quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Fire walk with me



Termino o ano com uma constatação curiosa: comprei vários livros na Feira do Livro de Lisboa deste ano e o que mais me agradou foi um que me custou a módica quantia de 3 euros – PREPARA-TE PARA A MORTE, de May Sarton (lembrete para 2018: inspeccionar ainda mais cuidadosamente as caixas com os saldos da Cotovia na feira). Sem leviandade alguma, posso dizer que foi dos melhores livros que li este ano. É uma narrativa pequenina, lê-se bem numa noite, mas a sua escrita concentrada é carburada por uma poderosa inflamação.

Em primeiro lugar, o livro tem o mérito de nos colocar literalmente na pele e na cabeça de uma senhora solteira,Caro, professora reformada, que por um revés de saúde se vê depositada num lar para a terceira idade, à mercê dos cuidados negligentes de terceiros. Eu, que gosto de me imaginar em várias vidas e situações, já tinha dedicado algum tempo a pensar na velhice, e sempre suspeitei de que esta se assemelha a uma segunda infância, na qual nos encontramos completamente desamparados, com a grande diferença face à primeira infância que, desta vez, nos despimos até da esperança de que amanhã poderá ser um dia melhor, ou de que a vida poderá novamente começar a mexer, pois que o futuro certo é a morte, esse desenlace que sempre conhecemos mas do qual sempre desviámos o olhar, forçando-nos à distracção.

May Sartron confirma-me que não me enganei: a velhice é essa vulnerabilidade extrema, sem qualquer descanso ou possibilidade de distracção, em que um acerta as contas finais consigo mesmo. Mas PREPARA-TE PARA A MORTE E SEGUE-ME também me insinua que, nessas excursões da minha imaginação, vi apenas uma árvore e não a floresta toda. Para além do desamparo, da solidão, pode também acontecer a descredibilização, a retirada progressiva dos direitos outorgados aos adultos, uma infantilização forçada que priva progressivamente o «idoso» de razoabilidade, de dignidade e até de humanidade, no sentido mais político do termo.

Para além de todo este mundo, o livro agarrou-me num momento singular da minha vida em que me sentia particularmente invadida por uma raiva pouco lúcida, duvidando constantemente das minhas considerações e escolhas. E nessa fase, este livro foi como um braço súbito que me alcançasse a meio de um desvario e, desviando-me para uma berma, me sussurrasse : «essa raiva não é nada pouco lúcida, é preciso que escaves um pouco mais, que te interesses um pouco mais por esse mistério que és, para que possas entender como às vezes é preciso lutar pela sanidade contra tudo e contra todos».

Não sou digna, uma leprosa – uma velha sem controle sobre si própria. Quando chorei tanto naquele escuro, era uma pequena criança castigada que chorava, mas é contra isso que tenho de batalhar – o desejo de ser perdoada, de ser de novo aceite.
(…)

Desde a minha crise sinto-me desmerecedora de amor, além dos limites. E isto é a infância outra vez. Quantas vezes não me mandaram para a cama sem jantar por causa de uma birra? E como é que em toda a minha vida nunca resolvi esta raiva que há em mim? Contudo, Caro, lembra-te que a raiva é o lado mau do fogo – tu tinhas fogo, e esse fogo fez de ti uma boa professora, e às vezes uma lutadora destemida. O fogo pode ser purificador.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Da metereologia e das nuvens



Cada vez se ouve falar mais de docuficção e de romances de não-ficção. Creio que a tendência deriva de um facto essencial: não conseguimos suportar a vida apenas com base no quotidiano mas também não nos identificamos com histórias sem carnalidade. É preciso encantar novamente a vida e despertar do longo sono os deuses adormecidos e silentes.


           
O METEREOLOGISTA de Olivier Rolin poderá encaixar nessa categoria de romance de não-ficção. Mas o único mérito reside no facto do Rolin ter encontrado uma história impressionante – a história verídica de Alexei Feodossevitch Vangengheim, o metereologista da URSS, acusado, em 1934, de sabotador do socialismo e deportado para um campo de concentração e, que até à véspera da sua morte atroz, enviava à pequena filha Eleonora desenhos, herbários e adivinhas. A reprodução a cores de parte dessa correspondência, belíssimamente ilustrada, foi afinal a razão que me levou a comprar este livro.


            
A leitura flui, de forma dolorosa, indignada, pois estamos sempre a recordar-nos que aquela história aconteceu realmente – e a perguntar-nos, vezes e vezes sem conta, como foi possível? Como é possível? O livro vale sem dúvida pela história que nos revela e pela russofonia do autor mas, ainda assim, senti em certas passagens que faltava a Olivier Rolin unhas para alcançar a grande beleza do romance de não-ficção. Parece mais um diário, com as recolecções possíveis dos factos e algumas divagações, como se o autor tivesse medo de arriscar uma fusão mais empática com as suas personagens. E, no entanto, pergunto-me, será possível empatizar-se com um real tão pobre poeticamente, tão ridiculamente violento e triste? Dificilmente, creio.
            
E talvez que este livro não me tenha preenchido por completo, porque me recordava repetidamente O CASO DO CAMARADA TULAEV, muito provavelmente o melhor romance de não-ficção sobre o grande terror das purgas estalinistas. A história de Vangengheim repete o que já tinha aprendido nessa obra-prima: o motivo rídiculo pelo qual se é acusado de sabotagem do socialismo, os mecanismos dessa imparável engrenagem da morte que faz com que os inocentes acabem por confessar os crimes imaginários de que são acusados, os detractores e fuziladores que acabam também eles por ser denunciados e fuzilados, os Matveiev dessa época assombrosa…
            
É altura de apresentar Mikhail Matveiev, executor do NKVD (…). É pela sua mão, pois faz ponto de honra de não delegar a tarefa de matar, nunca se cansa de sangue, é pela sua mão que vai morrer Alexei Feodossievitch Vangengheim (…). Durante a guerra civil, participa na tomada do Palácio de Inverno (que não foi de modo algum o evento heróico fabricado por Einsenstein), mas é enquanto encarregado das execuções, um cargo que tem futuro, que integra a polícia política em 1918. Como recompensa pelo seu trabalho, que faz com paixão (ele não é de todo um «sabotador»), recebe distinções que têm nome de revólveres: Browning, Walter. Relógios de ouro, aparelhos de radio Radiola. Mimos para um carrasco. Toma portanto conta em Kem da coluna dos mil cento e dezasseis condenados das Slovoki (…).

            O lugar da execução é «na floresta», sem mais pormenor – não há outra coisa senão floresta em torno de Medvejegorsk. Cavam grandes valas, precipitam-se os condenados para dentro delas, viram-nos de barriga para baixo e matam-nos com um tiro na nuca. Não «alguém» mas ele, pessoalmente, Matveiev. Quando lhe perguntam se viu alguns dos seus homens dar uma sova aos condenados, responde que de facto aconteceu mas não chegou a ver porque estava em baixo, na cova, com o seu revólver Nagant. De vez em quando, quando se sente cansado, quando tem vontade de descomprimir, de fumar um cigarro, volta a subir e passa a tarefa ao seu adjunto, o tenente Alafer, mas, regra geral, é ele que se encontra no fim da cadeia, as suas botas na lama sanguinolenta, cheia de miolos. Todos os dias, ou antes todas as noites, porque aquelas coisas têm lugar à noite, nas noites de vinte e sete de outubro de 1937 e de um a quatro de novembro (…), ele avia entre duzentos e duzentos e cinquenta contrarrevolucionários. E, para além disso, tem de assinar as declarações que atestam que cada sentença foi executada. Em suma, trabalha a mata-cavalos, mereceu o seu relógio de ouro.

Como foi possível? Como é possível?

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Conselhos preciosos para o grande frio

Saibas, amado filho, que, se te encantes de alguém, não deves ceder indiscriminadamente ao prazer, estejas tu bêbedo ou sóbrio, porque é sabido que o sêmen que de ti irrompe é sempre germe de almas e pessoas. Não te entregues ao prazer inebriado de vinho, é coisa danosa e deletéria; melhor esperar, ao menos, que os efeitos do álcool passem. E não deixes que o prazer comande sempre que fiques excitado, pois esse é um comportamento verdadeiramente animalesco, e os animais não conhecem nem tempo nem lugar. Os homens, ao contrário, devem sempre saber o momento justo, diferenciando-se assim das feras.
 Em relação à escolha entre garotos e mulheres, não limites tua preferência a um único gênero, garotos ou mulheres, para que tu possas obter prazer de ambos os sexos, evitando assim a inimizade de um ou de outro.
 Os excessos, como te disse, são danosos, mas, saibas que a abstinência também tem seus perigos. Qualquer coisa que faças deve ser feita de acordo com teu desejo e não por obrigação, de modo que o dano seja menor.
 Havendo desejo ou não, é todavia aconselhável que te controles durante o grande calor e o grande frio. É nas duas estações extremas que as paixões produzem os efeitos mais deletérios, principalmente para os mais velhos. De todos os momentos do ano, ao invés, é a primavera, com seu clima temperado e suas fontes túrgidas, a estação mais propícia, onde a face do mundo se mostra feliz e faceira. E assim como o macrocosmo, graças à primavera rejuvenesce nosso corpo, que é o microcosmo. Os humores do corpo tornam-se temperados e o sangue de nossas veias se dilatam, assim como o sêmen nos lombos. Mesmo sem uma vontade precisa, irresistível se torna a busca por prazeres e incontrolável a necessidade de regozijos e encontros, mas se autêntico é o ardor, menor é o dano.
E assim a vida segue. Se possível não dês vazão a teus líquidos vitais no calor tórrido e no inverno rígido, e caso percebas um aumento do ardor procura reestabelecer o equilíbrio com uma dieta harmoniosa. Durante o verão dá predileção aos garotos, e reserva o inverno às mulheres, respeitando sempre um sano equilíbrio sazonal. E, se neste discurso fui breve, é porque mais não serve.
Kay Ka’us ibn Iskandar (Qābūs-nāme, séc.XI)

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Der Dopplegänger





«O desconhecido estava sentado à sua frente, também de sobretudo e chapéu, na sua cama, sorria ligeiramente, e, franzindo um pouco os olhos, acenou-lhe amigavelmente com a cabeça. O senhor Goliádkin queria gritar, mas não pode — protestar de alguma maneira, mas não lhe chegavam as forças. Tinha os cabelos em pé e sentou-se no seu lugar, insensível de horror. E de resto havia razão para isso. O senhor Goliádkin reconheceu completamente o seu amigo notcurno. O seu amigo nocturno não era outro senão ele próprio — o próprio senhor Goliádkin, outro senhor Goliádkin, mas exactamente como ele — numa palavra, aquilo a que se chama o seu duplo em todos os aspectos…»


É do mestre e vale cada pagina. Embora aparente ser um Dostoievski menor, lê-se de uma assentada, com aflição, furor e abjecção. Foi publicado quando Dostoievski tinha apenas 24 anos: já tinha começado a grande escavação psicológica donde extrairia Raskolnikóv e os irmãos Karamázov . молодец!

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

os mistérios do Oriente



(…) e foi assim que os nossos antepassados, obrigados a viver quer quisessem quer não em divisões escuras, descobriram um dia o belo no meio da sombra, e depressa a utilizaram para obter efeitos estéticos.

(…)

A maquilhagem incluí, entre outras coisas, o escurecimento dos dentes [técnica conhecida como ohaguro e que consistia em pintar os dentes com tinta negra]; podemos perguntar-nos se o objectivo desta operação não seria o de, depois de preenchido de obscuridade todo o espaço à excepção do rosto, colocar um toque de sombra até mesmo na boca.

(…)

Mas qual a razão para esta tendência de procurar o belo no obscuro com tanta força se manifestar apenas nos Orientais? Ainda não há muito, também o Ocidente ignorava a electricidade, o gás, o petróleo, mas, tanto quanto sei, nunca sentiu a tentação de se deliciar com a sombra. Desde sempre os espectros japoneses são desprovidos de pés; os espectros do Ocidente têm pés, mas, em contrapartida, todo o seu corpo é, ao que parece, translúcido. Fosse ou não fosse por pormenores destes, o que constatamos é que a nossa própria imaginação se move em trevas negras como laca, enquanto os Ocidentais atribuem até aos seus espectros a limpidez do vidro.

(…)

Qual poderá ser a origem de uma diferença de gostos tão radical? Pensando bem, é porque nós, Orientais, procuramos acomodar-nos aos limites que nos são impostos, que desde sempre nos satisfazemos com a nossa presente condição; consequentemente, não sentimos repulsa alguma pelo que é obscuro, resignamo-nos a ele como a algo de inevitável: se a luz é fraca, pois que o seja! Mais, afundamo-nos com delícia nas trevas e descobrimos-lhe uma beleza própria.

Pelo contrário, os Ocidentais, sempre à espreita do progresso, agitam-se incessantemente na procura de uma condição melhor que a actual. Sempre em busca de uma claridade mais viva, afadigaram-se, passando da vela ao candeeiro de petróleo, do petróleo ao bico de gás, do gás à iluminação eléctrica, para cercar o menor recanto, o último refúgio da sombra.

(…)

Pensem no sorriso de uma jovem mulher à luz vacilante de uma lanterna, que, de tempos a tempos, entre uns lábios de um azul irreal de fogo-fátuo, fazia cintilar dentes de laca negra: poder-se-á imaginar rosto mais branco que esse? Eu, pelo menos, vejo-o mais branco que a brancura de qualquer mulher branca, nesse universo de ilusões que trago gravado no cérebro.

A brancura do homem branco é uma brancura translúcida, evidente e banal, enquanto aquela é uma brancura de certa forma desligada do ser humano. Pode ser que uma brancura assim definida não tenha qualquer existência real.

educação sentimental para veteranos



Gostei muito de A CASA DAS BELAS ADORMECIDAS e não tenho a certeza de conseguir explicar bem. Trata-se de uma daquelas obras-primas que consegue submergir-nos completamente, envolvendo-nos numa atmosfera única, redonda, imaculada e vítrea. Qual redoma de cristal, nocturna e azulada, onde jovens mulheres nuas dormem profundamente sob o efeito de poderosos narcóticos, abandonadas na sua inconsciência à contemplação por homens idosos.

A edição portuguesa é apresentada por uma introdução de Yukio Mishima, que começa por afirmar o seguinte: «Parece haver, entre as obras dos grandes escritores, aquelas que poderiam ser chamadas do obverso ou exterior, de significação à superfície, e aquelas do reverso ou interior, de significação oculta; ou poderíamos compará-las ao Budismo exotérico e esotérico! No caso de Kawabata, Terra de Neve inclui-se na primeira categoria, enquanto A Casa das Belas Adormecidas é seguramente uma obra-prima esotérica.»

Na minha biblioteca mental, A CASA DAS BELAS ADORMECIDAS mora ao lado de GOLPE DE MISERICÓRDIA: dois tratados preciosos e voláteis sobre as esquivas ligações entre o erotismo, a transgressão e morte. Pois nas terras áridas dos maiores mistérios, o esforço mais recompensado é aquele que arrisca apenas o voo rasante da insinuação.

um livro do caralho e o melhor lançamento do ano





A Criada do Albergue do Pé Quebrado

Ela é uma bela, uma linda rapariga
Por quem enlouquece toda a gente em Riga
Ela é a criada do Pé Quebrado
Por um óbolo lhe tirei o toucado
Por dois tostões e meio… Por dois tostões e meio
Pois então, que fizestes? Apalpei-lhe um seio
E por um escudo vosso, um escudo de lei
Que haveis feito depois? O seu cu espreitei
E por dois escudos, então, que pudeste fazer?
Ora essa, tomar-lhe a cona e foder.
Assim pelo óbulo, pelos escudos e pelos tostões
Tive mama, cu e cona, mais sífilis nos colhões
E tudo isto num ápice, é bom fazer notar
Porque o homem que a amparou
Dez vezes esta soma pagou
E seis meses suspirou para o mesmo alcançar.
Diderot (1773)

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

I would rather not



 “As minhas emoções iniciais tinham sido de pura melancolia e sincera compaixão; mas, à medida que a noção do desamparo de Bartleby se agigantou na minha imaginação, essa melancolia transformou-se em medo, e a compaixão em repulsa. É muito verdade, e também terrível que, até certo ponto, a evocação ou o espectáculo da infelicidade convoca os nossos melhores sentimentos; mas em certos casos, e para lá de certo ponto, deixa de ter esse efeito. Erra quem atribui invariavelmente este facto ao inerente egoísmo do coração humano. Ele provém antes do desespero em remediar um mal excessivo e de natureza orgânica. Para uma criatura sensível, a compaixão representa amiúde o mesmo que sofrimento. E quando por fim compreendemos que essa compaixão não pode gerar um auxílio efectivo, o senso comum manda que nos livremos dela.”

A buen paso



Robert Walser ocupa um lugar privilegiado no meu panteão de escritores, tanto pela sua escrita como pela sua biografia. Há muito que queria ler Der Spaziergang; assim, quando encontrei um exemplar em Barcelona no dia de Sant Jordi, tratei de o oferecer a mim mesma.

Declaro que una hermosa mañana, ya no sé exactamente a qué hora, como me vino en gana dar un paseo, me planté el sombrero en la cabeza, abandoné el cuarto de los escritos o de los espíritus, y bajé la escalera para salir a buen paso a la calle (…). El mundo matinal que se extendía ante mis ojos me parecia tan bello como si lo viera por primera vez. Todo lo que veía me daba la agradable impresión de cordialidade, bondad y juventud (…).

Pero basta por completo con que yo mismo sepa lo que soy, y con que sea yo mismo el mejor informado esté sobre mi persona. A menudo las apariencias engañan, señor mio, y lo mejor es dejar el juicio sobre una persona a esa misma persona. Nadie puede conocer tan bien como él mismo a un hombre que ha visto e vivido tanto. A veces ando errante en la niebla y en mil vacilaciones y confusiones, y a menudo me siento miserablemente abandonado. Pero pienso que es bello luchar. Un hombre no se siente orgulloso de las alegrías y del plácer. En el fondo lo único que da orgullo y alegría al espíritu son los esfuerzos superados con bravura y los sufrimientos soportados con paciencia. Pero no gusta derrocar palabras a este respecto. Qué hombre honrado no ha estado desvalido nunca en su vida, y qué ser humano ha mantenido por completo intactos a lo largo de los años sus esperanzas, planes, sueños? Dónde está el alma cuyos anhelos, osados deseos, dulces y elevadas concepciones de la felicidad se cumplieron, sin tener que hacer descuentos en ellas?

(…) Yo me detenía y escuchaba, y de repente se apoderó de mí un inefable sentimiento del mundo y una sensación de gratitud, unida a él, que brotaba del alma com violencia (…) Los pasos descalzos en el suelo agradable se volvieron plácer, y el silencio encedía oraciones en el alma sentiente (…).


¿Pasear ¿respondí yo¿ me es imprescindible, para animarme y para mantener el contacto con el mundo vivo, sin cuyas sensaciones no podría escribir media letra más ni producir el más leve poema en verso o prosa. Sin pasear estaría muerto, y mi profesión, a la que amo apasionadamente, estaría aniquilada. Sin pasear y recibir informes no podría tampoco rendir informe alguno ni redactar el más mínimo artículo, y no digamos toda una novela corta. Sin pasear no podría hacer observaciones ni estudios. Un hombre tan inteligente y despierto como usted podrá entender y entenderá esto al instante. En un bello y dilatado paseo se me ocurren mil ideas aprovechables y útiles. Encerrado en casa, me arruinaría y secaría miserablemente. Para mí pasear no sólo es sano y bello, sino también conveniente y útil. Un paseo me estimula profesionalmente y a la vez me da gusto y alegría en el terreno personal; me recrea y consuela y alegra, es para mí un placer y al mismo tiempo tiene la cualidad de que me excita y acicatea a seguir creando, en tanto que me ofrece como material numerosos objetos pequeños y grandes que después, en casa, elaboro con celo y diligencia. Un paseo está siempre lleno de importantes manifestaciones dignas de ver y de sentir. De imágenes y vivas poesías, de hechizos y bellezas naturales bullen a menudo íos lindos paseos, por cortos que sean. Naturaleza y costumbres se abren atractivas y encantadoras a los sentidos y ojos del paseante atento, que desde luego tiene que pasear no con los ojos bajos, sino abiertos y despejados, si ha de brotar en él el hermoso sentido y el sereno y noble pensamiento del paseo. Piense cómo el poeta ha de empobrecerse y fracasar de forma lamentable si la hermosa Naturaleza maternal y paternal e infantil no le refresca una y otra vez con la fuente de lo bueno y de lo hermoso. Piense cómo para el poeta la instrucción y la sagrada y dorada enseñanza que obtiene ahí fuera, al juguetón aire libre, son una y otra vez de la mayor importancia. Sin el paseo y sin la contemplación de la Naturaleza a él vinculada, sin esa indagación tan agradable como llena de advertencias, me siento como perdido y lo estoy de hecho. Con supremo cariño y atención ha de estudiar y contemplar el que pasea la más pequeña de las cosas vivas, ya sea un niño, un perro, un mosquito, una mariposa, un gorrión, un gusano, una flor, un hombre, una casa, un árbol, un arbusto, un caracol, un ratón, una nube, una montaña, una hoja o tan sólo un pobre y desechado trozo de papel de escribir, en el que quizá un buen escolar ha escrito sus primeras e inconexas letras. Las cosas más elevadas y las más bajas, las más serias y las más graciosas, le son por igual queridas y bellas y valiosas. No puede llevar consigo ninguna clase de sensible amor propio y sensibilidad. Su cuidadosa mirada tiene que vagar y deslizarse por doquier, desinteresada y carente de egoísmo; tiene que ser siempre capaz de disolverse en la observación y percepción de las cosas, y ha de postergarse, menospreciarse y olvidarse de sí mismo, sus quejas, necesidades, carencias, privaciones, como el bravo, servicial y dispuesto al sacrificio soldado en campaña. De otro modo, pasea tan sólo con media atención y medio espíritu, y eso no vale nada. Tiene que ser capaz en todo momento de compasión, de identificación y de entusiasmo, y ojalá que lo sea. Tiene que alzarse a elevado arrebato y hundirse y saber descender a la más profunda y mínima cotidianeidad, y probablemente sabe. Pero ese fiel y entregado disolverse y perderse en los objetos y ese celoso amor por todas las manifestaciones y cosas lo hacen feliz, como todo cumplimiento de obligación hace feliz y rico en lo más íntimo a quien tiene una obligación que cumplir. Espíritu, entrega y fidelidad lo satisfacen y elevan sobre su propia e insignificante persona de paseante, que con demasiada frecuencia tiene reputación y mala fama de vagabundeo e inútil pérdida de tiempo. Sus múltiples estudios lo enriquecen y entretienen, lo calman y refinan y rozan a veces, por improbable que pueda sonar, con la ciencia exacta, lo que nadie creería del en apariencia frívolo caminante. ¿Sabe usted que mi cabeza trabaja dura y tercamente, y a menudo estoy activo en el mejor de los sentidos, cuando parezco un archigandul y persona frívola sin responsabilidad, sin pensamiento ni trabajo, perdido en el azul o en el verde, lento, soñador y perezoso, que ofrece la peor de las impresiones? Secreta y misteriosamente, siguen al paseante toda clase de hermosos y sutiles pensamientos de paseo, de tal modo que en medio de su celoso y atento caminar tiene que parar, detenerse y escuchar, que está cada vez más arrebatado y confundido por extrañas impresiones y por la hechicera fuerza del espíritu, y tiene la sensación de ir a hundirse de pronto en la tierra o de que ante sus ojos deslumbrados y confusos de pensador y poeta se abre un abismo. La cabeza se le quiere caer, y los por lo demás tan vivos brazos y piernas están como petrificados. Paisaje y gente, sonidos y colores, rostros y figuras, nubes y sol giran como sombras a su alrededor, y ha de preguntarse: «¿Dónde estoy?». Tierra y cielo fluyen y se precipitan de golpe en una niebla relampagueante, brillante, apelotonada, imprecisa; el caos empieza, y los órdenes desaparecen. Trabajosamente, el conmocionado intenta mantener su sano conocimiento; lo consigue, y sigue paseando confiado. ¿Considera usted del todo imposible que en un suave y paciente paseo encuentre gigantes, tenga el honor de ver a profesores, trate al pasar con libreros y empleados de banca, hable con futuras jóvenes cantantes y antiguas actrices, coma con ingeniosas damas, pasee por los bosques, envíe peligrosas cartas y me bata violentamente con insidiosos e irónicos sastres? Todo esto puede suceder, y creo que de hecho ha sucedido. Al paseante le acompaña siempre algo curioso, reflexivo y fantástico, y sería tonto si no lo tuviera en cuenta o incluso lo apartara de sí; pero no lo hace; más bien da la bienvenida a toda clase de extrañas y peculiares manifestaciones, hace amistad y confraterniza con ellas, porque le encantan, las convierte en cuerpos con esencia y configuración, les da formación y ánima,mientras ellas por su parte lo animan y forman. En una palabra, me gano el pan de cada día pensando, cavilando, hurgando, excavando, meditando, inventando, analizando, investigando y paseando tan a disgusto como el que más. ¡Y aunque quizá ponga la cara más complacida del mundo soy serio y concienzudo en grado sumo, y aunque no parezca más que delicado y soñador soy un sólido experto! Espero que todas estas detalladas explicaciones le convenzan de mis sinceras aspiraciones y le satisfagan plenamente. 

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

zero killed



Parece que sou das poucas pessoas que continuam a requisitar livros na biblioteca. Como não consigo comprar todos os livros que me interessam, uso a biblioteca para poder passar alguns dias com livros esgotados ou com livros que despertam a minha curiosidade mas não tenho a certeza de querer adquirir. Na última leva, trouxe dois livros do Geoff Dyer – YOGA PARA PESSOAS QUE NÃO ESTÃO PARA FAZER YOGA e MAS É BONITO – e AS COISAS QUE OS HOMENS ME EXPLICAM, de Rebecca Solnit.

Comecei pelo YOGA PARA PESSOAS QUE NÃO ESTÃO PARA FAZER YOGA e li-o até ao fim, com perseverança. O autor é culto, descontraído e a atmosfera masculina e cheia de experiências com drogas manteve-me na expectativa. Mas não passou daí. É um livro indolor, que não me acrescentou muita coisa. Devia ter desconfiado logo quando vi as doze (!) citações marketeiras dispersas pelo plano da capa. Uma delas reza assim: “Se Hunter S. Thompson, Roland Barthes, Paul Theroux e Sylvia Plath fossem de férias no mesmo corpo, talvez inventassem algo deste género. Há muito que não lia um livro tão divertido. É o meu livro do ano.” E para apimentar ainda mais a coisa, a autoria deste excerto é atribuída ao Independent on Sunday (who the fuck!) Bem-vindos à época em que o que ajuda a vender livros são pregões e não a alta literatura!



Embora ache que o Geoff Dyer não seja um autor mau, mas apenas OK (meaning: zero killed), decidi prescindir da leitura de MAS É BONITO (uma frase que eu digo muitas vezes) e segui para a leitura do aclamado livro da Rebecca Solnit. Embora desta vez não tenha sido uma menina tão bem-comportada. Três ensaios bastaram para me aperceber que embora a autora maneje autores e referências algo eruditas, o seu estilo não atinge a profundidade com que desejo desafiar-me. Interessava-me sobretudo ler o que tinha escrito sobre o mansplaining (porque a mim também me acontece muitas vezes os homens me explicarem coisas que eu sei melhor que eles) mas fiquei com a ideia de que o grande mérito do seu artigo foi mesmo o de cunhar esse termo que depois se tornou mais interessante com a sua própria disseminação.


Resumindo, desculpem se me assemelho ao velho do Restelo, mas desinteresso-me cada vez mais dos contemporâneos.

"I Nourish Myself Through Waste of Energy"


A mí me pasa lo mismo.

flop!



Soube da existência deste livro numa manhã e logo o desejei. Nesse mesmo dia, regressava a casa ao fim de tarde de metro quando julguei ver um rapaz sentado a meu lado com esse mesmo livro. Pensei que era imaginação minha – o desejo tem muitas artimanhas – mas poucos segundos depois, percebi que era mesmo o TRÊS HORAS ESQUERDAS! O rapaz era livreiro, tinha ido a uma livraria qualquer entregar aquele livro e mais alguns exemplares e dera com a cara na porta. Sorte a minha que, conquistada pelo design e materiais do livro, pude comprar um exemplar a caminho de casa!


Li-o numa hora (uma hora, não três) na manhã seguinte e fiquei algo desapontada. Já disse que o desejo tem muitas artimanhas: às vezes, o objecto desejado anuncia-se com pompa, até vem vestido com as roupagens mais charmosas mas… por alguma razão, vá-se lá entender, não ganha corpo, não se cola à pele!

domingo, 29 de outubro de 2017

o magma da alma



Desde que fui aos Açores que ando apaixonada por vulcões. Ao mesmo tempo, nasceu em mim uma ideia de mente vulcânica que ainda não consigo elaborar muito bem, pois ainda não chegou o tempo da sua errupção. Pus-me, no entanto, a caminho e ando a ler com muita curiosidade e atenção Carl Gustav Jung. E entretanto, encontrei esta aproximação nas cartas da Etty Hillesum, outro amor meu:

– As depressões, quando não são da natureza da pessoa, são pausas criadas pelo inconsciente na consciência sobrecarregada, e devem por isso, voltar a desaparecer a partir do inconsciente; assim, é necessário deixar extinguir essas mesmas pausas de um modo passivo –

Nesse tempo, a palavra «enfraquecer» foi para mim uma fórmula libertadora.

Os filhos do meio dia



Tornei a ler O ESTRANGEIRO pela terceira vez. A primeira vez que o li teria uns 16 anos, voltei a lê-lo nos meus vinte e, eis que agora, na década dos trinta, me surpreendo a mim mesma empatizando com Mersault a um nível inédito. Vejo-o como um homem ingénuo mas perspicaz ao ponto de entender que «todo o mundo tem as suas razões», um homem de uma sensibilidade extrema que se anestesia e procura afastar-se do mundo, permanecendo numa espécie de sensualidade bestial (“Dormi quase todo o tempo”, “Lavei também as mãos”, “Pensei que passara mais um domingo, que a mãe fora a enterrar, que ia regressar ao meu trabalho, e que, no fim de contas, continuava tudo na mesma”, «lavei as mãos”).

Nesta leitura, Mersault pareceu-me um homem que tenta sobreviver e ser funcional, sufocando sonhos e ligações. (“E, pelo estranho barulho que me chegava através da parede, compreendi que estava a chorar. Não sei porquê, pensei na minha mãe. Mas no dia seguinte, precisava de me levantar cedo. Não tinha fome e deitei-me sem jantar”; “O céu estava verde e eu sentia-me contente. Mas, apesar disso, fui directamente para casa, pois queria cozer umas batatas”; “Pensando bem não era infeliz. Quando era estudante, alimentara ambições desse género. Mas quando abandonei os estudos, compreendi muito depressa que essas coisas não tinham verdadeira importância”). Uma existência ancorada no básico, na rotina, sem grandes euforias nem arrebatamentos – talvez para evitar o abismo e as suas depressões. A sensibilidade extrema da personagem denuncia-se muito raramente, em breves passagens poéticas como esta: “No coração desta casa cheia de sonos, o queixume subiu lentamente, como uma flor nascida do silêncio.

Mas não é na poesia que o conflito de Mersault se resolve. Optando pelo conformismo e pela via racional, todo o substrato emocional da personagem não encontra outra opção para além da inscrição na carne como sintoma. E daí advém tanta necessidade de lavar as mãos repetidamente – como quem procura afastar-se de qualquer contaminação mais passional –, de dormir tanto, de apreciar o sol no corpo, tal como um bovino ruminando apenas sensações, a salvo de pensamentos mais pantanosos. Não admira, portanto, que toda a descrição do assassínio do árabe se faça também ao nível do corpo e das suas sensações Eis o homem que queria fugir da noite e das suas profundidades encandeado pelo sol do meio dia. “Era o mesmo sol do dia em que a minha mãe fora a enterrar e, como então, doía-me a testa, sobretudo a testa, e todas as suas veias batiam ao mesmo tempo debaixo da pele.


A segunda parte da narrativa mostra o outro lado da moeda, o lado verdadeiramente absurdo. A mesma sociedade que obriga ao cultivo da insensibilidade, condena violentamente os «criminosos» que cria. “Gostaria de lhe poder explicar cordialmente, quase com afeição, que nunca me arrependera verdadeiramente de nada. Estava sempre dominado pelo que ia acontecer, por hoje ou por amanhã.” Graças à sua ingenuidade, Mersault quebra a regra do jogo, aferrando-se à verdade e não vergando à simulação dos ditos bons sentimentos. “Tão perto da morte, a minha mãe deve ter-se sentido liberta e pronta a tudo reviver. Ninguém, ninguém tinha o direito de chorar sobre ela. Também eu me sinto pronto a tudo reviver. Como se esta grande cólera me tivesse limpo do mal, esvaziado da esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu abria-me, pela primeira vez, à terna indiferença do Mundo. Por o sentir tão parecido comigo, tão fraternal, senti que fora feliz e que ainda o era. Para que tudo ficasse consumado, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muito público no dia da minha execução, e que os espectadores me recebessem com gritos de ódio.”

Subway Hot Books


Todos os dias ando de metro. São poucas as pessoas que vejo a ler mas sempre que encontro uma, tento descobrir, qual alcoviteira, que livro a entretém. A maioria fica-se exactamente por essa leitura de entretenimento que pouco me interessa. Mas esta segunda-feira, um rapaz envolto num capuz lia, com um ar muito concentrado e interessado, ZEN AND THE BIRDS OF APPETITE. Levei a ocorrência como uma recomendação insinuada à minha pessoa.

Pan-teísmo



“Ambos os panoramas me pertenciam, achava eu, e esta impressão de dupla posse dava-me uma sensação embriagante de universalidade, como se, para onde quer que olhasse, me fosse dado ver uma faceta de mim mesmo – uma ilusão malsã, vim depois a descobrir, já que mais tarde me fez crer que só valia a pena visitar um país ou uma cidade se lá adquirisse uma casa ou se escrevesse um livro acerca desse lugar. Como todas as fantasias napoleónicas, era também um sentimento de solidão. Se tudo me pertencia, então eu próprio não pertencia a nenhum recanto especial do mundo. As pessoas que avistava do cume do meu monte, a lavrarem os seus campos, a cuidarem das suas lojas e oficinas, a namoriscarem enquanto gozavam as suas férias à beira-mar, habitavam um mundo diferente do meu. Elas estavam todas juntas, eu estava completamente só. Elas faziam parte de uma irmandade, eu era um estranho. Elas falavam umas com as outras num idioma que todas entendiam, acerca de temas que a todas interessavam. Eu falava numa língua que era só minha e alimentava pensamentos que as encheriam de tédio (…).

Três grandes castanheiros cresciam num recanto, e eu costumava deitar-me ali, oculto na erva alta e húmida entre eles, no silêncio denso e de aroma adocicado das tardes estivais de Oxford. Rãs saltavam em volta de mim, distraindo-me; gafanhotos moviam-se nas ervas, a um palmo dos meus olhos; os sinos de Oxford dobravam, lânguidos, marcando a hora certa; quando ouvia alguém a chamar-me –«Morris! Morris! És tu a lançar! – sabia que, fosse lá quem fosse, não se ia dar ao trabalho de procurar muito. Marvell achava que o Jardim do Éden era certamente melhor quando Adão ali deambulou sozinho, e toda a minha vida senti em certos lugares, tanto em zonas rurais como em cidades, uma aura que me parece verdadeiramente sexual, mais pura mas não menos excitante do que a sexualidade do corpo. A origem desta emoção perversa mas oportuna parece-me residir naquelas tardes perfumadas de críquete, já tão distantes.

      Numes sedentos da mortal beleza
Verde arvoredo tomam como presa,
E Pã quis Siringe com amor fatal,
Não como ninfa, como caniçal.”

Flaubert: "De política, só entendo uma coisa: a revolta."

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Livros alegres para pessoas tristes



Pontualmente, atravesso desertos de leitura. São momentos altamente angustiantes, esses em que me falta um livro. Pois que tenho sempre de estar a ler e quando nenhum livro me conquista, quando nada adere, sinto-me desnorteada, perdida, esvaziada de qualquer paixão pela vida – circulo então pelas estantes, como uma fera magra de savana e caça, passando os dedos pelas lombadas, inventando sortilégios e sorteios que me possam revelar a minha próxima leitura. E quando tudo falha, não me resta senão aninhar-me na minha solidão e regressar aos contos de Tchékhov.


Nabokov afirmou que “Tchékhov escrevia livros tristes para pessoas alegres; quero dizer com isto que só um leitor com sentido de humor será capaz de sentir a fundo a tristeza deles.” Tenha Nabokov razão ou não, o facto é que sempre encontro conforto na leitura dos seus contos e vários meses, ou até mesmo anos, vejo volverem-me ao pensamento algumas das suas personagens ou enredos. São todos magníficos, nenhum desilude, sobretudo porque cobrem o amplo espectro de sentimentos que compõem uma vida plenamente vivida e pensada; porém, existem alguns que me são mais queridos por que me reflectiram naquela fase exacta da vida em que os li. São eles SAUDADE, lido numa fase de luto intenso pela perda de um amigo, e INIMIGOS, lido numa altura em que pensava persistentemente no egocentrismo de algumas pessoas. Neste último, embora o narrador não tome partido por nenhuma das desgraças que se abatem quer sobre o doutor Kirílov, quer sobre o nobre Abóguin, sinto que também o meu coração se tomou dessa mesma «injusta convicção, indigna do coração humano» que acomete o doutor até ao túmulo.

“A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.”


Augusto, o palhaço melancólico


“E então, certo dia, como que numa revelação luminosa apercebeu-se de que já há muito, muito tempo, não conhecia a felicidade. A descoberta deixou-o tão agitado que ardia de impaciência por chegar ao quarto onde morava. Contudo, em vez de correr para o hotel, chamou um táxi e ordenou ao motorista que o levasse aos subúrbios da cidade. Mas onde, exactamente?, quis saber o motorista. «Em qualquer lado onde haja árvores», respondeu, nervoso. «Mas despache-se, vamos – é urgente.»

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Alda Merini


Padre, se scrivere è una colpa
perché Dio mi ha dato la parola
per parlare con trepidi linguaggi
d’amore a chi mi ascolta?
Ormai vecchia di anni e senescente,
dove trovare un filo di erba buona?
Che sai dei miei conventi, della grazia
matura delle sante, delle grandi
anime folli? Che posso io trovare
tra gli osanna dell’uomo di cultura?
Altrove è il canto, altrove è la parola
e Dio non la pronuncia.

é preciso imaginar Sísifo feliz.



«Saber se é possível viver sem apelo é tudo o que me interessa. Não quero sair deste terreno. Se esta face da vida me é dada, como é que vou ajeitar-me com ela? Ora, perante esta precaução particular, a crença no absurdo equivale a substituir a qualidade das experiências pela quantidade. Se me persuado de que esta vida não tem outra face que não seja a do absurdo, se sinto que todo o seu equilíbrio depende dessa perpétua oposição entre a minha revolta consciente e a obscuridade onde ela se debate, se admito que a minha liberdade não tem sentido a não ser em relação ao seu destino limitado, então devo dizer que o que conta não é viver melhor, mas viver mais.»

«Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde a pedra caía de novo, em consequência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.
(…)
Neste, vê-se simplesmente todo o esforço de um corpo tenso, que se esforça por erguer a enorme pedra, rolá-la e ajudá-la a levar a cabo uma subida cem vezes recomeçada; vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de um ombro que recebe o choque dessa massa coberta de barro, de um pé que a escora, os braços que de novo empurram, a segurança bem humana de duas mãos cheias de terra. No termo desse longo esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a finalidade está atingida. Sísifo vê então a pedra resvalar em poucos instantes para esse mundo inferior, de onde será preciso trazê-la de novo para os cimos. E desce outra vez à planície.
É durante este regresso, esta pausa, que Sísifo me interessa. Um rosto que sofre tão perto das pedras já é, ele próprio, pedra! Vejo esse homem descer outra vez, com um andar pesado mas igual, para o tormento cujo fim nunca conhecerá. Essa hora, que é como uma respiração e que regressa, com tanta certeza como a sua desgraça, essa hora é a da consciência. Em cada um desses instantes em que ele abandona os cumes e se enterra a pouco e pouco nos covis dos deuses, Sísifo é superior ao seu destino. É mais forte que o seu rochedo.
Se este mito é trágico, é porque o seu herói é consciente. Onde estaria, com efeito, a sua tortura se a cada passo a esperança de conseguir o ajudasse? O operário de hoje trabalha todos os dias da sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão da sua miserável condição: é nela que ele pensa durante a sua descida. A clarividência que devia fazer o seu tormento consome ao mesmo tempo a sua vitória. Não há destino que não se transcenda pelo desprezo.
Se a descida se faz assim, em certos dias, na dor, pode também fazer-se na alegria. Esta palavra não é de mais.
(…)
Não há sol sem sombra e é preciso conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e o seu esforço nunca mais cessará. Se há um destino pessoal, não há destino superior ou, pelo menos, só há um, que ele julga fatal e desprezível. Quanto ao resto, ele sabe-se senhor dos seus dias.
(…)

Deixo Sísifo no sopé da montanha! Encontramos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também julga que tudo está bem. Esse universo enfim, sem dono, não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.»

Be my knife

UMA FACA SÓ LÂMINA
(ou: serventia das idéias fixas)

Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado

qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso,
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.

A.

Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.

Mas o que não está
nele está como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.

Isso que não está
nele é como um relógio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem ócios.

Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.

Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,

nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzida à sua boca,

que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.

B.

Das mais surpreendentes
é a vida de tal faca:
faca, ou qualquer metáfora,
pode ser cultivada.

E mais surpreendente
ainda é sua cultura:
medra não do que come
porém do que jejua.

Podes abandoná-la,
essa faca intestina:
jamais a encontrarás
com a boca vazia.

Do nada ela destila
a azia e o vinagre
e mais estratagemas
privativos dos sabres.

E como faca que é,
fervorosa e energética,
sem ajuda dispara
sua máquina perversa:

a lâmina despida
que cresce ao se gastar,
que quanto menos dorme
quanto menos sono há,

cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte
e se vive a se parir
em outras, como fonte.

(Que a vida dessa faca
se mede pelo avesso:
seja relógio ou bala,
ou seja faca mesmo.)

C.

Cuidado com o objeto,
com o objeto cuidado,
mesmo sendo uma bala
desse chumbo ferrado,

porque seus dentes já
a bala os traz rombudos
e com facilidade
se em botam mais no músculo.

Mais cuidado porém
quando for um relógio
com o seu coração
aceso e espasmódico.

É preciso cuidado
por que não se acompasse
o pulso do relógio
com o pulso do sangue,

e seu cobre tão nítido
não confunda a passada
com o sangue que bate
já sem morder mais nada.

Então se for faca,
maior seja o cuidado:
a bainha do corpo
pode absorver o aço.

Também seu corte às vezes
tende a tornar-se rouco
e há casos em que ferros
degeneram em couro.

O importante é que a faca
o seu ardor não perca
e tampouco a corrompa
o cabo de madeira.

D.

Pois essa faca às vezes
por si mesma se apaga.
É a isso que se chama
maré-baixa da faca.

Talvez que não se apague
e somente adormeça.
Se a imagem é relógio,
a sua abelha cessa.

Mas quer durma ou se apague:
ao calar tal motor,
a alma inteira se torna
de um alcalino teor

bem semelhante à neutra
substância, quase feltro,
que é a das almas que não
têm facas-esqueleto.

E a espada dessa lâmina,
sua chama antes acesa,
e o relógio nervoso
e a tal bala indigesta,

tudo segue o processo
de lâmina que cega:
faz-se faca, relógio
ou bala de madeira,

bala de couro ou pano,
ou relógio de breu,
faz-se faca sem vértebras,
faca de argila ou mel.

(Porém quando a maré
já nem se espera mais,
eis que a faca ressurge
com todos seus cristais.)

E.

Forçoso é conservar
a faca bem oculta
pois na umidade pouco
seu relâmpago dura

(na umidade que criam
salivas de conversas,
tanto mais pegajosas
quanto mais confidências).

Forçoso é esse cuidado
mesmo se não é faca
a brasa que te habita
e sim relógio ou bala.

Não suportam também
todas as atmosferas:
sua carne selvagem
quer câmaras severas.

Mas se deves sacá-los
para melhor sofrê-los,
que seja em algum páramo
ou agreste de ar aberto.

Mas nunca seja ao ar
que pássaros habitem.
Deve ser a um ar duro,
sem sombra e sem vertigem.

E nunca seja à noite,
que esta tem as mãos férteis.
Aos ácidos do sol
seja, ao sol do Nordeste,

à febre desse sol
que faz de arame as ervas,
que faz de esponja o vento
e faz de sede a terra.

F.

Quer seja aquela bala
ou outra qualquer imagem,
seja mesmo um relógio
a ferida que guarde,

ou ainda uma faca
que só tivesse lâmina,
de todas as imagens
a mais voraz e gráfica,

ninguém do próprio corpo
poderá retirá-la,
não importa se é bala
nem se é relógio ou faca,

nem importa qual seja
a raça dessa lâmina:
faca mansa de mesa,
feroz pernambucana.

E se não a retira
quem sofre sua rapina,
menos pode arrancá-la
nenhuma mão vizinha.

Não pode contra ela
a inteira medicina
de facas numerais
e aritméticas pinças.

Nem ainda a polícia
com seus cirurgiões
e até nem mesmo o tempo
como os seus algodões.

E nem a mão de quem
sem o saber plantou
bala, relógio ou faca,
imagens de furor.

G.

Essa bala que um homem
leva às vezes na carne
faz menos rarefeito
todo aquele que a guarde.

O que um relógio implica
por indócil e inseto,
encerrado no corpo
faz este mais desperto.

E se é faca a metáfora
do que leva no músculo,
facas dentro de um homem
dão-lhe maior impulso.

O fio de uma faca
mordendo o corpo humano,
de outro corpo ou punhal
tal corpo vai armando,

pois lhe mantendo vivas
todas as molas da alma
dá-lhes ímpeto de lâmina
e cio de arma branca,

além de ter o corpo
que a guarda crispado,
insolúvel no sono
e em tudo quanto é vago,

como naquela história
por alguém referida
de um homem que se fez
memória tão ativa

que pôde conservar
treze anos na palma
o peso de uma mão,
feminina, apertada.

H.

Quando aquele que os sofre
trabalha com palavras,
são úteis o relógio,
a bala e, mais, a faca.

Os homens que em geral
lidam nessa oficina
têm no almoxarifado
só palavras extintas:

umas que se asfixiam
por debaixo do pó
outras despercebidas
em meio a grandes nós;

palavras que perderam
no uso todo o metal
e a areia que detém
a atenção que lê mal.

Pois somente essa fraca
dará a tal operário
olhos mais frescos para
o seu vocabulário

e somente essa faca
e o exemplo de seu dente
lhe ensinará a obter
de um material doente

o que em todas as facas
é a melhor qualidade:
a agudeza feroz ,
certa eletricidade,

mais a violência limpa
que elas têm, tão exatas,
o gosto do deserto,
o estilo das facas.

I.

Essa lâmina adversa,
como o relógio ou a bala,
se torna mais alerta
todo aquele que a guarda,

sabe acordar também
os objetos em torno
e até os próprios líquidos
podem adquirir ossos.

E tudo o que era vago,
toda frouxa matéria,
para quem sofre a faca
ganha nervos, arestas.

Em volta tudo ganha
a vida mais intensa,
com nitidez de agulha
e presença de vespa.

Em cada coisa o lado
que corta se revela,
e elas que pareciam
redondas como a cera

despem-se agora do
caloso da rotina,
pondo-se a funcionar
com todas suas quinas.

Pois entre tantas coisas
que também já não dormem,
o homem a quem a faca
corta e empresta seu corte,

sofrendo aquela lâmina
e seu jato tão frio,
passa, lúcido e insone,
vai fio contra fios.

*

De volta dessa faca,
amiga ou inimiga,
que mais condensa o homem
quanto mais o mastiga;

de volta dessa faca
de porte tão secreto
que deve ser levada
como o oculto esqueleto;

da imagem em que mais
me detive, a da lâmina,
porque é de todas elas
certamente a mais ávida;

pois de volta da faca
se sobe à outra imagem,
àquela de um relógio
picando sob a carne,

e dela àquela outra,
a primeira, a da bala,
que tem o dente grosso
porém forte a dentada

e daí à lembrança
que vestiu tais imagens
e é muito mais intensa
do que pôde a linguagem,

e afinal à presença
da realidade, prima,
que gerou a lembrança
e ainda a gera, ainda,

por fim à realidade,
prima, e tão violenta
que ao tentar apreendê-la toda imagem rebenta.


João Cabral de Melo Neto


La noche oscura del alma



    Canciones del alma que se goza de haber llegado al 
    alto estado de la perfección, que es la unión con Dios,
    por el camino de la negación espiritual.


  En una noche oscura,
con ansias en amores inflamada,
(¡oh dichosa ventura!)
salí sin ser notada,
estando ya mi casa sosegada.                     

  A oscuras y segura,
por la secreta escala disfrazada,
(¡oh dichosa ventura!)
a oscuras y en celada,
estando ya mi casa sosegada.                     

  En la noche dichosa,
en secreto, que nadie me veía,
ni yo miraba cosa,
sin otra luz ni guía                              
sino la que en el corazón ardía.                 

  Aquésta me guïaba
más cierta que la luz del mediodía,
adonde me esperaba
quien yo bien me sabía,
en parte donde nadie parecía.                    

  ¡Oh noche que me guiaste!,
¡oh noche amable más que el alborada!,
¡oh noche que juntaste
amado con amada,
amada en el amado transformada!                  

  En mi pecho florido,
que entero para él solo se guardaba,
allí quedó dormido,
y yo le regalaba,
y el ventalle de cedros aire daba.               

  El aire de la almena,
cuando yo sus cabellos esparcía,
con su mano serena
en mi cuello hería,
y todos mis sentidos suspendía.                  

  Quedéme y olvidéme,
el rostro recliné sobre el amado,
cesó todo, y dejéme,
dejando mi cuidado
entre las azucenas olvidado. 

San Juan de la Cruz

Da orfandade


Não me canso de recomendar esta série. Uma dos melhores tratados trágico-cómicos do niilismo existencial que já vi. Simultaneamente angustiante e hilariante. São três temporadas e não desilude: ide ver!

domingo, 1 de outubro de 2017

the fire next time

Eis dois livros que não me impressionaram particularmente, apesar das elevadas expectativas.



Percebo que WAYS OF SEEING, de John Berger, tenha constituído uma enorme inovação nos anos 70, com as suas reflexões sobre o impacto da reprodutibilidade técnicas nas imagens da arte, a objectualização da mulher e da nudez, as relações do poder – patriarcal e capitalista – com arte, o papel da publicidade na reprodução da dominação social, etc., mas hoje é uma leitura que me acrescenta pouco. Ainda assim, percebo que este livro tenha tido o mérito de motivar o aprofundamento destes temas nos anos que se lhe seguiram.



THE FIRE NEXT TIME, de James Baldwin, não me satisfez por outros motivos. Primeiro, achei que, embora tais reflexões possam também abranger a realidade europeia, se centrava muito na perspectiva americana; depois, tive alguma dificuldade em relacionar-me com a religiosidade do autor. No entanto, também aqui pressenti um mérito pioneiro e uma enorme coragem.


If we – and now I mean the relatively conscious whites and the relatively conscious blacks, who must, like lovers, insisto n, or create, the consciousness of the others – do not falter in our dusty now, we may be able, handful that we are, to end the racial nightmare, and achieve our country, and change the history of the world. If we do not now dare everything, the fulfillment of that prophecy, re-created from the Bible in a song by a slave, is upon us: God gave Noah the rainbow sign, No more water, the fire next time!