terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Boneca de Tripas - Parte 3



Não fui uma criança alegre. Fui uma adolescente fabulosa, entusiasmada e enérgica, mas enquanto criança fui uma menina triste, metida comigo mesma em contas misteriosas. Não sei bem porquê. Gostava de estar sozinha, achava as meninas da minha idade imaturas e não gostava que me despertasse da minha reclusão.


Recordo um Agosto, passado na casa de praia dos meus pais, com a minha tia, o seu marido, os meus primos e o meu irmão mais novo. Os meus pais e o meu irmão mais velho tinham ficado na vida de adultos isenta de longos verões. Eram dias angustiantes e quentes, em que me sentia sufocada por não poder entregar-me aos vícios da solidão, obrigada a conviver em grupo e a encontrar alegria no modo vigente de ser uma criança saudável. Sentia a falta de mim e da minha casa sem os estranhos a mim.


Recordo os dias passados na praia de Odeceixe, como dias de orfandade, de desligamento. Dias inteiros a chapinhar na água de biquíni vermelho. Vermelho órfão. Nem no meu irmão Miguel, o companheiro fiel da minha infância, encontrava o conforto da ligação, o refúgio terno da minha solidão.


Como naquela tarde solarenga em que ambos nos deliciávamos nas travessuras habituais, desafiando a paciência dos deuses com arrogância e eu me magoei ao saltar sobre um ferro. Em cheio no pipi. Uma dor aguda, violenta. E eu a fugir, a escapar-me para um canto para tocar a minha falha. A mão a voltar cheia de sangue. Vermelho vivo. A consciência súbita da natureza violenta, obscena da beleza. Como uma bofetada seca, isolada. A súbita percepção de que era feita de sangue. E a tristeza, breve e marcante, de não poder partilhar com o meu leal companheiro, o meu irmão de sangue, a dor daquela mancha. Vermelho imperfeito.


Uma mão pequena, infantil, manchada de sangue. O tempo apagou a dor, restou apenas essa imagem. Bela, violenta, terna. E uma sensação de condição frágil que me recuso a aceitar até hoje. Mas sei, não esqueci que sou determinada pelo meu sexo e pela minha capacidade de sangrar em silêncio. Anos mais tarde, um amor violento, uma atracção fatal, inebriante, a consumir-me entre lençóis brancos e macios, o sexo a pulsar, a arder no desejo de tocar, de devorar e incorporar o outro no centro da minha falha, um esforço suado para me afogar e naufragar no corpo do outro, os lençóis manchados de vermelho, um vermelho faltante, irreparável, e outra vez, mais uma vez o regresso isolado, com as mãos manchadas de sangue e arrebatamento, os olhos alucinados a tentar entender a perda, o som do coração a rachar,
Quantas vezes pode um coração rachar até se partir?

Uma praça acorda atravessada por um rasto de sangue. A beleza da cor a animar uma manhã branca e gelada. A certeza inquestionável do mal,
Um coração partido não volta a amar, é uma máquina inútil, avariada.

O arrepio perante a violência do crime – rezo a deus, que eu nunca mate alguém, pergunto ao diabo, afinal o que leva um homem a matar outro. Vermelho insano, desvairado. A carne nua, frágil, disposta a ser retalhada. A alma está indefesa, não te pode proteger, fracassou no seu papel de salvação e redenção.

Detesto talhos, o cheiro azedo da carne, a facilidade com que a cortam, manipulam, decepam. Pronta a cozinhar, a ser digerida. Eu, pequena, acocorada a um canto, a perceber que somos apenas sangue, que jamais escaparemos à corrente de sangue que nos liga e separa. A impossibilidade de partilhar a minha dor com o meu irmão, a dor é sempre nossa, não existem palavras para a compreender,
O que eu sei acerca do outro são as palavras da dor dele, a dor, essa é dele e com que ele permanecerá, não há balanças que a pesem.

A vergonha de ser mulher, a obrigação do recato, a minha mãe
Uma menina não mostra o pipi aos meninos.
Mas ele era o meu irmão, irmão leal de sangue, o único que comungou da minha infância e, além disso, agora mostro o pipi a outros, que não sabem a minha infância, que não podem entender a minha dor. Vermelho incomunicável. E talvez que o meu irmão tivesse entendido. Enquanto vivíamos na mesma infância. Enquanto a esperança e a desilusão ainda eram divisíveis. Depois crescemos, impuseram-nos um modo severo de ser adulto e deixámos de nos entender. Não sei bem porquê.

Talvez que o coração tenha começado a rachar antes, mas quando aquele amor louco e gritante começou a colapsar, ia jurar que o ouvi claramente a rachar. Como uma faca de talhante a rasgar o meu peito. Vermelho interior. Pensei que um amor assim não acabava.
Não me disseram que o amor também acaba, não me preparam para deixar de amar. Só para não mostrar o pipi aos rapazes.

Recordo aquela menina triste de cabelo liso-liso, na praia de Odeceixe, a chapinhar na água de uma pequena lagoa, tão pequena como ela. Uma menina que não sabia nadar, que não queria brincar com a prima bruta e estúpida. Queria brincar com o meu irmão, estar em minha casa com os meus pais.
Quantas vezes pode um coração sentir-se só sem se rachar?