segunda-feira, 29 de julho de 2013

um livro do caralho, já se sabia

"e eu que sopro e envolvo teu corpo tremulamente intacto com meu corpo de bode coroado
fedendo a testosterona e sangue,
num mundo de aromas e de orvalho,
farejo-te,
mordo-te a nuca, lambo,
e faminto me meto por ti adentro,
rebento os selos,
marco-te a fogo,
levíssima visita à minha sêca luz e arrebatada fome,
e se brotas em tua donzelia e és ao modo de festejo,
e de minha bruteza te encurvas tanto que te sussurro um poema de louvação e embalo,
tão soluto e agudo e soberano,
algures, quando
a água quebre e os verbos soberbos cantem,
e tudo se desfaça,
e refaça,
não como soía,
mas com um assombro novo:
faz-se-me tarde para o poema das frutas que de macias se fendem e fundem nas gengivas,
e no ímpeto da luz rasgada em baixo,
cômo-te antes que morra:
e eu sei quanto depressa morro"

Herberto Helder, Servidões

No fundo da garrafa, a liberdade.

"Os castanheiros inclinavam-se e erguiam-se com um sussurro enlouquecido. O vento secava as lágrimas de Hélène e fazia-lhe arder os olhos; parecia atravessar-lhe a cabeça, mais calma e leve, e aquecia-lhe o sangue. Tirou o chapéu, fê-lo girar entre as mãos, deitou a cabeça para trás e, de repente, com inexprimível assombro, percebeu que estava a sorrir, que esticava devagarinho os lábios para reter e saborear a rajada sibilante que passava.

«Não tenho medo da vida», pensava. «Foram anos de aprendizagem. Foram extraordinariamente duros, mas temperaram a minha coragem e o meu orgulho. Isso é meu, é a minha inalienável riqueza. Estou só, mas a minha solidão é ávida e inebriante.»

Irène Némirovski, O Vinho da Solidão

domingo, 28 de julho de 2013

segunda-feira, 15 de julho de 2013


 «Nem todos os livros são tão insípidos como os seus leitores. É provável que haja palavras endereçadas exactamente à nossa condição, as quais, se de facto pudéssemos ouvi-las e entendê-las, seriam mais salutares às nossas vidas que a própria manhã ou a Primavera, revelando-nos talvez uma face inédita das coisas.
Quantos homens não inauguraram uma nova etapa na vida a partir da leitura de um livro! Deve existir para nós o livro capaz de explicar os nossos mistérios e de revelar outros insuspeitados. As coisas que ora nos parecem inexprimíveis, podemos encontrá-las expressas algures.
As mesmas questões que nos inquietam, intrigam e confundem, foram postas por sua vez a todos os homens sábios; nenhuma foi omitida, e cada um deles respondeu de acordo com a sua capacidade, por meio de palavras ou da própria vida. De mais a mais, juntamente com a sabedoria aprendemos a liberalidade.»

Henry David Thoreau, "Walden ou a Vida Nos Bosques"

um bom livro é difícil de encontrar

 
Tenho lido muito. Depois de toda a espécie de alugueres quotidianos, parece que o tempo milagrosamente se dilata quando ao fim do dia me deito na cama para descansar os ossos e ler.
 
Tenho lido muito sem ser arrebatada. Depois de O Crime e o Castigo parece que mais nada me satisfaz. Como no amor, talvez existam livros que se distingam como maiores, diminuindo a possibilidade das paixões fátuas.
 
Foi o caso do primeiro livro de Ana Teresa Pereira, Até que a Morte nos Separe. Gosto da maneira como ela escreve, como doseia o enredo e da atmosfera noir que envolve toda a narrativa. Não está nenhuma peça fora do sítio mas também não está lá aquele suplemento de grande beleza. Terminada a leitura, fica uma grande vontade de dividir as minhas noites entre livros e filmes. Já comecei a sacar o They live by night. É preciso continuar a tentar ultrapassar o rasto de melancolia que os grandes amores deixam.
 
Sempre gostei de histórias de solidão. Há algum tempo (muito tempo?) passava tardes inteiras num cinema de sessões contínuas, vendo filmes do Nicholas Ray: On dangerous ground (ele trazia-me o mundo lá fora, as mãos cheias de flores, um ramo de árvore), In a lonely place (a mais bela frase do cinema, "I was born when he kissed me, I died when he left me, I lived a few weeks while he loved me"). Não conhecia o amor. Ouvira dizer que existia, mas não tinha bem a certeza. E no entanto pressentia que só podia vir assim, quando a solidão era desmedida, e que depois nos deixava sozinhos de novo.
 

quarta-feira, 10 de julho de 2013

iluminações profanas



“Agora é como se alguma coisa me levasse pela mão (…). É como se nos indicassem as palavras foneticamente. Aqui há ligação automática. Há coisas que tomam a palavra sem pedir autorização para isso. E isso vai até às mais altas esferas. Há uma senha silenciosa, com a qual certas coisas agora atravessam o portão.” 

“Para nos aproximarmos dos mistérios de felicidade no êxtase teríamos de reflectir sobre o fio de Ariadne. Que prazer no simples acto de desenrolar um novelo! Um prazer que tem afinidades profundas, quer com o do êxtase, quer com o da criação. Avançamos, mas, ao avançar, não só descobrimos os meandros da caverna em que nos aventurámos, como também desfrutamos dessa felicidade do descobridor apenas através daquela outra que consiste em desenrolar um novelo. Essa certeza que nos é dada pelo novelo engenhosamente enrolado que nós desenrolamos não será essa a felicidade de toda a produtividade, pelo menos daquela que tem forma de prosa? E no haxixe somos seres de prosa e de prazer da mais alta potência.”

terça-feira, 2 de julho de 2013

uma mulher perdida


A prosa de Willa Cather é fluída e delicada. Uma Mulher Perdida versa sobre a passagem da época dos sólidos pioneiros para a era líquida dos afectos capitalistas. Não comungo, infelizmente, desta nostalgia.

"Naquela noite, Mrs. Forrester começou com «em tempos que já lá vão». (...) Contou-lhes que o capitão Forrester, à época viúvo, tinha viajado até ao acampamento para visitar o sócio do pai dela. Marian quase não deu por ele - saía todos os dias a passear com os rapazes. Certa tarde, convenceu o jovem Fred Harney, uma montanhista intrépido, a descer com ela a Escarpa da Águia. Já quase tinham chegado ao fundo e avançavam cautelosamente sobre uma laje rochosa saliente quando a corda se rompeu e caíram os dois desamparados. Harney tombou sobre uns penedos e teve morte instantânea. A rapariga enredou-se num pinheiro que lhe amorteceu a queda. Fracturou as pernas e ficou estendida toda a noite no fundo do desfiladeiro, sob o frio intenso, fustigada pela ventania gélida que ali soprava. (…) Foi o grupo do capitão Forrester que encontrou Marian e que a transportou através do carreiro inferior. O trilho era tão íngreme e estreito, com curvas tão apertadas em volta das saliências rochosas, que era impossível transportá-la numa padiola. Os homens revezavam-se a carregá-la às costas, com os ombros a roçar nas paredes do desfiladeiro enquanto avançavam cautelosamente. Com as pernas fracturadas a baloiçar, suspensas, ela sofria horrivelmente, e desmaiou uma e outra vez. Porém, deu-se conta de que sofria menos quando era o capitão Forrester a carrega-la e de que ele o fez em todos os troços mais perigosos do trilho. – Eu sentia o coração dele a bater e os músculos a retesarem-se – disse – quando ele se equilibrava sobre os penedos, comigo às costas. Eu sabia que, se caíssemos, cairíamos os dois juntos, porque ele nunca me soltaria.
Regressaram ao acampamento e fizeram todos os possíveis para a tratar, mas, quando um cirurgião finalmente chegou de São Francisco, as fracturas já tinham começado a cicatrizar e foi necessário partir-lhe os ossos de novo.
- Era o capitão Forrester que eu queria que me desse a mão cada vez que o cirurgião tinha de me fazer coisas. Lembras-te, Niel, ele contava sempre, cheio de orgulho, que eu não gritei uma só vez quando eles me carregavam por aquele trilho acima. Ele ficou no acampamento até eu ser capaz de dar os primeiros passos, apoiada no braço dele. Quando me pediu em casamento, não teve de pedir duas vezes. Espanta-vos? – Percorreu o círculo de rostos com um olhar sorridente e, num gesto alheado, passou as pontas dos dedos pela testa, como que para afugentar qualquer coisa – o passado, o presente, quem sabe…

(…) No fim de contas, ela não tinha mudado assim tanto desde então. Niel sentiu naquela noite que, apesar do tempo já decorrido, o homem certo ainda a poderia salvar. Ela conservava ainda a sua natureza indomável, qual actriz a representar o papel de sempre – mas no teatro, para a ouvr, só restavam os maquinistas de cena e os ajudantes. Todos quanto tinham partilhado belos feitos e ocasiões esplêndidas já não se encontravam ali.”