pier Paolo Pasolini, e vai é mergulhar no lodo da infanciazinha. Percebido? Venha daí comigo».


Gente feliz com lágrimas poderia ser a melhor expressão para descrever o povo português, e trata afinal disso mesmo, de gente feliz com lágrimas. De gente que conhece a esperança da infância, a empatia dos irmãos, a crueza amarela de uma pai que nunca se senta para cear no nosso coração, os arrebatamentos do primeiro amor, a ternura de alguns encontros rápidos, a dureza da traição, um rabo sentado num domingo em frente à televisão a engordar solitariamente e uma segunda pomba da paixão que pousa distraidamente no nosso ombro adormecido. O resto destes risos que choram e prantos que riem é uma certa ferida no olhar de quem perdeu a inocência cedo demais, é afinal literatura!

domingo, 11 de maio de 2008

Trilogia de Nova Iorque - A vertigem da desrazão


A Trilogia de Nova Iorque de Paul Auster - autor que conheço de modo leviano, tendo apenas lido o comovente Timbuktu - compõe um mosaico de histórias inquietantes edificadas pelo imaginário de uma cidade sombria e misteriosa. Brincando com as possibilidades do real e dos seus abismos, Auster desafia constantemente e com mestria as expectativas do leitor, sem o nunca o deixar com um sentimento de fraude.

O mais marcante neste livro, composto por três histórias que se entrelaçam como um novelo e nos enredam de tal modo que acabamos por não encontrar o fio do seu feitiço, é o modo como as personagens são arrastadas pela vertigem do irracional e do vazio, sempre comprometidas na sua perdição.

No conto «A Cidade de Vidro», Quinn, um homem devastado pela trágica perda da mulher e do filho, é perturbado a meio da noite por um telefonema de um homem que procura um detective chamado Paul Auster. O acaso despoleta uma série de aventuras e desventuras e Quinn acaba por se empenhar numa identidade que não é sua, até à perda de qualquer identidade, com uma persistência que apenas a solidão e a sua deriva poderão justificar.

As personagens errantes desta cidade ausentam-se do seu quotidiano por um acaso e ficam a viver num tempo marcado apenas pelas suas obsessões, esquecendo rapidamente os meses, os anos e a face do outro, e a escrita de Paul Auster devolve-nos de modo arrepiante o vazio das suas almas estilhaçadas.

Descobrimo-nos no fim que se tratam de seres semelhantes a nós, reveladas de outro modo pela desligação do quotidiano dos mesmos. Humanos apesar de toda a incomunicabilidade e degradação, que tentam sobreviver num mundo em que as velhas respostas já não servem para sossegar as novas inquietações. «Pois as nossas palavras já não correspondem ao mundo. Quando as coisas eram um todo, podíamos confiar nas nossas palavras para nos exprimirem. Mas essas coisas fragmentaram-se aos poucos, rasgaram-se, ruíram num caos. E, no entanto, as nossas palavras permaneceram as mesmas. Não se adaptaram à nova realidade» (p.85).
Das histórias que compõem a trilogia, a que mais me tocou foi a que se intitula «O Quarto Fechado», narrada por um homem que se ocupa da mulher e obra de um amigo de infância enigmaticamente desaparecido. Gostei particularmente da cena de sexo entre o narrador e a mãe do amigo ausente, pela crueza da descrição: «Embora eu estivesse embriagado, não estava assim tão aturdido que não soubesse o que fazer. Mas nem a culpa foi suficiente para me deter. Este momento acabará por passar, dizia-me a mim próprio, e ninguém sairá magoado. Não tem nada a ver com a minha vida, não tem nada a ver com Sophie. Mas nessa altura, enquanto aquilo acontecia, descobri que era mais do que isto. O facto é que eu estava a gostar de foder a mãe de Fanshawe - mas de um modo que não tinha nada a ver com prazer. Eu estava consumido, e pela primeira vez na minha vida não encontrei nenhuma ternura dentro de mim. Estava a foder movido pelo ódio, e estava a transformar aquilo num acto de violência, dilacerando esta mulher como se quissesse pulverizá-la. Eu tinha penetrado na minha própria escuridão, e foi ali que aprendi a coisa mais terrível de todas: que o desejo sexual também pode ser o desejo de matar, que chega uma altura em que é possível escolhermos a morte em detrimento da vida» (p.271).
Mais do que seres de luz e razão como pretendiam os iluministas, somos também seres de sombras movidos por teias irracionais que nos arrastam até à perdição, e é no sexo que podemos vislumbrar a nossa fatal inclinação para a perda, a rendição total numa petit mort, que poderá ser também a única possibilidade de entrega. Somos mais consumidos do que livres consumidores e é geralmente nas acções que julgamos despropositadas que um sentido e nós próprios encontramos uma forma de fuga para outras possibilidades desacorrentadas da obrigação da racionalidade. Trilogia de Nova Iorque fala de tudo isto e muito mais, é uma espécie de policial pós-existencialista que nos arrepia não pelo crime mas pelo castigo que é cumprido pelo próprio carrasco. Os seus personagens colaram-se à minha pele durante várias semanas em que não pude deixar de perceber o apelo do abismo - popularmente chamado de vertigem.