sábado, 28 de janeiro de 2017

O mes amis, il n'y a pas d'ami!


Não consigo atinar com o Thomas Bernhard. Há uns tempos, um leitor estimado, recomendou-me com o entusiasmo O SOBRINHO DE WITTGENSTEIN. No fim de semana passado, essa recomendação regressou-me à memória e lá trouxe um exemplar emprestado da biblioteca.

Lê-se bem e rápido. No entanto, o estilo repetitivo de Bernhard não me cativa. Embora perceba musicalidade da coisa na língua original, acaba por me recordar também os nossos velhos do Restelo. O permanente tom ressentido do autor também não me convida, embora perceba e comungue da sua indignação e raiva.

E é isso, mais um livro com o qual não empatizei e cujos louvores não entendo. Falha minha, muito provavelmente, pois um leitor arrisca-se sempre a falhar o encontro com um determinado livro se as circunstâncias não forem favoráveis. Admiro a coragem com que Bernhard detracta tudo e todos, expondo também as suas vilezas, como a de ter abandonado o seu melhor e mais verdadeiro amigo na fase final da sua vida. Contudo, não consigo deixar de sentir que a sua exposição não vai tão fundo quanto poderia ir e mais do que um livro sobre o seu amigo, temos um livro sobre próprio Bernhard.


Eu podia contar agora histórias do Paul, pois não há só centenas, mas milhares, em que ele é a figura central e que são famosas na chamada alta sociedade vienense, que era a sua e que, como se sabe, vive de tais histórias jocosas e de nada mais, mas não é essa a minha intenção. Ele era uma pessoa que vivia em grande agitação, permanentemente nervoso, sempre incapaz de autodomínio. Era um cismador, alguém que a propósito de tudo fazia filosofia e um acusador incessante. Como era um observador incrivelmente adestrado e nessa sua observação, que ele aperfeiçoou com o tempo, tornando-a uma arte, era de uma completa irreverência, tinha continuamente razões para acusar. Não havia nada que não desse motivo a qualquer acusação. As pessoas que chegavam à sua presença não ficavam em paz mais que uns brevíssimos momentos, porque logo despertavam uma suspeita e eram culpadas de um crime ou pelo menos de qualquer simples delito, sendo depois flageladas com aquelas palavras que são também as minhas quando me revolto ou defendo, quando me decido a lutar contra a insolência do mundo, para não ficar por baixo e não ser por ele destruído. No Verão tínhamos o nosso lugar cativo na esplanada do Sacher e na maior parte do tempo vivíamos apenas das nossas acusações. Ficávamos horas e horas sentados na esplanada do Sacher e acusávamos. Com uma chávena de café na nossa frente, acusávamos o mundo da forma mais radical.

E, por falar em mistérios,



Pára-me de repente o Pensamento...
— Como se de repente sofreado
Na Douda Correria... em que, levado...
— Anda em Busca... da Paz... do Esquecimento

— Pára Surpreso... Escrutador... Atento
Como pára... um Cavalo Alucinado
Ante um Abismo... ante seus pés rasgado...
— Pára... e Fica... e Demora-se um Momento....

Vem trazido na Douda Correria
Pára à beira do Abismo e se demora
E Mergulha na Noute, Escura e Fria

Um Olhar d’Aço, que na Noute explora...
— Mas a Espora da dor seu flanco estria...
— E Ele Galga... e Prossegue... sob a Espora!

Ângelo de Lima (1872-1921)

«24 pássaros contra todas as ausências»


Descobri o Daniel Faria na semana passada, graças a um espectáculo de Pablo Fidalgo no Teatro D. Maria II na semana passada. Ao ver algumas das obras plásticas do poeta, gentilmente emprestadas pelo Mosteiro de Singeverga (como por exemplo os 24 pássaros contra todas as ausências), pressenti que assomava ali um daqueles mistérios cujo convite tanto procuro. No dia seguinte, fui à biblioteca para conhecer mais da sua poesia. Para quem anda tão desatento como eu, aqui fica um artigo interessante: https://www.publico.pt/noticias/jornal/daniel-faria-o-rapaz-raro-159820

Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados

Do lugar

Cada um afoga-se à sua maneira



Com o aproximar do final do ano, os suplementos culturais dedicam-se a eleger os livros do ano. Tornou-se um hábito aguardar estas listas com expectativa e posteriormente anotar os títulos que me tinham escapado ou aos quais a solidão necessária tinha faltado. Porém, nos últimos três anos, tais listas não me têm trazido a satisfação tão almejada. E pergunto-me se estará a produção editorial mais empobrecida, ou o empobrecimento será da crítica, ou pior ainda, de mim mesma, cada vez mais sóbria, menos propensa a arrebatamentos.

Embora não tenha concentrado as minhas leituras em publicações de 2016, ouso a leviana afirmação: O CASO DO CAMARADA TULAEV foi dos melhores livros do ano. E a E-Primatur é um dos projectos editoriais mais recentes que acompanho com muitas ganas, sobretudo pela elegância com que têm demonstrado que não é preciso fuçar juntamente com sete cães para encontrar um osso. Resta ainda, para nossa graça e contentamento, muita literatura, negligenciada pelo cânone e pelos merceeiros de serviço. Sim, literatura dessa, grande ou alta, como preferirdes apelidá-la.

Diz o vulgo que as ninfomaníacas são tomadas pela compulsão sexual justamente porque não conseguem atingir o orgasmo. Pois assim sucede comigo no que diz respeito às leituras: leio, leio e raras vezes me satisfaço. Torno a ler, leio mais, sofregamente. E nada. Que pessoa esquisita me tornei! Ter-se-á a minha mente couraçado, secado definitivamente o solo fértil das primeiras leituras, em que tudo penetra com a força de dez marteladas, em que é possível sentir a vastidão do universo na própria pele? Mas, ah, as surpresas ainda sobrevêm e eis que um livro – sobre purgas estalinistas, vá-se lá acreditar – me agarra, os pés descolam do chão e lá vou eu, inteira em mãos e retina, rumo a essa distante e tão amada literatura! É assim, os cometas nascem à noite, justamente como reza o primeiro capítulo do livro, e há um fogo que se acende e não queremos mais apartarmo-nos da beleza. Jamais!

Kostia ponderava a compra de um par de sapatos havia semanas quando uma súbita fantasia, que até a ele o surpreendeu, deitou por terra todos os cálculos que fizera. Se passasse sem cigarros, cinema e, dia sim, dia não, sem a refeição do meio-dia, economizaria em seis semanas os cento e quarenta rublos necessários para a aquisição de um bom par de botins que a simpática vendedora de uma loja de artigos em segunda mão lhe prometera reservar «por baixo do pano». Entretanto, ia caminhando alegremente sobre solas de cartão renovadas todas as noites. Felizmente, o tempo continuava bom. Quando já tinha setenta rublos, Kostia deu-se o prazer de ir ver os seus futuros sapatos, escondidos na obscuridade de uma estante (…).
– Esteja tranquilo – disse-lhe a pequena vendedora –, os seus botins ainda cá estão, não se preocupe…
(…) Depois do momento em que aqueles olhos profundos – da cor verde-azulada de alguns bibelôs chineses expostos na vitrina do balcão – o fixaram, o olhar de Kostia passeou-se pelas jóias, pelos corta-papéis, pelos relógios, pelas caixas de rapé, pelas outras antigualhas, até se deter por acaso num pequeno retrato de mulher com uma moldura de ébano, tão pequeno que lhe poderia caber na palma de uma mão…
– Quanto custa isto? – perguntou Kostia num tom surpreendido.
– Setenta rublos; é caro, sabe? – responderam os lábios encantados.
Largando um brocado vermelho e dourado que se encontrava sobre o balcão, mãos igualmente encantadas foram buscar a miniatura. Kostia agarrou nela, perturbado por segurar entre os seus dedos grossos e sujos aquela imagem, aquela imagem viva, aquela imagem mais extraordinária que viva, aquela minúscula janela negra que enquadrava uma cabeça loira coroada por um diadema, um belo rosto oval cujos olhos eram plenos de uma atenção, de uma doçura, de uma força, de um mistério sem fundo…
– Eu levo-o – disse ele surdamente e para sua própria surpresa.

Assim começa a história, e que começo! Enquanto ascendo não consigo qualificar o que me rapta e no meu enlevo balbucio apenas: tão russo! tão próximo da minha alma! Tanta pobreza e injustiça suportada, tanta sobriedade acumulada, que só o desvario pode conciliar por momentos uma consciência fustigada para além do humanamente suportável. Seis semanas a poupar para um par de sapatos, como não sonhar com uma vida mais livre e espontânea, mais bela? A vida não nasceu para ser poupada, ela tende, à mínima guinada, para o dispêndio, para a combustão. Por isso as ervas daninhas insistem sobre os passeios calcetados, o pó se deposita sobre as nossas estantes, os vermes devoram os nossos ossos e o tempo elide as letras impressas. A natureza, o caos, tudo o que vive e secretamente se transmuta, está constantemente à espreita, à espera da sua oportunidade para respirar e insuflar o universo da eterna novidade.

O resto é enredo, engenhosamente articulado. Toda a intriga é despoletada pelo assassinato do camarada Tulaev. O leitor sabe desde o início quem o matou, razão pela qual ainda se indigna mais com os inquéritos absurdos em torno desse crime. No entanto, de todo esse absurdo é possível extrair várias aproximações racionais ao entendimento da máquina estalinista e os modos que esta achou para devir numa espécie de carnificina automática, capaz de ceifar tudo e todos, qual Saturno devorando os próprios filhos. Ninguém está salvo – os que ontem acusaram e executaram, encontram-se no dia seguinte matematicamente desviados para o lado das vítimas.

– Não sei mais nada, tenho ordens precisas. É tudo, cidadão.
Rublev foi-se embora, estranhamente leve, levado por ideias semelhantes a um voo de aves agitadas. É isto, a armadilha – a fera apanhada na armadilha, és tu a fera apanhada, velho revolucionário, és tu… E estamos todos aqui na armadilha… Não nos teremos enganado completamente algures? Patifes, patifes! Um corredor vazio, mal iluminado, a grande escadaria de mármore, a porta giratória dupla, a rua, o frio seco, o automóvel negro do mensageiro. Perto deste último, que fumava enquanto estava à espera, um outro homem, de voz baixa e pastosa:
– Camarada Rublev, é-lhe solicitado que nos acompanhe para uma breve conversa…
(…)
As pequenas ruas de dois tons, com o branco da neve e o azul da noite, iam desfilando nos vidros. «Mais devagar», ordenou Rublev, e o motorista obedeceu. Rublev abriu a janela para poder ver melhor uma nesga de rua, não importava qual, o passeio cintilava, coberto de neve virgem. Uma velha casa senhorial do século passado, com um frontão suportado por colunas, parecia dormir há cem anos, atrás da sua vedação gradeada. Os troncos prateados das bétulas luziam tenuemente no jardim. Era tudo – para sempre, num perfeito silêncio, numa pureza de sonho. Cidade debaixo do mar, adeus. O motorista acelerou. – Somos nós que estamos debaixo do mar. Não faz diferença, fomos fortes.


Victor Serge leva-nos numa viagem às profundezas dessa máquina, permitindo-nos inspecionar as várias roldanas e, o mais genial na minha opinião, mostrar-nos como todo esse terror foi perpetrado com a colaboração de homens bem intencionados, extremamente fiéis ao partido e, como tal, dispostos a aceitar toda a humilhação e pobreza para não desonrar o partido. O mecanismo totalitário deriva obviamente de Estaline mas, a certo ponto da narrativa, percebemos que este se tornou automático e nem o próprio chefe poderiam parar esta gigante máquina de ceifar vidas. Sucede sempre isso, quando um projecto para melhorar a humanidade se torna tão programático que perde de vista o valor dessa mesma humanidade. O CASO DO CAMARADA TULAEV é exímio na descrição dessa humanidade metafisicamente abismada, socorrida por uma escrita que se inclina constantemente para o sublime, alçada por uma tristeza absolutamente lírica e ridente.

A noite da iguana


«Todos nós nos enroscamos em alguma coisa ou em alguém. Quando é com alguém é uma sorte. Uma sorte rara.»
Tenessee Wiliams, A Noite da Iguana

Sensibilidade e Bom Senso





Os dois filmes são de Ira Sachs e é com grande sensibilidade e delicadeza que nos convidam a pensar a velhice e a adolescência, bem como o modo como a difícil equação entre o capital e os afectos.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Feminismo punk


Escrevo da terra das feias, para as feias, as velhas, as machonas, as frígidas, as malfodidas, as infodíveis, as histéricas, as taradas, todas as excluídas do grande mercado das gajas boas. E começo por aqui para que as coisas sejam claras: não peço desculpa de nada, não me venho lamentar. Não troco o meu lugar com ninguém, porque ser Virginie Despentes parece-me uma tarefa mais interessante de cumprir do que qualquer outra.


Acho óptimo que haja também mulheres que gostam de seduzir, que sabem seduzir, outras arranjar marido, mulheres que cheiram a sexo e outras a bolo do lanche das crianças que saem da escola. E óptimo que haja umas muito meigas, outras esfuziantes na sua feminilidade, que haja mulheres jovens, muito belas, outras vaidosas e flamantes. A sério que fico muito contente por todas aquelas a quem as coisas tal como são convêm. Acontece, porém, que não me integro nesse grupo (…). É na minha qualidade de proletária do feminismo que falo, que falei ontem e que recomeço hoje (…). Sou o tipo de mulher com quem não se casa, com quem não se tem um filho, falo da minha posição de mulher que é sempre demasiado em tudo o que é, demasiado agressiva, demasiado ruidosa, demasiado grosseira, demasiado brutal, demasiado hirsuta, sempre demasiado viril, dizem-me. Porém, são as minhas qualidades viris que fazem de mim qualquer coisa diferente de um caso social entre os outros. Tudo de que gosto da minha vida, tudo o que me salvou, devo-o à minha virilidade.

Great expectations



      As minhas expectativas relativamente à obra DEBAIXO DO VULCÃO eram altas. Não podia ser de outra forma com um livro em que a personagem principal é o álcool. No entanto, e com grande pesar, constato que não entra para a minha lista de livros do caralho. Ultimamente, o encontro com estes livros excepcionais vai rareando e não consigo evitar sentir-me responsável por essa comunhão falhada (não amar um livro, existirá alguma tristeza mais profunda?). Curiosamente, acontece o mesmo com os amantes – terei eu perdido a capacidade do encantamento, da empatia generosa, ou serão apenas as maleitas decorrentes das várias experiências acumuladas?

As circunstâncias eram favoráveis ao encontro. O prefácio escrito por Lowry para a primeira edição francesa prescrevia o livro como indicado à minha condição: apesar de toda a estabilidade conquistada nos últimos anos, não me sinto eu quase sempre em combate com os poderes das trevas e da luz, numa perpétua travessia das profundezas de Qliphoth, esse «mundo dos detritos e dos demónios»? A atmosfera árida do México e a introdução do Cônsul eram convidativas. Como não me conectar com o seu desespero espiritual, alheio a qualquer hipótese de renegociação?

Porque os homens, todos os homens – era o que Juan parecia estar a dizer-lhe – devem, até no México, lutar incessantemente, num sentido ascensional.  Que era a vida senão uma luta e uma viagem transitória num país estranho? A Revolução ruge do mesmo modo na terra caliente de cada uma das almas humanas? Não existe outra paz, além daquela que paga portagem completa para o inferno…

O primeiro terço do livro recorda-me uma selva frondosa e nocturna, apesar do meio-dia insuportável. À medida que me adentrava pelo ânimo do Cônsul e reconhecia a sua extrema lucidez (e as armadilhas dessa mesma lucidez), ia também contactando com essa pulsão de morte indomável, o delirium tremens e essas ganas de meter veloz pelo precipício abaixo.

Mas depois a paisagem muda e dou comigo a descobrir Hugh e Yvonne. Com esses, não me conecto. Aliás, aborreço-me muito. Talvez fosse essa a intenção do autor, impossível dizer… Até que regresso ao Cônsul e à análise genial da sua dualidade. Gostei particularmente das passagens em que o Cônsul se encerra numa casa de banho e do final, apoteoticamente trágico. A ambivalência está tão bem explanada que nos incomoda: por um lado, pressentimos que o Cônsul ainda poderá reerguer-se, escapar às sombras avassaladoras, conhecemos o seu esforço e acreditamos no seu merecimento; por outro, sabemos que, ainda que a salvação esteja a um palmo de distância, às vezes, não se consegue mover um dedo que seja.

– Gosto disto – rematou, dirigindo-se aos outros, pela janela e já do lado de fora. Cervantes continuava atrás do bar, de olhos assustados e sempre com o galo nos braços. – Gosto do inferno. Não posso esperar mais; quero ir para lá. E vou mesmo a correr; já lá estou quase.

terça-feira, 3 de janeiro de 2017