segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

UMA MULHER A PARIR A SUA ALMA



2012 foi um ano estéril em paixões. À parte alguns arrufos inconsequentes, não amei nenhum homem nem nenhum livro. Foi por isso um ano estranhamente bom, ocupado na aprendizagem de uma solidão interior, calma e insuspeita. Até aqui, houve sempre alguém, como diz a Mick em The Heart is a Lonely Hunter, e houve sempre um livro, a tal ponto que a escrita da minha história da leitura se confunde com os meus amores e desamores.

Como o desejo se desloca da minha carne e encontra um livro, é algo misterioso. Como uma operação alquímica. Nalguns casos, o desejo é encaminhado por um terceiro, noutros casos, mora já em minha casa. Mas continuo a preferir os encontros fortuitos na biblioteca, quando as minhas mãos e olhos escutam o apelo de um livro manuseado, que não figura na lista dos livros que gostaria de ler, e o encontram doído de colos ausentes. Com estes livros feridos por outras mãos, sinto sempre uma maior liberdade de tacto, como se fosse mais fácil imprimir-me neles antes de os devolver à sua posição enigmática.

Desta vez, o acaso aconteceu com os diários de Etty Hillesum na Biblioteca de Portimão, a biblioteca da minha adolescência nietzscheana. Uma surpresa deliciosa, considerando que a questão judaica nunca me interessou muito, porque demasiado absolutizada nos pólos vítima-carrasco. Chamou-me uma vez: ignorei, outras leituras se impunham. Chamou-me mais uma vez, fui até ele e li a contracapa, tornei a pousá-lo, outras leituras se impunham. Chamou uma terceira vez, caminhei até ele com passos resolutos e abri-o sem qualquer pudor:

“Terça-feira de manhã [17 de Março de 1942], às nove e meia
Ontem à noite, quando ia ter com ele de bicicleta, havia um grande e aprazível desejo de primavera em mim. E enquanto eu pedalava em cima do asfalto da rua Lairesse, desejando-o e com sonhos na cabeça, senti-me de repente acariciada por um ar tépido de primavera. E subitamente pensei: «Assim também está bem. Porque é que uma pessoa não pode experimentar uma grande e terna euforia pela primavera e, também, por todas as pessoas?» (…) Sim, por que razão é que uma pessoa não poderia sentir amor por uma primavera? E as carícias do ar primaveril eram tão delicadas e tão envolventes, que mãos masculinas, mesmo que fossem as dele, em comparação com elas me haveriam de parecer rudes.

E foi assim que cheguei a casa dele. O pequeno quarto de dormir apanhava um pouco de luz vinda do quarto de trabalho e, quando entrei reparei que a cama dele estava aberta e que, dobrado por cima dela, havia um pesado ramo de orquídeas aromatizando o quarto. E na mesinha ao lado da almofada havia narcisos, muito amarelos, tão extremamente amarelos e frescos. A cama aberta e as orquídeas e os narcisos – uma pessoa nem precisa de se deitar acompanhada naquela cama. Enquanto ali estive, por um instante, naquele quarto meio iluminado, foi como se tivesse tido uma noite inteira de amor. E ele estava sentado à pequena escrivaninha e de novo me saltou à vista como o rosto dele se assemelhava a uma paisagem antiga, cinzenta e gasta.

Pois, estás a ver, uma pessoa necessita de ter paciência. O teu desejo deve ser como um navio lento e majestoso, navegando no oceano infinito e não à procura de um local onde largar a âncora. E de súbito, inesperadamente, dás de caras com um local onde ancorar por um momento. Ontem à noite, encontrou o seu ancoradouro por um breve instante. Foi só há quinze dias que eu fui tão bravia e indomável e o puxei para mim, de tal forma que ele caiu por cima de mim e eu me senti mais tarde tão infeliz que pensei que dificilmente conseguiria continuar a viver? E passou-se só uma semana desde que eu me enfiei nos seus braços e, de um modo ou outro, permaneci infeliz porque havia ainda qualquer coisa de forçado nisso?

E todavia, estes estádios terão sido necessários para chegar a este deslizar ao encontro um do outro, a esta familiaridade, a este ser querido ao outro e ser bom para ele. E uma noite destas fica para sempre, em tamanho enorme, na memória. E se calhar, uma pessoa nem precisa de muitas destas noites para ter a sensação de levar uma vida amorosa plena e rica.”

E pronto: de novo, essa ligação estranha. Saí da biblioteca com o livro junto ao peito, com aquela sensação reconfortante de ter encontrado um objecto perdido na infância – a conceptualização do fetiche por Freud não anda longe da verdade, ainda que a sua verdade se resuma a uma metáfora. Coloquei o livro no lugar do morto e assim fizemos a viagem até casa. Mais tarde, nessa mesma noite, tive de ir ver os homens, compromisso penoso que prolongava mais um pouco o ritual de sedução. Levei-o comigo. É sempre assim quando um livro me conquista: sinto a todo o instante, uma enorme vontade de o ter ao meu alcance, estender a mão e sentir o seu corpo sólido e macio, antecipando com delícia o nosso momento de entrega e rendição. Por isso, quando estou apaixonada por um livro saio à noite com ele, mesmo sabendo que não o posso ler porque os protocolos de leitura não o permitem, imensamente agradada pela companhia do seu peso, que a mão sub-repticiamente acaricia sempre que pode. Algumas vezes, chego até a colocá-lo com todo o cuidado na almofada contígua à minha e podem crer que adormeço contente e satisfeita como se tivesse tido uma noite inteira de amor. Sim, porque razão é que uma pessoa não pode sentir amor por um livro?

Não vou escrever sobre o livro da Etty. Não consigo, dissecar um amor apenas é possível no desamor. Posso apenas dizer que se trata do registo diarístico de uma mulher a parir a sua alma, com todas as tremendas dores da individuação, para conquistar a alegria anterior a um coração desassossegado e acelerado e uma vida plena, digna de ser vivida. Uma dádiva que me trouxe a consciência de que já não sou nem desejo ser uma amante-leitora compulsiva, atacada pelo síndrome do bovarysmo, faminta por  conhecer o máximo de experiências e sensações. Platão tinha razão quando dizia que a escrita era um pharmakon, sei-o agora. A literatura pode ser um vício, uma compulsão que envenena e corrompe a vida. Mas eu não quero acabar como a Emma, desiludida com a vida, vomitando a tinta negra de todos os livros lidos. Lá onde está o veneno, também estará a cura. Tendo a sorte de poder afirmar ousadamente que já vivi muito e já fiz de muitas personagens, posso agora começar a trabalhar na minha síntese feliz e isso implica fazer do erotismo e da literatura um trabalho mais sério e árduo, um trabalho de exegese. Uma decisão válida para os livros e para os homens: não me interessam mais os arrufos da paixão, mas o Amor. Não querendo isto dizer que me converti ao platonismo. Porque corpo e alma são um só, como a Etty e eu aprendemos. Tendo escavado bem fundo em mim, com todas as facas que encontrei à mão, vou agora tratar de me esculpir e fazer da vida uma obra de arte. A Obra começa.