quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Outono Transfigurado


Estranhos são os caminhos outonais que fazem regressar os corpos à procissão dos dias.

Outubro, mês de véus e mistérios.


Há um corpo aquecido pela celebração estival que regressa em passos silenciosos pela floresta opaca. Um corpo anónimo, forasteiro, com um rosto de prata oferecido sem pudor ao vento frio que o acompanha. Nos bolsos, esconde as mãos ainda ardidas pela recordação do amor, esse astro grave.

As aves levantam voo das suas moradas lunares á sua passagem. Temem que traga presságios malignos. Não podemos censurar as aves – não conhecem o silêncio de um coração humano em paz.


O verde nocturno abre-se e eis a cidade de pedra e as luzes eléctricas que a alumiam fracamente. Os passos tornam-se hesitantes: recordam as dores fundas que fundaram o ser.

No centro da cidade há uma praça. Nela uma estátua de olhos fechados com o dedo indicador nos lábios, convida ao silêncio os viajantes tardios. O corpo passa sem a olhar, apressado por escapar á ordem do esquecimento. Aperta mais as mãos dentro dos bolsos, não quer deixar escapar a liquidez que o acompanha.


Vagueia pela noite eléctrica, pisando as folhas amarelecidas nos passeios públicos, enquanto recicla a vontade de amar. Antes do dia nascer, entra numa igreja, concentra-se no som dos seus tacões a ecoar pelas paredes seculares e recorda o mistério do sagrado.

Quando sai, o sol forte já transformou a cidade de pedra numa cidade viva. As ruas estão apinhadas de pessoas, cheias de vendedores de vegetais, frutas e peixe. Os carros e as motas buzinam de alegria. O corpo perde o anonimato e transforma-se num rosto feliz por ter vencido a noite inumana.


Para celebrar o seu regresso, decide comprar castanhas assadas na próxima esquina. Observa o rosto fuliginoso da vendedora idosa e as suas mãos gigantes. Depois vai avenida abaixo, saboreando as castanhas solenemente. Quando termina, as suas mãos regressam aos bolsos do sobretudo. Contentes, apaziguadas e ainda quentes.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

MÁRIO CESARINY



PASTELARIA

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmera escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo:
fechar os olhos frente ao precipícioe cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã à bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter med0
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente: Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saida da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny in " nobilíssima visão "


OS PÁSSAROS DE LONDRES

Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio
fosse o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam de esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo
fora o linho mais bordado
ou em casas como aquela
onde Rimbaud comeu
e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada
os pássaros de Londres
quando termina o dia
e o sol consegue um pouco
abraçar a cidade
à luz razante e forte
que dura dois minutos
nas árvores que surgem
subitamente imensas
no ouro verde e negro
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cínzeo
algum claro limite
os pássaros de Londres
cumprem o seu dever
de cidadãos britânicos
que nunca nunca viram
os céus mediterrânicos.

Mário Cesariny, in "Poemas de Londres"

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Grande Bukowski


From my bed
I watch
3 birds
on a telephone
wire.
one flies off.
then
another.
one is left,
then
it too
is gone.
my typewriter is tombstone still.
and I am
reduced to birdwatching.
just thought I'd
let you know,
fucker.

Charles Bukowski

Afinal este homem era grande, tenho de admitir.