segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Diário de 2013


Há pouco descia a rua do Alecrim e pensei que o que decide a singularidade de uma pessoa não é tanto a sua história como a conjunção desta com a história das suas leituras. Não existem dois leitores iguais na história do mundo. Ninguém leu ou lerá os mesmos livros que eu pela mesma sequência afectiva. Uma história que se constrói como o mais perfeito dos labirintos, composta por misteriosas empatias e tristes desencontros com os livros certos que não nos acertam no tempo certo.

O ano começou com Niels Lyhne, mudanças de casa e desemprego. Janeiro, mês das saudades contentes.

6 de Janeiro: São quase seis da manhã e estou na minha nova casa. Estou muito cansada com as mudanças, nos últimos dias não tive praticamente tempo para pensar na minha felicidade. Mas vim para a cama ler o Niels Lyhne e não pude deixar de vir escrever um pouco. Este vai ser um ano importante, um ano que prometi dedicar mais erotismo e leituras a uma exegese espiritual e ética (presente de natal da Etty Hillesum).

13 de Janeiro: Tive saudades dele. Masturbei-me mas já não o consigo recordar. Chorei depois, como é habitual. Não um choro de mágoa nem de desespero. Foi mais um chorar que reconhece a falta mas de uma forma contente, como quem aceita (…) O amor deixou de ser uma fome. Sinto-me segura e completa numa falta que não é mais abstracta mas nomeada e calma. A única tristeza advém da suspeita que vivo sozinha este amor (…) Viver a saudade com carinho é o que há a fazer por ora.

16 de Janeiro: A vida está caótica. Estou desempregada, a tese de doutoramento atrasada. A crise é afinal real, não apenas uma patranha dos media. Não há emprego em lado nenhum.

17 de Janeiro: Hoje almocei na faculdade e encontrei um colega de mestrado. Retive o momento em que ele me disse que eu estava muito melhor, mais bonita e mais meiga. “Já não pareces uma tipa fria”. Achei piada a esta ideia de que o tempo amargura certas pessoas enquanto aquece outras. Talvez cada experiência nos seja dada como uma peça de um puzzle para que possamos ir enfim completando e possuindo o nosso desejo.

Em Fevereiro, depois de muitas peripécias, consigo um trabalho. O primeiro do ano: servir pequenos-almoços num hotel. É bom entrar no eléctrico de madrugada e apreciar de modo muito simples Lisboa a despertar. A banda sonora do Django ajuda-me a ter forças.

Fevereiro, mês de liberdade e muito carnaval.

20 de Fevereiro: Estou bem. Consigo ver novamente a beleza.
A beleza e a fé estão aí, disponíveis para quem pede para ver, como São Tomé. Acredito que o meu milagre virá e espero sem desesperar, porque mesmo quando algo menos bom acontece, sempre se lhe segue algo de bom, como um relâmpago cósmico enviado como lembrete contra a queda. Estou a recuperar a confiança em mim e nos outros. De forma tímida. As feridas ainda sulcam o pensamento mas a dor esvaneceu-se. São assim as cicatrizes de uma mulher que caminha ao encontro de si.E a escrita regressa também. Estou bem e rio. Sou mulher e consegui sobreviver até à vida.

Em Março, consigo outro emprego, desta vez em produção televisiva. Ao serviço do diabo: marketing. Março, mês de desenamoramentos.

23 de Março: Hoje, ao acordar, recordei o rosto dele e, por momentos, o amor ausentou-se. Chegou a hora de fazer do passado matéria e não pensamento. Embora às vezes me faltem uns braços para onde fugir, os teus nunca foram abrigo para mim.

Abril é um mês difícil. Muita chuva e viadutos mil. Descubro Irène Némirovski e tento ter calma.

19 de Abril: Não tenho tido muito tempo para ler. Não me sinto útil no meu trabalho (…). O mistério de quem aprende a andar de novo. Tenho medo de cair. Tento não pensar muito e usar as pernas. E todos os dias há aquele viaduto que tenho de atravessar a tremer. Salva-me o Tejo numa das linhas de comboio mais bonitas do mundo.

Maio. A feira do livro acalma a agitação e sou feliz no Parque Eduardo VII. Encontro três amores passados: um oferece-me uma fartura, o outro um livro e o terceiro, o maior, não sabe já sorrir-me. Song for Zula.
27 de Maio: As mãos das pessoas a mexer nos livros são mãos esfomeadas.
29 de Maio: O segredo dos casais felizes: eles oferecem livros a elas.

Junho. A feira do livro termina e já não corro. Mas não sou feliz. Leio É Assim que a Perdes e O Jogo Sério e não encontro em mim qualquer esperança, apenas um silêncio resignado e competente.

22 de Junho: Não me sinto ligada a nada. Não entendo nada. Não sei nada. Vim até aqui e li tanto para ficar nua.

Em Julho, leio muito, muito. De forma estéril: as letras não me arrebatam.

10 de Julho: A morte ou a paz?

Em Agosto e Setembro, há o Meco, bons amigos e muitos russos (uma receita infalível para os corações mais grelados) e a boa nova: vou finalmente trabalhar com livros.

Outubro, Novembro e Dezembro são meses que me pertencem por inteiro. Mistérios de Knut Hamsun.

O ano termina com a leitura da consciência de Zeno. “A vida assemelha-se um pouco a uma enfermidade: também procede por crises e por depressões. A diferença entre as outras doenças é que a vida é sempre mortal. Tratar da vida seria pretender tapar os orifícios do nosso organismo, considerando-os como feridas.
(…)
A saúde, para o homem, constitui um bem quimérico. Só pode pertencer ao irracional, que não conhece senão um progresso: o do seu próprio organismo. Quando a andorinha compreendeu que a única possibilidade de viver residia na migração, reforçou-se o músculo motor das suas asas, tornando-se-lhe a parte mais considerável do seu corpo. A toupeira enterrou-se e todo o seu ser se adaptou às necessidades de uma vida subterrânea. O cavalo fez-se maior, transformou a base. De certos animais ignoramos as metamorfoses, mas existiram, e nunca lhes prejudicaram a saúde.”

E o começo da escalada à Montanha Mágica. Uma odisseia literária como convém a um inverno rigoroso. Para o novo ano levo apenas este livro e um desejo: florir. Entretanto, vou à Holanda aprender como se faz.


Feliz Natal e um 2014 com novidades!

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Há tantos anos que não se via uma reentrée literária assim

Tenho sempre uma lista de livros que quero adquirir e há muito tempo que não me acontecia querer tantas novidades.

Algumas já tenho e li: Mistérios de Knut Hamsun (Cavalo de Ferro), Abismo (Antígona), O Livro do Desassossego (Tinta-da-China), Alfabetos (Quetzal), o número 2 da Granta portuguesa (Tinta-da-China), o segundo tomo da História da Minha Vida do Casanova (Divina Comédia).

Outras são as que quero muito, já seleccionadas com um grande esforço: Dicionário dos Lugares Imaginários (Tinta-da-China), Atlas do Corpo e da Imaginação (Caminho), A Irmã (D. Quixote), O Barril Mágico (Cavalo de Ferro), Deixa Lá/Más Novas (Sextante) e A Potência do Pensamento (Relógio d'Água) e A Minha Luta (Ahab).

Ou mos oferecem pelo Natal ou vou roubar.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Só acredito numa revolução dos falhados


"And worse I may be yet. The worst is not so long as we can say «This is the worst».
King Lear, Shakespeare

Não conhecia Jean Meckert nem nunca tinha ouvido falar dele. Felizmente, a Antígona publicou recentemente um livro de contos do autor para colmatar a minha ignorância. Gostei dos três contos, particularmente do que dá título ao livro.

"Se fordes simpáticos, dir-vos-ei que, para conhecer o sentido do mundo, é preciso que ele vos tenha mostrado o cu. E ainda não haveis descido tão baixo para isso.
Pela minha parte, venho de lá e orgulho-me disso. Estou blindado, imunizado para sempre. Vomitei para a consumação dos séculos; agora já nada me mete medo. As náuseas são para os que descem, e não para os que sobem.
À força de ficar sozinho no me canto, dei não sei quantas vezes a volta à minha caixa craniana, no interior, caminhando no tecto.
(...)
Lá no fundo aprendem-se coisas. No interior, passa-se o contrário da vida vulgar: quanto mais se desce, mais o panorama se alarga. As ideias mais famosas situam-se no último círculo do inferno."

Um livro que se recomenda pela autenticidade desempenada e genica com que expõe a miséria e a raiva de todos os falhados e lixados do mundo. 

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

nunca li a ficção deste senhor mas adoro as suas reflexões ensaísticas e sobretudo a sua grande humildade


"Por vezes, pergunto-me de que lado estou, se a minha história é aquela contada em Guerra e Paz ou na Metamorfose de Kafka, ou quem sabe, no Auto-de-Fé de Canetti. Talvez a minha odisseia literária seja aquela que conta a viagem ao nada e o respectivo retorno. Talvez, por isso, os escritores que mais me ensinaram tenham sido os que deram voz imparcial aos matizes mais diversos da vida e às paixões mais antitéticas, à fé e ao nada (...). Desencanto e desilusão não negam, antes filtram como uma peneira as gelatinosas mentiras, a retórica sentimental, a pieguice do coração, com a qual de bom grado enganamos os outros e nos enganamos a nós próprios: esse é talvez, um traço comum aos livros que, desmascarando o vazio em que assenta a realidade e os ouropéis com os quais se pretende dissimulá-lo, ajudam a olhar sem medo esse vazio e também a apercebermo-nos do amor que existe não obstante essa voragem."

Passagem de ano com bicicletas, neve e Van Gogh.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

noites brancas e diabólicas


Comecemos por dois mistérios. O lançamento do último livro de Knut Hamsun editado pela Cavalo de Ferro não figurava nos destaques da reentré literária dos principais suplementos culturais do país. Apanhou-me, portanto desprevenida quando fui à livraria buscar as novidades que planeara ler. A sua capa negra com uma imagem de Munch tinha os olhos postos em mim e não me restava senão devolver o olhar. São assim as peripécias de uma leitora fútil que tende a julgar os livros pela capa.

A chamada misteriosa continuou em casa. O livro estava impertinente por sair da estante para o meu regaço, tendo-me obrigado a adiar outras leituras urgentes. E assim começaram as minhas noites diabólicas com os Mistérios de Knut Hamsun. Não vou explicar o uso deste adjectivo, mas garanto que é o mais próximo desta experiência nocturna de leitura. Terminada a leitura diária, o livro continuava a comunicar comigo, oferecendo-me sonhos perturbados e nervosos. Sonhos que podiam ser tidos como pesadelos, não fosse a sua natureza branca. Só depois de terminar a leitura do livro, li as habituais citações da contracapa. “Mistérios é tão próximo e tão inquietante quando o nosso sonho (ou pesadelo) da noite passada” (New York Times). Que me lembre, nunca tal comunicação inconsciente me tinha acontecido com um livro. Uma proximidade inquietante.

Knut Hamsun é tido por muitos, sobretudo grandes escritores, como um dos maiores. A julgar pela capacidade de me perturbar, parece-me um título merecido. De Mistérios, disse Henry Miller: “está mais próximo de mim do que qualquer outro livro que eu tenha lido”. Talvez Miller tenha sentido a mesma empatia disruptiva que eu senti por Johan Nilsen Nagel, o misterioso estrangeiro que sem nenhuma razão aparente se instala por um período breve numa pequena cidade costeira da Noruega.

Nagel é um homem em luta, uma alma que não alinha com nada, desconfiando de tudo e todos, sobretudo dos «bons sentimentos» e dos grandes homens. «A vida é uma luta contra os monstros que se escondem nos recantos do coração e do cérebro». Nagel não é, como Hamsun disse da personagem, um homem-tipo. Aliás, o que o exaspera é o congelamento dos homens em subjectividades típicas. Nagel ri quando devia chorar, é honesto quando deve ser desonesto e vice-versa. É um homem em desacordo e com os nervos em franja, como qualquer moderno que se preze, movido pelo desejo de fazer algo diferente, algo que estilhace a superfície polida da vida embalsamada nos valores confortáveis da burguesia.

A curta estadia do estranho vai pertubar a paz podre da comunidade. Nagel, com uma enigmática capacidade intuitiva, funcionará como um espelho negro onde os habitantes da cidade podem ler o reflexo dos seus instintos e desejos reprimidos. Quanto ao elemento estranho, esse está condenado à autodestruição. A sua mania de contrariar desemboca na melancólica constatação de que tudo é hipocrisia e ele não é melhor que ninguém. É o preço a pagar por um «bom» coração e uma cabeça volátival, errante.

Sou, como Nagel, uma alma atormentada. Não me acho melhor que os outros mas a maioria exaspera-me com as suas mentiras e hipocrisias. Sou incapaz de reconhecer uma autoridade e não consigo não desafiar. Desde pequena, se alguém me diz que não posso fazer ou dizer algo, trato imediatamente de o fazer ou dizer. Tenho uma personalidade leal mas não houve um amor que eu não traísse. Sinto um profundo desacordo com a vida e a forma como se vive. Embora pessimista, tenho sempre viva a esperança que a vida rompa a sua imobilidade e aflore sobre o gelo da indiferença, exultante.


Tudo isto que foi dito fica aquém do livro de Knut Hamsun. Acontece-me sempre com os livros maiores, aparentados e diabolicamente bem escritos: falta-me o génio para falar do génio.

terça-feira, 5 de novembro de 2013


Terminei ontem de ler. E assim que li a última página voltei imediatamente à primeira. Não vou decifrar todos os mistérios deste livro diabólico mas quero atravessar de novo, com todo o vagar, os seus enigmas.

sábado, 2 de novembro de 2013

Para dançar



“Tenía la impresión de que su cabeza tan pronto era una parada en el camino de otras cabezas, como una diana a la que otros apuntaban, o incluso un aparato que en parte le escapaba, teleguiado por extraños – sus verdaderos propietarios – que lo hacían funcionar y pensar a su antojo. Fuera cual fuese la explicación, por singular y abracadabrante que fuese, lo importante es que ya no era el dueño, y que apenas si estaba «al corriente», o poco más. Ni siquiera sabía «dónde meterse en su cabeza».”

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Leitura recomendada


"Odeio o acto de amor que não faz soltar ambos os parceiros
(eis por que me apraz menos o amor com rapazes);
odeio aquela que se entrega por ser preciso entregar-se
e que, na sua secura, só pensa na sua lã;
prazer cedido por dever não é prazer que me dê gozo;
um dever, que nenhuma mulher o pratique comigo.
A mim, apraz-me ouvir gemidos que me façam sentir o gozo dela,
e que me suplique que me demore, que me aguente;
quero ver os olhos rendidos da mulher, já fora de si,
e que ali fique desfalecida e largo tempo não queira que lhe toque."

Epifanias de uma alma pequena


Acredito na existência da alma. Acredito porque já senti a minha a querer partir-me o peito algumas vezes. É uma alma curiosa e inquieta e não aceita confinar-se a nada, recusa convenções e devoções e nem sempre obedece aos meus desígnios.

As vantagens e as despesas de uma alma deste tipo são conhecidas. O bem e o mal coincidem no mesmo ponto, a imaginação empática. Gosta-se demasiado de visitar e imaginar toda e qualquer alteridade, pois o que interessa é abarcar a vida nas suas múltiplas manifestações e contradições.

Uma vez ofereceram-me um workshop de Reiki. Acontecia a um sábado e, apesar da generosidade da oferta, o corpo clamava por praia. Após uma longa hesitação, acabei por me levantar bem cedo e ir ao workshop, de algum modo convencida que se não abdicasse de um dia de Verão, a minha alma estaria condenada a um materialismo opressivo. Aguentei a manhã e a tarde no workshop, contrariando ora a minha vontade de fugir, ora o riso convulsivo.

No entanto, o reiki acabou por me oferecer duas epifanias. A primeira aconteceu durante o workshop. Todas as mulheres que frequentavam o mesmo, à excepção de mim, tinham alguma doença complicada. Uma deles ficou indignada, quando um dos mestres lhe deu a ler o significado espiritual da síndrome de Crohn: parece que só acontece aos lambe-cus. E foi então que a certo momento, eu vi, eu soube: as quatro mulheres que ali estavam, tinham trocado o sol e os pés descalços sobre a areia, porque estavam perdidas e precisavam desesperadamente de um sentido para a vida. Eu inclusive.

A segunda aconteceu no dia seguinte ao workshop. Depois de iniciada ao reiki, há que meditar uma hora durante 30 dias. Nunca consegui meditar mas como as mãos aqueciam realmente, decidi tentar. Pus o CD com os sininhos e comecei os exercícios sentada na cadeira. Quinze minutos depois estava deitada na cama a aldrabar todos os exercícios e fui forçada a ser sincera comigo. Admiti que não conseguia meditar, que o reiki fazia muito bem a muita gente mas a mim só me tirava os pés do chão para a cama e que durante o tempo que ali estivera, não conseguira esvaziar a mente pelo constante lamento de estar a desperdiçar tempo que podia gastar a ler. Senti-me muito mais leve depois disto e aproveitei a vela para alumiar a leitura dessa noite e meditar nos pensamentos e acções das personagens que então me ocupavam.

Este sábado fui para a Malveira da Serra. Perto do Cabo da Roca, acontecia uma “festa esotérica”, segundo uns amigos. Como não me apeteciam as calçadas lisboetas, fui. Numa “casa encantada” discutia-se a espiritualidade e o futuro da humanidade, noutras divisões faziam-se massagens e leituras de tarot, mas os caminhos húmidos da serra distraíam-me. Gosto dos caminhos misteriosos da serra, da humidade que os protege, do silêncio dos meus passos.

Houve depois uma aula conjunta de chi kuan, que comecei a fazer mas rapidamente me aborreci, pois que me apetecia fumar e aproveitar uma cadeira perfeita para olhar o mar. Gosto de estar deitada sem fazer nada, fumando o tempo. Gosto de deitar os meus olhos no mar.

Despertei desta contemplação, sentindo uma presença a meu lado. Uma galinha, de olho verde-inquieto aproximara-se, decidida a estabelecer conexão comigo. Olhou-me nos olhos, meneando a cabeça como um ponto de interrogação até se fartar e partir. Fiquei depois observando as peripécias das três galinhas que ali viviam, encantada com os seus movimentos oscilantes e as excitações que as moviam. Concluí que as galinhas, apesar de estúpidas, nunca se entendiam e que é impossível não nos divertirmos com os seus voos arcaicos.

A caminho de Lisboa, encontramos uma tasca na aldeia de Juso. Escolhi certeiramente o sítio pelo toldo e pelo nome. Lá dentro, tive a oportunidade de conversar com alguns sorrisos enrugados, descobrir que também existe bom medronho no centro e provar tordos pela primeira vez. Gosto de tascas perdidas no tempo e no espaço e a minha intuição não costuma falhar quando se trata de encontrar uma. Lá dentro, encontro sempre uma pureza que nunca consegui traduzir em palavras. Uma deficiência que felizmente consegui suplementar com a leitura das aventuras do Augie March: primeiro tem de se testar aquilo de humano com que se consegue conviver. E se o mais elevado estiver naquela taberna vazia e abafada, com as moscas, o rádio quente a zumbir entre jogadas e a cerveja de Sox Park, o que poderá fazer-se senão aceitar a mistura e dizer que a imperfeição é sempre a condição do que encontramos? Do mesmo modo, os meus olhos arranhados verão sempre a grande beleza arranhada. E deuses podem aparecer em qualquer lugar”.

Regressada a Lisboa, a noite alongou-se até desembocar na madrugada suja do Tejo. Gosto das manhãs fantasmáticas que descolam do rio com uma imponência demorada. Gosto dos fantasmas que se abeiram do rio, das mãos sujas que mendigam cigarros e dos olhares vítreos dos peixes que se extraviam da água para um balde triste. Gosto dos barcos que assombram o horizonte e dos cacilheiros que cortam a paz morta das águas. E do céu de Lisboa que nem William Turner conseguiria reproduzir.

Regressei a casa de eléctrico, já a manhã ia alta e embriagada. Com um casal de franceses, descobri que as pessoas que lêem muito ficam com papos nos olhos quando envelhecem. Como se as letras inchassem debaixo de olhos que não souberam olhar o mundo sem o ler. Ao despedir-me deles, riam muito, contentes por saber que Madame Bovary sobrevivia afinal alegre em Lisboa.


Deitei-me por fim com mais uma epifania: tenho uma alma pequena com uma vontade imensa de andar por aí, simultaneamente meditabunda e alegre. Misteriosos são os caminhos de uma alma que se sente atraída por tudo o que vive e se agita, quer se trate de galináceos, águas ou tascas perdidas no espaço e tempo. 

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Cosac & Naify


Estou apaixonada por uma editora.

Este ano pude passar algumas noites com 2 livros da colecção Prosa do Mundo da Cosac & Naify: Niels Lyhne e Thérèse Desqueyroux. Foram noites de euforia. Primeiro, o aspecto sensorial do livro: livros de capa dura, com sobrecapas lindas, papel macio, que apetece deitar no colo. Depois, cada edição tem apresenta textos introdutórios de outro autor (no caso de Niels Lyhne, o brilhante ensaio «As Moedas da Vida» de Claudio Magris; em Thérèse D., o belo prefácio de Carlos Drummond de Andrade, tradutor do romance).  Como apêndice, o livro de Mauriac acrescenta também a conferência «O Romancista e seus personagens», proferida pelo autor em 1932. E para terminar tão faustosa refeição, um bombom final: sugestões de leitura.

A Cosac & Naify é uma editora brasileira com pouca ou nenhuma representação em Portugal. A minha amiga carioca diz-me que são livros de luxo. E então pus-me a pensar no mercado editorial português e nas raras vezes em que um livro me delicia pela sua faceta de objecto e pela edição cuidada. Chego à conclusão que não temos nenhuma editora de luxo, apesar de algumas esporádicas edições. E parece-me óbvio que com as recentes inovações do mercado editoral e a profusão de ebooks, este sector terá de evoluir também por aí, à semelhança do vinil.

Embora reconheça as vantagens de uma biblioteca leve num Kindle, acredito que jamais deixaremos de ser uma cultura do livro: este será sempre um objecto erótico para os seus amantes dedicados.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Qual romance você está lendo?

Sempre pensei que fosse sábio desconfiar de quem não lê literatura. Ler ou não ler romances é para mim um critério. Quer saber se tal político merece seu voto? Verifique se ele lê literatura. Quer escolher um psicanalista ou um psicoterapeuta? Mesma sugestão.
E, cuidado, o hábito de ler, em geral, pode ser melhor do que o de não ler, mas não me basta: o critério que vale para mim é ler especificamente literatura --ficção literária.
Você dirá que estou apenas exigindo dos outros que eles sejam parecidos comigo. E eu teria que concordar, salvo que acabo de aprender que minha confiança nos leitores de ficção literária é justificada.
Algo que eu acreditava intuitivamente foi confirmado em pesquisa que acaba de ser publicada pela revista "Science" (migre.me/gkK9J), "Reading Literary Fiction Improves Theory of Mind" (ler ficção literária melhora a teoria da mente), de David C. Kidd e Emanuele Castano.
Uma explicação. Na expressão "teoria da mente", "teoria" significa "visão" (esse é o sentido originário da palavra). Em psicologia, a "teoria da mente" é nossa capacidade de enxergar os outros e de lhes atribuir de maneira correta crenças, ideias, intenções, afetos e sentimentos.
A teoria da mente emocional é a capacidade de reconhecer o que os outros sentem e, portanto, de experimentar empatia e compaixão por eles; a teoria da mente cognitiva é a capacidade de reconhecer o que os outros pensam e sabem e, portanto, de dialogar e de negociar soluções racionais. Obviamente, enxergar o que os outros sentem e pensam é uma condição para ter uma vida social ativa e interessante.
Existem vários testes para medir nossa "teoria da mente" --os mais conhecidos são o RMET ou o DANVA, testes de interpretação da mente do outro pelo seu olhar ou pela sua expressão facial. Em geral, esses testes são usados no diagnóstico de transtornos que vão desde o isolamento autista até a inquietante indiferença ao destino dos outros da qual dão prova psicopatas e sociopatas.
Kidd e Castano aplicaram esses testes em diferentes grupos, criados a partir de uma amostra homogênea: 1) um grupo que acabava de ler trechos de ficção literária, 2) um grupo que acabava de ler trechos de não ficção, 3) um grupo que acabava de ler trechos de ficção popular, 4) um grupo que não lera nada.
Conclusão: os leitores de ficção literária enxergam melhor a complexidade do outro e, com isso, podem aumentar sua empatia e seu respeito pela diferença de seus semelhantes. Com um pouco de otimismo, seria possível apostar que ler literatura seja um jeito de se precaver contra sociopatia e psicopatia. Mais duas observações.
1) A pesquisa mede o efeito imediato da leitura de trechos literários. Não sabemos se existem efeitos cumulativos da leitura passada (hoje não tenho tempo, mas "já li muito na adolescência"): o que importa não é se você leu, mas se está lendo.
2) A pesquisa constata que a ficção popular não tem o mesmo efeito da literária. A diferença é explicada assim: a leitura de ficção literária nos mobiliza para entender a experiência das personagens.
"Como na vida real, os mundos da ficção literária são povoados por indivíduos complexos cujas vidas interiores devem ser investigadas, pois são raramente de fácil acesso."
"Contrariamente à ficção literária, a ficção popular (...) tende a retratar o mundo e as personagens como internamente consistentes e previsíveis. Ela pode confirmar as expectativas do leitor em vez de promover o trabalho de sua teoria da mente."
Em suma, o texto literário é aquele que pede esforços de interpretação por aquelas caraterísticas que foram notadas pelos melhores leitores do século 20: por ser ambíguo (William Empson), aberto (Umberto Eco) e repleto de significações secundárias (Roland Barthes).
Na hora de fechar esta coluna, na terça-feira, encontro a mesma pesquisa comentada na seleção do "New York Times" oferecida semanalmente pela Folha. A jornalista do "Times" pensou que a leitura literária, ajudando-nos a enxergar e entender os outros, facilitaria nossas entrevistas de emprego ou nossos encontros românticos.
Quanto a mim, imaginei que, na próxima vez em que eu for chamado a sabatinar um candidato, não esquecerei de perguntar: qual é o romance que você está lendo? E espero que o candidato mencione um livro que conheço, para verificar se está falando a verdade.
Contardo Calligaris
Contardo Calligaris, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas na versão impressa de "Ilustrada".

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

a lei do horror e da beleza


“Uma pessoa pode nunca associar duas ideias de modo que mostrem o seu horror, o horror de cada uma delas, e desse modo nunca o conhecer durante toda a vida. Mas também pode viver instalada nele se tiver a má sorte de associar continuamente as ideias certas. Por exemplo, aquela rapariga que vende flores diante da sua casa. Não há nada de terrível nela, por si só não pode infundir terror. Pelo contrário. É até muito atraente. E simpática e amável. Fez festas ao meu cão. Comprei-lhe estes cravos (...). Mas aquela rapariga pode infundir horror. A ideia daquela rapariga associada a outra ideia pode infundir horror. Não acredita? Ainda não sabemos qual é a ideia que falta, a ideia adequada a que isso aconteça. O seu par espantoso. Mas é certo que existe. Há-de haver. É questão de aparecer. Também pode ser que nunca apareça. Poderia ser, sabe-se lá, o meu cão. A rapariga e o meu cão. A rapariga com a sua longa cabeleira castanha e as suas botas altas e as suas compridas pernas compactas e o meu cão sem a pata esquerda (...). Que o cão ande comigo é normal. É necessário. É estranho, se quisermos. Quer dizer, os dois juntos. Mas não há horror nisso. Se o cão andasse com ela seria mais contencioso. Seria talvez horroroso. O cão não tem pata. Se andasse com ela, certamente não a teria perdido numa rixa estúpida depois de um jogo de futebol. Isso é um acaso. Ossos do ofício de um cão de um homem coxo. Mas com ela talvez a tivesse perdido por outra razão. O cão não tem pata. Com mais motivo. Com mais gravidade. Não por acaso. É difícil imaginar aquela rapariga metida numa luta. Talvez a tivesse perdido por causa dela. Para que este cão tivesse perdido a pata pertencendo àquela rapariga, teria talvez de ter sido ela a amputar-lha. Como poderia perder a pata um cão bem protegido, cuidado e querido por uma rapariga tão atraente e simpática que vende flores? Essa ideia é horrível. É horrível a imagem daquela rapariga a cortar a pata ao meu cão com as suas próprias mãos; vendo-o com os próprios olhos; assistindo a tudo.”

Um livro inócuo


Os Irmãos Karamázov


Os livros de Dostoiévski funcionam como um espelho onde leio as minhas perturbações interiores e saio mais esclarecida.
Como já disse várias vezes, depois de ter lido Crime e Castigo tornou-se muito complicado encontrar um livro bom capaz de me satisfazer.  Depois de errar por outros livros, decidi que talvez Os Irmãos Karamázov conseguissem destronar o sortilégio de Raskólnikov.
Reflectindo a mesma preocupação essencial do Crime e Castigo, este romance abdica da ideia de uma redenção final. O conflito trazido pelo nihilismo torna-se aqui mais cru e irreconciliável. Desta feita, nem a religião e o amor salvam as personagens das suas paixões furiosas.
Para mim, Os Irmãos Karamázov lê-se como um policial existencialista magistral. Os primeiros dois tomos colocam-nos em suspense, avisando-nos de um crime que será cometido. Ou foi já cometido? Não tendo conseguido destronar O Crime e Castigo, este livro ajudou de algum modo a clarificar o móbil do crime, isto é, o problema do nihilismo tal como o entendia o escritor russo. Em ambos os romances, as vítimas são usurários, pessoas que aumentam os seus capitais à custa da sua desonestidade para com terceiros.
A afecção principal que dominava Raskólnikov era o orgulho ferido. A fúria de Dimitri Karamázov e a indiferença cultivada de Ivan Karamázov são irmãs desse orgulho maculado por uma injustiça social mascarada sob a ideologia do progresso moderno. Os arrebatamentos maníacos destas personagens testemunham uma época de transição em que as premissas mundo antigo chocam com a modernidade que se estabelece. «Honra», «consciência», «dever» tornam-se meras palavras aristocratas que os modernos deixam de compreender, porque não podem conciliar-se com os objectivos mercantilistas.

Aqui todos acabam destroçados, acossados por febres nervosas e raiva. A vida moderna exige a falência de todos os valores para que nenhum totalitarismo se possa opor a um mercado livre. Acontece que os valores tradicionais, apesar de limitarem a potencialidade individual, asseguravam a comunidade. O sistema capitalista requer a premissa de que tudo é permitido, tendo como efeito colateral uma certa institucionalização do crime que torna todos criminosos, tanto os que alinham como os que desalinham. Num mundo que perdeu o valor da promessa, «a palavra de honra», ninguém se salva. Quem se continua a guiar por tais valores, é tomado por louco ou idiota, vociferando palavras que já ninguém entende.

Gertrud


quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Um bom livro é difícil de encontrar


Como no amor, talvez existam livros que se impõem como paixões maiores, diminuindo a eventualidade de arrebatamentos fátuos.
Tenho lido muito. Quando me deito na cama para descansar os ossos dos múltiplos alugueres quotidianos e ler, é como se o tempo se dilatasse de forma milagrosa. Às vezes, consigo ler um livro inteiro nessa hora. No entanto, jamais pouso numa palavra para voar e adormeço invariavelmente como que envolta numa tristeza pós-coital, não sabendo o que fazer desse novo silêncio que fica após cada livro. Nem sabendo como o nomear: deserto, morte ou paz?
Sinto-me uma leitora insípida, frígida como uma estátua. E é tão difícil viver sem um livro bonito. A vida parece mais absurda e os dias surgem aflitivamente habituais, como se toda a hipótese de uma cumplicidade se tornasse insustentável. Tento entender as razões desta esterilidade. A primeira que me ocorre é culpar o Crime e Castigo de Dostoiévski. O meu livro mais amado. Durante anos temi a sua leitura, dezenas de vezes li o primeiro capítulo e dezenas de vezes desisti, tomada por um mal-estar que passava das letras para a minha pele.
Foi na sequência de um desgosto amoroso que consegui ter força para me confrontar com a revolta de Raskólnikov. Rodion Romanovitch Raskólnikov, ainda hoje não consigo dizer o seu nome sem me deliciar com a sua subtil aspereza. Nunca me senti tão próxima, tão fisicamente solidária com uma personagem como nesse Outono. Com o coração em carne viva, nada importava, porque todas as noites me reunia nos teus braços, Ródia, e era-me impossível não te amar no teu desacordo íntimo com o mundo e orgulho ferido.
- Agora só te tenho a ti – acrescentou Raskólnikóv. – Vamos juntos... Eu vim a ti. Somos ambos malditos, então vamos juntos!
- Vamos aonde – perguntou cheia de medo e, involuntariamente, deu um passo para trás.
- Como posso saber? Só sei, tenho a certeza, que iremos pelo mesmo caminho, e mais nada. Até ao mesmo destino!
Sónia olhava e não percebia nada. Apenas sabia que ele estava muito infeliz, infinitamente infeliz.
- Ninguém, deles, compreenderá nada se lhes falares – continuou Raskólnikov -, e eu compreendi. Preciso de ti, por isso aqui estou.
Nunca mais amei um livro depois do Ródia. O nosso affaire d’amour terminou quando ele partiu e encontrou a redenção. Durante meses, esperei com calma o mesmo destino, julgando que sendo camaradas no nosso desacordo, teríamos forçosamente de seguir juntos pelo mesmo caminho. Mas a redenção não me aconteceu ainda.
E é difícil viver sem um livro bonito. A solidão não encontra aconchego e fica-se refém da melancolia. Temos, portanto, um primeiro diagnóstico, talvez demasiado leviano: a ligação melancólica com um único livro. Segundo Freud, a melancolia caracteriza-se por uma identificação narcísica do objecto perdido com o ego que passa a comandar todos os investimentos da líbido. Ocupado por um luto quase impossível, o melancólico torna-se incapaz para o amor e para o trabalho.
Numa primeira abordagem, o diagnóstico parece válido. Ainda segundo Freud, o melancólico não tem qualquer tipo de vergonha ou pudor, denotando uma propensão extraordinária para a confissão das suas infâmias. Uma parte do ego toma outra parte por objecto, avaliando-a criticamente. Os inúmeros stripteases que tenho feito no meu blog seriam justificados por essa premente tendência a comunicar-me que encontra satisfação apenas no auto-desnudamento. Além disso, o complexo melancólico é indissociável da mania e é bem verdade que durante muito tempo habitei esse pólo, devorando compulsivamente vários livros sem me ligar a nenhum.
Sempre dependi da beleza para viver. E sempre que a encontrei, consumi-a com toda a voracidade que era capaz, sem qualquer tipo de avareza. Nunca contei que me faltasse. Mas falta-me. Talvez tenha abusado das suas doses, apunhalando o meu coração até restar apenas uma ferida aberta. E é difícil sobreviver num país e tempo onde tudo escasseia, sobretudo a beleza. Será este o meu crime e terei de suportar o seu castigo até encontrar a redenção.

Até lá, vou prevaricar com vários livros. Mesmo que tudo me pareça detrito. Porque é preciso escoar o luto que sucede aos grandes amores. E não há nada mais temível que uma mulher de um só livro.

sábado, 14 de setembro de 2013

À espera da primavera

Ainda não sou flor.
Que se cheire ou se leve para casa e se ponha numa jarra junto a uma janela.
Criei já algumas raízes, é verdade, regadas com o sangue do meu coração, à força de tanto o apunhalar com a voracidade de uma beleza maior.
De tal modo que, às vezes, penso que já não tenho coração. E rio e ironizo, como quem perdeu um acessório fora de moda.
Mas não é verdade: embora raramente, ainda me acontece ser acometida por uma comoção imensa numa rua qualquer. Uma comoção que chega sem aviso e ameaça ceifar-me qual caule indefeso.

E então sei e sinto que uma mulher não pode morrer sem primeiro florir.

domingo, 25 de agosto de 2013

"Todo o escritor que se respeita tem um papel purgativo. A vingança que ele deve servir aos convivas não tem de estar fria mas glacial."

Manuel da Silva Ramos

domingo, 18 de agosto de 2013

No fundo, temos todos o mesmo baço.


Falava ontem num jantar de amigos que, desde o Outono de 2011, que sou uma leitora frígida, incapaz de atingir o êxtase. Comparando mais uma vez os homens aos livros, há uns que nos fodem de tal maneira que nos tornamos depois insensíveis a outros toques mais desastrados.

Li recentemente Pais e Filhos de Ivan Turgéniev na esperança de me libertar do sortilégio de Rodion Romanovitch Raskólnikov. Tinha esperanças que o «pai» do nihilismo me libertasse. Mas devo confessar que, embora as boutades de Bazárov me tenham divertido bastante, este não chegou a apossar-se sequer de uma ponta de dedo minha.

Na primeira parte do romance, Bazárov é o nihilista perfeito, não deixando nenhuma ponta da argumentação por rematar.

“A educação? – retrucou Bazárov. – Cada pessoa deve educar-se a si mesma, nem que seja como eu, por exemplo... E quanto ao  tempo, porque hei-de eu depender do tempo? Antes dependa ele de mim. Não, meu caro, tudo isso é desleixo, futilidade! E que são essas relações enigmáticas entre o homem e a mulher? Nós, os fisiologistas, sabemos que relações são essas. Tu estudas a anatomia dos olhos: onde ir buscar aqui, como tu dizes, um olhar enigmático? Tudo isso é romantismo, disparate, literatura. É melhor irmos ver o escaravelho.”

Mas uma argumentação perfeita apenas garante um nihilismo teórico e rapidamente desejamos ver Bazárov a embater com as realidades que despreza para vermos como se safa. E eis que este se apaixona por uma dama (essa sim, uma verdadeira nihilista certificada não apenas pelo pensamento mas pela vida) e descobrimos que afinal Pável Petróvitch (figura aristocrata e romântica que Bazárov tanto despreza) e Evguéni Vassílitch aka Bazárov não são assim tão diferentes. Aliás, as damas fatais de ambos partilham algumas semelhanças.

Confrontado com o seu próprio sistema nervoso alterado, Bazárov regressa ao seu orgulho cínico, desta vez afectado por uma raiva redobrada, pois foi batido. Agora sim, é que nos interessa ver o desempenho da sua teoria.

“ – Já que tu não percebes inteiramente, eu digo-te o seguinte: em minha opinião, mais vale partir pedra na estrada do que permitir que uma mulher se apodere nem que seja da ponta de um dedo. Tudo isto é... – Bazárov esteve quase a dizer a sua palavra favorita, «romantismo», mas conteve-se e disse: - absurdo. Tu agora não acreditas em mim, mas eu digo-te: fomos os dois cair numa sociedade de mulheres e foi agradável para nós; mas abandonar essa sociedade é como tomar um banho frio num dia de calor. Um homem não tem tempo a perder com tais futilidades; um homem deve ser fero, diz um excelente ditado espanhol. Pois tu – acrescentou, voltando-se para o mujique sentado na boleia – tu, sabichão, tens mulher?
O mujique mostrou aos dois amigos a sua cara chata e míope.
- Mulher? Tenho. Como não havia de ter mulher.
- E bates-lhe?
- À mulher? Tudo pode acontecer. Sem motivo não se lhe bate.
- Muito bem. E ela, bate-te a ti?
O mujique puxou as rédeas.
- As coisas que tu dizes, senhor. Estás sempre a brincar... – Pelos vistos ofendeu-se.
- Estás a ouvir, Arkádi Nikoláevitch? E a nós os dois espancaram-nos... é no que dá sermos pessoas instruídas.”

E Bazárov safa-se exemplarmente. Curiosamente ou não, será pela ponta desse dedo que tanto recusa ceder à posse de uma mulher, que o tifo entrará para o levar à morte. Porque os nihilistas morrem de fisiologia apenas.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Snapshots de São Petersburgo


"Não há nada melhor do que a Avenida Névski, pelo menos em Petersburgo; ela é tudo para esta cidade."

Na Avenida Névski, dois amigos, um jovem pintor e um jovem oficial, partem cada um atrás de uma mulher. O pintor morrerrá tragicamente, incapaz de obter um acordo entre sonho e realidade. A aventura do outro terminará na pastelaria com dois pastéis de massa folhada, depois de ter sido espancado por três artífices alemães.

"É tudo engano, é tudo sonho, nada é o que parece! Acham que aquele senhor que se passeia com uma sobrecasaca de corte excelente é muito rico? Nada disso, todo ele se resume à sua sobrecasaca."

Também o assessor de colégio Kovaliov se resume ao seu nariz. Nariz esse que uma manhã resolve ausentar-se do rosto deste, disfarçar-se de funcionário do Estado e tentar passar a fronteira. Será uma carga de trabalhos para o fazer regressar ao seu lugar. Porque nesta cidade nada parece ocupar o seu lugar, com os objectos a ocuparem o lugar do humano.

"Mente a qualquer hora, esta Avenida Névski, mas sobretudo quando, com todo o seu corpo espesso, a noite desce sobre ela e realça as fachadas brancas e cor de palha, e toda a cidade se transforma em estrondo e brilho, e miríades de coches se desmoronam das pontes, e os boleeiros gritam e sobressalteiam nos cavalos, e o próprio demónio acende os lampiões apenas para mostrar tudo na sua forma ilusória."

Um demónio que se manifesta nos terríveis olhos do Retrato, e que corrompe o talento de um jovem pintor, com o dinheiro, a fama e a alta-sociedade. E depois há o homem que copiava, que nunca ninguém chega a ver para além do seu capote, um fantasma. Tantas infâmias: não admira que um tipo qualquer enlouqueça, comece a interceptar correspondência entre cadelas burguesas e decida reclamar o trono de Espanha...

"Salvaguarda a pureza da tua alma. Quem transporta o talento em si tem de ser o de alma mais pura. A outro qualquer será perdoada muita coisa, mas para ele não haverá perdão."

segunda-feira, 29 de julho de 2013

um livro do caralho, já se sabia

"e eu que sopro e envolvo teu corpo tremulamente intacto com meu corpo de bode coroado
fedendo a testosterona e sangue,
num mundo de aromas e de orvalho,
farejo-te,
mordo-te a nuca, lambo,
e faminto me meto por ti adentro,
rebento os selos,
marco-te a fogo,
levíssima visita à minha sêca luz e arrebatada fome,
e se brotas em tua donzelia e és ao modo de festejo,
e de minha bruteza te encurvas tanto que te sussurro um poema de louvação e embalo,
tão soluto e agudo e soberano,
algures, quando
a água quebre e os verbos soberbos cantem,
e tudo se desfaça,
e refaça,
não como soía,
mas com um assombro novo:
faz-se-me tarde para o poema das frutas que de macias se fendem e fundem nas gengivas,
e no ímpeto da luz rasgada em baixo,
cômo-te antes que morra:
e eu sei quanto depressa morro"

Herberto Helder, Servidões

No fundo da garrafa, a liberdade.

"Os castanheiros inclinavam-se e erguiam-se com um sussurro enlouquecido. O vento secava as lágrimas de Hélène e fazia-lhe arder os olhos; parecia atravessar-lhe a cabeça, mais calma e leve, e aquecia-lhe o sangue. Tirou o chapéu, fê-lo girar entre as mãos, deitou a cabeça para trás e, de repente, com inexprimível assombro, percebeu que estava a sorrir, que esticava devagarinho os lábios para reter e saborear a rajada sibilante que passava.

«Não tenho medo da vida», pensava. «Foram anos de aprendizagem. Foram extraordinariamente duros, mas temperaram a minha coragem e o meu orgulho. Isso é meu, é a minha inalienável riqueza. Estou só, mas a minha solidão é ávida e inebriante.»

Irène Némirovski, O Vinho da Solidão

domingo, 28 de julho de 2013

segunda-feira, 15 de julho de 2013


 «Nem todos os livros são tão insípidos como os seus leitores. É provável que haja palavras endereçadas exactamente à nossa condição, as quais, se de facto pudéssemos ouvi-las e entendê-las, seriam mais salutares às nossas vidas que a própria manhã ou a Primavera, revelando-nos talvez uma face inédita das coisas.
Quantos homens não inauguraram uma nova etapa na vida a partir da leitura de um livro! Deve existir para nós o livro capaz de explicar os nossos mistérios e de revelar outros insuspeitados. As coisas que ora nos parecem inexprimíveis, podemos encontrá-las expressas algures.
As mesmas questões que nos inquietam, intrigam e confundem, foram postas por sua vez a todos os homens sábios; nenhuma foi omitida, e cada um deles respondeu de acordo com a sua capacidade, por meio de palavras ou da própria vida. De mais a mais, juntamente com a sabedoria aprendemos a liberalidade.»

Henry David Thoreau, "Walden ou a Vida Nos Bosques"

um bom livro é difícil de encontrar

 
Tenho lido muito. Depois de toda a espécie de alugueres quotidianos, parece que o tempo milagrosamente se dilata quando ao fim do dia me deito na cama para descansar os ossos e ler.
 
Tenho lido muito sem ser arrebatada. Depois de O Crime e o Castigo parece que mais nada me satisfaz. Como no amor, talvez existam livros que se distingam como maiores, diminuindo a possibilidade das paixões fátuas.
 
Foi o caso do primeiro livro de Ana Teresa Pereira, Até que a Morte nos Separe. Gosto da maneira como ela escreve, como doseia o enredo e da atmosfera noir que envolve toda a narrativa. Não está nenhuma peça fora do sítio mas também não está lá aquele suplemento de grande beleza. Terminada a leitura, fica uma grande vontade de dividir as minhas noites entre livros e filmes. Já comecei a sacar o They live by night. É preciso continuar a tentar ultrapassar o rasto de melancolia que os grandes amores deixam.
 
Sempre gostei de histórias de solidão. Há algum tempo (muito tempo?) passava tardes inteiras num cinema de sessões contínuas, vendo filmes do Nicholas Ray: On dangerous ground (ele trazia-me o mundo lá fora, as mãos cheias de flores, um ramo de árvore), In a lonely place (a mais bela frase do cinema, "I was born when he kissed me, I died when he left me, I lived a few weeks while he loved me"). Não conhecia o amor. Ouvira dizer que existia, mas não tinha bem a certeza. E no entanto pressentia que só podia vir assim, quando a solidão era desmedida, e que depois nos deixava sozinhos de novo.
 

quarta-feira, 10 de julho de 2013

iluminações profanas



“Agora é como se alguma coisa me levasse pela mão (…). É como se nos indicassem as palavras foneticamente. Aqui há ligação automática. Há coisas que tomam a palavra sem pedir autorização para isso. E isso vai até às mais altas esferas. Há uma senha silenciosa, com a qual certas coisas agora atravessam o portão.” 

“Para nos aproximarmos dos mistérios de felicidade no êxtase teríamos de reflectir sobre o fio de Ariadne. Que prazer no simples acto de desenrolar um novelo! Um prazer que tem afinidades profundas, quer com o do êxtase, quer com o da criação. Avançamos, mas, ao avançar, não só descobrimos os meandros da caverna em que nos aventurámos, como também desfrutamos dessa felicidade do descobridor apenas através daquela outra que consiste em desenrolar um novelo. Essa certeza que nos é dada pelo novelo engenhosamente enrolado que nós desenrolamos não será essa a felicidade de toda a produtividade, pelo menos daquela que tem forma de prosa? E no haxixe somos seres de prosa e de prazer da mais alta potência.”

terça-feira, 2 de julho de 2013

uma mulher perdida


A prosa de Willa Cather é fluída e delicada. Uma Mulher Perdida versa sobre a passagem da época dos sólidos pioneiros para a era líquida dos afectos capitalistas. Não comungo, infelizmente, desta nostalgia.

"Naquela noite, Mrs. Forrester começou com «em tempos que já lá vão». (...) Contou-lhes que o capitão Forrester, à época viúvo, tinha viajado até ao acampamento para visitar o sócio do pai dela. Marian quase não deu por ele - saía todos os dias a passear com os rapazes. Certa tarde, convenceu o jovem Fred Harney, uma montanhista intrépido, a descer com ela a Escarpa da Águia. Já quase tinham chegado ao fundo e avançavam cautelosamente sobre uma laje rochosa saliente quando a corda se rompeu e caíram os dois desamparados. Harney tombou sobre uns penedos e teve morte instantânea. A rapariga enredou-se num pinheiro que lhe amorteceu a queda. Fracturou as pernas e ficou estendida toda a noite no fundo do desfiladeiro, sob o frio intenso, fustigada pela ventania gélida que ali soprava. (…) Foi o grupo do capitão Forrester que encontrou Marian e que a transportou através do carreiro inferior. O trilho era tão íngreme e estreito, com curvas tão apertadas em volta das saliências rochosas, que era impossível transportá-la numa padiola. Os homens revezavam-se a carregá-la às costas, com os ombros a roçar nas paredes do desfiladeiro enquanto avançavam cautelosamente. Com as pernas fracturadas a baloiçar, suspensas, ela sofria horrivelmente, e desmaiou uma e outra vez. Porém, deu-se conta de que sofria menos quando era o capitão Forrester a carrega-la e de que ele o fez em todos os troços mais perigosos do trilho. – Eu sentia o coração dele a bater e os músculos a retesarem-se – disse – quando ele se equilibrava sobre os penedos, comigo às costas. Eu sabia que, se caíssemos, cairíamos os dois juntos, porque ele nunca me soltaria.
Regressaram ao acampamento e fizeram todos os possíveis para a tratar, mas, quando um cirurgião finalmente chegou de São Francisco, as fracturas já tinham começado a cicatrizar e foi necessário partir-lhe os ossos de novo.
- Era o capitão Forrester que eu queria que me desse a mão cada vez que o cirurgião tinha de me fazer coisas. Lembras-te, Niel, ele contava sempre, cheio de orgulho, que eu não gritei uma só vez quando eles me carregavam por aquele trilho acima. Ele ficou no acampamento até eu ser capaz de dar os primeiros passos, apoiada no braço dele. Quando me pediu em casamento, não teve de pedir duas vezes. Espanta-vos? – Percorreu o círculo de rostos com um olhar sorridente e, num gesto alheado, passou as pontas dos dedos pela testa, como que para afugentar qualquer coisa – o passado, o presente, quem sabe…

(…) No fim de contas, ela não tinha mudado assim tanto desde então. Niel sentiu naquela noite que, apesar do tempo já decorrido, o homem certo ainda a poderia salvar. Ela conservava ainda a sua natureza indomável, qual actriz a representar o papel de sempre – mas no teatro, para a ouvr, só restavam os maquinistas de cena e os ajudantes. Todos quanto tinham partilhado belos feitos e ocasiões esplêndidas já não se encontravam ali.”


domingo, 30 de junho de 2013

Guia de Amor para Infiéis


“Não sou má pessoa. Eu sei que isto soa defensivo, pouco escrupuloso, mas é verdade. Sou como toda a gente: fraco, cheio de falhas, mas basicamente bom. A Magdalena, porém, não tem a mesma opinião. Acha que eu sou um dominicano típico: um sucio, um cabrão.”

“Levas o máximo tempo que podes a desligar o carro. Sentes-te esmagado por uma tristeza pelágica. Tristeza por teres sido apanhado e pela incontroversa certeza de que ela jamais te perdoará. Olhas para as suas pernas incríveis e para o seu entrepernas, para essa ainda mais incrível pópola que amaste de forma tão inconstante nos últimos oito meses. Só quando ela avança furiosa na tua direcção é que tu sais finalmente do carro. Atravessas descontraidamente o relvado, propulsionado pelo derradeiro gás da tua revoltante sinvergüenceria. Hey, muñeca, dizes, prevaricando até ao fim. […] Em vez de baixares a cabeça e aguentares como um homem, pegas no diário com a ponta dos dedos, como se fosse uma fralda de bebé recém-cagada, como se fosse um preservativo recém-usado. Passas os olhos pelos excertos acusadores. Depois olhas para ela e sorris um sorriso que o teu rosto hipócrita irá recordar até ao fim dos teus dias. Querida, dizes, isto é apenas um capítulo do meu romance.
É assim que a perdes.”

“A nossa relação não era para ser nada de sério. Não nos vejo casados ou algo do género, e tu acenaste com a cabeça e disseste que compreendias. Depois fodemos, para podermos fingir que nada de doloroso se tinha passado. Devia ser talvez a quinta vez que estávamos juntos e depois de pores um vestido preto e justo e calçares as sandálias mexicanas, disseste-me que podia telefonar-te quando quisesse, mas que tu nunca me telefonarias. Tu é que tens de decidir onde e quando, disseste. Se ficasse ao meu critério, disseste, ia querer ver-te todos os dias. […] Tu não queres desistir, mas também não queres sair disto magoada. Não estamos no melhor dos barcos, mas que queres que te diga? […] És a única pessoa que conheço que consegue passar tanto tempo como eu numa livraria. Uma espertinha: algo que não se encontra facilmente.”

“E porque o amor, o verdadeiro amor, não é coisa que se esqueça facilmente. […] A princípio, fazes de conta que não te importas. Seja como for, tens muitas razões de queixa em relação a ela. Tens sim! Não sabia fazer broches, tinha na cara uma penugem detestável, nunca rapava os pelos púbicos, não limpava o apartamento, etc. […] Tão depressa estás a ponto de te meter no carro para ir a casa dela, como logo no minuto seguinte estás a telefonar a uma sucia e a dizer-lhe: És a mulher dos meus sonhos.”

“E, por fim, quando te julgas capaz de o fazer sem te desintegrares numa combustão de átomos, abres uma pasta que mantiveste escondida sob a cama. O Livro do Juízo Final. Cópias de todos os e-mails e fotos dos teus tempos de infiel, aquelas que a ex descobriu e compilou e te enviou por correio um mês depois do fim. Querido Yunior, material para o teu próximo livro. Deve ter sido a última vez que ela escreveu o teu nome.
Lês aquilo tudo da capa à contracapa (sim, ela mandou encapar). Com surpresa, verificas que és um cobarde e um cagarolas do caralho. Custa admitir, mas é um facto.”


É assim que a perdes de Junot Díaz. Vale muito a pena ler: pelo tom coloquial e honesto até ao osso como narra a masculinidade. Um homem está obrigado a ser um homem: aí começa a genealogia dos cabrões. É bom conhecer-lhes os corações frágeis, obrigados à dureza, raramente expostos.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

O Jogo Sério ou a pantomina do amor


O Doutor Glas deixou-me muito curiosa sobre a obra de Hjalmar Söderberg, pelo que fiquei muito alegre quando soube na Feira do Livro que a Relógio d’Água tinha acabado de publicar outro livro do autor. O Jogo Sério é, nas palavras de Henning Mankel, “uma história de amor que não envelhece. Mantém-se tocante, evocativa e vívida”. A história de Arvid e Lydia insere-se numa tradição comum daquilo que se chama a novela do adultério. Mas mais uma vez, temos de olhar para além das aparências em Söderberg. Ao contrário de Madame Bovary ou Anna Karenina, aqui ninguém morre por amor. A visão deste amor extraconjugal – o mais apto à codificação romântico porque externo ao contrato racional do casamento – não conserva qualquer vestígio de tragédia.

Arvid e Lydia nunca se comprometem de facto um com o outro. O jogo sério que ambos jogam é o da pantomina do amor, nenhum representando de forma exemplar. Tudo é banal e todos enganam todos. “Enquanto se beijavam, ele pensou: isto é apenas um gesto de cortesia exigido pela situação.” Quando a mulher de Arvid lhe pergunta se ele ouviu dizer alguma coisa, é impossível não suspeitar dela também. Tem razão a figura do escritor Rissler quando afirma que uma personagem construída a partir de Lydia é artificial. Neste jogo sério todos são artificiais, embora insistam em mimetizar o humano.

Hjalmar Söderberg é talvez um autor que, à falta de um melhor termo, se poderia chamar pós-moderno. Não na forma obviamente, pois a sua prosa conserva a elegância e coerência narrativa do século XIX, mas na solução pós-romântica que as suas histórias encontram. O Jogo Sério e O Doutor Glas partilham o mesmo problema moral. A razão moderna fez da moral uma forma opaca que paradoxalmente se opõe à concretização desse mesmo projecto racionalista. Morto Deus, tudo se torna inevitavelmente permitido. Disso se dava conta Dostoievski através de Raskolnikov e do seu crime, embora o seu espírito ainda fosse refém de uma certa beatitude sagrada que impunha o castigo e a redenção. 

Em O Doutor Glas, Söderberg repete a questão da relação entre ateísmo e crime, tendo a coragem necessária de afastar a assombração divina da equação. O que resulta num problema ainda mais bicudo: eliminada a autoridade da lei e a sua concomitante produção de culpa, os modernos estão entregues a um tédio sem resolução. A moral torna-se um termo formal, cuja maioria reconhece na sua arbitrariedade, e a vida parece não encontrar outro destino para além da bestialidade infeliz. A primeira coisa que fizera ao mudar-se para aquele quarto fora tirar todas as horrendas pinturas da senhoria. Não tinha nenhumas com que as substituir; enquanto as retirava, ocorrera-lhe, com um sorriso, quão típica era esta atitude – nada mais fácil do que deitar abaixo as coisas, mas voltar a levantá-las era outra história.”

Crime e amor são reversos do mesmo problema íntimo de uma subjectividade que ao perder o Outro fica encerrada numa solidão sem recursos. O que me recorda recentes palavras de alguém: “tu jogas bem sem bola”. É fácil para quem fez do amor uma aposta e perdeu.

“Ela deve estar agora a percorrer Djurgarden para ir ao encontro dele. O Sol brilha. Ela pára numa curva do caminho e diz-lhe, de olhos baixos sob as longas pestanas: «Há uns dias encontrei um homem que amei em tempos. Não compreendo como é que alguma vez o pude ter amado.»

…E o comboio continuou a rolar…”