domingo, 30 de outubro de 2016

Mulher em brasa



Despenhou-se no deserto, despida de palavras e loucura.

Às mulheres em brasa, nada mais lhe resta.


criatura en plegaria
rabia contra la niebla

escrito                                                                                                                          contra
en                                                                                                                                 la
el                                                                                                                                  opacidad
crepúsculo


no quiero ir
nada más 
que hasta el fondo


oh vida
oh lenguaje
oh isidoro

Alejandra Pizarnik, 1972


Julio fui tan abajo. Pero no hay fondo
Julio, creo que no tolero más las perras palabras
La locura, la muerte. Nadja no escribe. Don Quijote tampoco.
Julio, odio a Artaud (mentira) porque no quisiera entender tan sospechosamente bien sus posibilidades de la imposibilidad.
PS
Me excedí, supongo. Y he perdido, viejo amigo de tu vieja Alejandra que tiene miedo de todo salvo (ahora, oh Julio) de la locura y de la muerte. (Hace dos meses que estoy en el hospital. Excesos y luego intento de suicidio —que fracasó, hélas)
PS En el hospital aprendo a convivir con los últimos desechos. Mi mejor amiga es una sirvienta de 18 años que mató a su hijo
Carta de Alejandra Pizarnik a Julio Cortázar


get the blues



      (...) O romantismo presta culto à cor azul. Em especial, o romantismo alemão. Nesse campo, o texto mais emblemático, senão fundador, é o romance inacabado Heinrich von Ofterdingen, de Novalis, publicado a título póstumo em 1802 por Ludwig Tieck, amigo mais chegado do escritor. Este romance conta a lenda de um trovador medieval que partiu em busca de uma florzinha azul entrevista em sonhos, flor que encarna a poesia pura e a vida ideal. O sucesso dessa flor azul foi considerável, bastante superior ao do romance. Juntamente com o casaco azul de Werther, tornou-se a figura simbólica do romantismo alemão.
Talvez até do romantismo em geral, de tal forma essa flor e a sua cor foram imitadas fora da Alemanha por poetas que escreviam noutras línguas europeias. Por todo o lado o azul viu serem-lhe atribuídas todas as virtudes poéticas. Passou a ser, ou voltou a ser, a cor do amor, da melancolia e do sonho - era-o já, de certa maneira, na poesia medieval, na qual existia um jogo de palavras entre ancólia (flor azul) e melancolia. O azul dos poetas juntava-se assim ao azul das expressões idiomáticas e dos provérbios, que já há muito qualificavam como contos azuis as quimeras ou os contos de fadas, e como pássaro azul o ser ideal, raro e inacessível.
      Este azul romântico e melancólico, o da poesia pura e dos sonhos infinitos, atravessou décadas mas, com o tempo, foi-se desviando, enegrecendo ou transformando um pouco. Na Alemanha, ainda está presente na expressão blau sein, que significa estar embriagado, recorrendo o alemão à cor azul para qualificar o espírito toldado e os sentidos anestesiados de uma pessoa que bebeu demais - enquanto o francês e o italiano, para dizer a mesma coisa, recorrem ao cinzento e ao negro. Também em Inglaterra e nos Estados Unidos, a expressão the blue hour (a hora azul) designa o período da saída do emprego, ao fim da tarde, quando os homens (e por vezes as mulheres), em vez de irem directamente para casa, vão passar uma hora num bar para beber e esquecer as preocupações. Esta relação entre o álcool e a cor azul já estava presente nas tradições medievais: muitos receituários destinados aos tintureiros explicam que, ao tingir-se com pastel-dos-tintureiros (que normalmente precisa apenas de um mordente fraco), utilizar como mordente a urina de um homem em avançado estado de embriaguez ajuda a fazer penetrar bem a matéria corante no tecido.
      Por fim, e em especial, tem de se fazer a associação do azul dos românticos com o blues, forma musical de origem afro-americana, provavelmente nascida nos meios populares nos anos de 1870 e caracterizada por um ritmo lento a quatro tempos, que traduz estados de alma melancólicos. Esta palavra anglo-americana, blues, que muitas línguas adoptaram sem alterações, provém da contracção da expressão blue devils («demónios azuis»), que remete para a melancolia, a nostalgia e o desânimo, tudo aquilo que o francês qualifica com outra cor: idées noires, «ideias negras». Corresponde à expressão inglesa to be blue ou in the blue, que tem como equivalentes, em alemão, alles schwarz sehen, em italiano, vedere tutto nero e, em francês, broyer du noir.



domingo, 16 de outubro de 2016

De barriga vazia



Nunca tinha lido nada do George Saunders nem sequer retido o seu nome (a «contemporaneidade» interessa cada vez menos por estas bandas), até topar com a antologia DEZ DE DEZEMBRO, publicada por alturas da Feira do Livro de Lisboa.

Entrei pelo livro, às escuras, e o embate com o primeiro conto induziu-me a pensar que estava perante um escritor muito bom (numa primeira impressão, o estilo lembrou-me o Salinger). Esfreguei as mãos de contentamento mas, à medida que avançava na leitura, a minha excitação inicial descia a pico, quase até soçobrar nas caves do tédio. Os contos seguintes, sem excepção, resumiam-se a explorar ficcionalmente determinadas facetas das nossas sociedades de controlo (por exemplo, a violência, a formatação química dos afectos, a profissionalização da vida, etc.). Chegar ao fim da leitura, exigiu-me várias doses de estoicismo e incredulidade, mas precisava entender como o conto inicial me conseguira ludibriar.

A conclusão a que cheguei é que Saunders é excelente, roçando mesmo a genialidade, na construção da singularidade das personagens, no recorte da acção, nos diálogos, de tal modo que é muito convidativo entrar nos universos instantâneos que nos propõe, como se nos colocasse à frente uma iguaria rara e irrepreensível. Porém, aguçado pela impecável e envolvente apresentação, o nosso apetite começa a degustar a história e eis que encontra a decepção dos sabores corriqueiros, mancos de extravagância. Quer isto dizer, que o enredo não satisfaz, comportando-se como uma ovelha mansa e ordeira, fiel aos caminhos costumeiros do pensamento, afastada das vertigens essenciais.

Ainda assim, dizem-me que PASTORÁLIA é a sua grande obra. Dar-lhe-emos com certeza nova oportunidade.