sexta-feira, 29 de março de 2013

Desenamoramentos



Acaba ali a terra 
Nos derradeiros rochedos, 
A deserta árida serra 
Por entre os negros penedos 
Só deixa viver mesquinho 
Triste pinheiro maninho. 
E os ventos despregados 
Sopram rijos na rama, 
E os céus turvos, anuviados, 
Tudo ali era braveza 
De selvagem natureza.
Aí, na quebra do monte, 
Entre uns juncos mal medrados, 
Seco o rio, seca a fonte, 
Ervas e matos queimados, 
Aí nessa bruta serra, 
Aí foi um céu na terra.
Ali sós no mundo, sós, 
Santo Deus! Como vivemos! 
Como éramos tudo nós 
E de nada mais soubemos! 
Como nos folgava a vida 
De tudo o mais esquecida!
Que longos beijos sem fim, 
Que falar dos olhos mudo! 
Como ela vivia em mim. 
Como eu tinha nela tudo, 
Minha alma em sua razão, 
Meu sangue em seu coração!
Os anjos aqueles dias 
Contaram na eternidade: 
Que essas horas fugidias. 
Séculos na intensidade, 
Por milénios marca Deus 
Quando as dá aos que são seus.
Ai! sim foi a tragos largos, 
Longos, fundos, que a bebi 
Do prazer a taça: – amargos 
Depois... depois os senti 
Os travos que ela deixou... 
Mas como eu ninguém gozou.
Ninguém: que é preciso amar 
Como eu amei – ser amado 
Como eu fui; dar, e tomar 
Do outro ser a quem se há dado, 
Toda a razão, toda a vida 
Que em nós se anula perdida.
Ai, ai! que pesados anos 
Tardios depois vieram! 
Oh, que fatais desenganos, 
Ramo a ramo a desfizeram 
A minha choça na serra, 
Lá onde se acaba a terra!
Se o visse... não quero vê-lo 
Aquele sítio encantado; 
Claro estou não conhecê-lo, 
Tão outro estará mudado. 
Mudado como eu, como ela, 
Que a vejo sem conhecê-la!
Inda ali acaba a terra, 
Mas já o céu não começa; 
Que aquela visão da serra 
Sumiu-se na treva espessa, 
E deixou nua a bruteza 
Dessa agreste natureza.

Almeida Garrett, Cascais

domingo, 24 de março de 2013

Um poema curto

Foi um fim de semana curioso.
Sábado sai de casa para andar junto ao rio
e acabei na Boca do Inferno.
Domingo fui ouvir poesia ao CCB.
Prefiro a Boca do Inferno.
Se queres continuar a amar a poesia,
afasta-te dos poetas.

Nada se perde, tudo faz pele

"Um homem de génio, melancólico, misantropo, e querendo vingar-se da injustiça do seu século, lança um dia fogo a todas as suas obras ainda manuscritas. E, tendo sido censurado por este terrível holocausto à raiva, que, de resto era o sacrifício de todas as suas próprias esperanças, respondeu: «O que importa? O importante era que todas essas coisas fossem criadas; elas foram criadas, logo existem.» Atribuía a toda a coisa criada um carácter indestrutível. Como essa ideia se aplica com maior evidência ainda, a todos os nossos pensamentos, a todas as nossas acções, boas ou más! E se existe nessa crença algo de infinitamente consolador, no caso de o nosso espírito se voltar para essa parte de nós mesmos que podemos considerar com condescendência, não existirá também algo de infinitamente terrível, no caso futuro, inevitável, em que o nosso espírito se voltar para essa parte de nós mesmos que só com horror podemos enfrentar? No espiritual, tal como no material, nada se perde. Do mesmo modo como toda a acção, lançada no turbilhão da acção universal, é em si irrevogável e irreparável, abstraindo dos seus resultados possíveis, também todo o pensamento é indelével. O palimpsesto da memória é indestrutível."

Charles Baudelaire, Os Paraísos Artificiais

sábado, 16 de março de 2013

Leituras Tristes em Tempos Tranquilos



“Rufa o tambor: tan-tarantan-tan; despejam-se no pátio presos acorrentados e não acorrentados, e Serguiêi, e Fiona, e Sónietka, e Catierina Lvovna, e um raskólnik acorrentado a um jid, e um polonês na mesma corrente que um tártaro.
Todos se amontoaram, depois se emparelharam de qualquer jeito e partiram.
O mais desolador dos quadros: um punhado de pessoas, arrancadas do mundo e privadas de qualquer sombra de esperança em um futuro melhor, afunda na lama negra e fria de uma estrada de terra batida. Tudo ao redor é de uma feiura que chega ao horror: uma lama sem fim, um céu cinzento, salgueiros desfolhados e molhados, e em seus galhos abertos uma gralha cinzenta eriçando as penas. O vento ora geme, ora se enfurece, ora uiva e brame.
Nesses sons infernais, que dilaceram a alma e completam o horror do quadro, ecoam os conselhos da mulher do Jó bíblico: “Amaldiçoa o dia do teu nascimento e morre”.
Aquele que não quer dar ouvidos a semelhantes palavras, que não acalenta a ideia da morte nem mesmo nessa situação deplorável, mas a teme, esse precisa tentar abafar essas vozes ululantes com algo ainda mais horrendo que elas. Isso o homem simples compreende perfeitamente: então ele dá asas a toda a sua simplicidade animal, começa a fazer bobagens, a zombar de si mesmo, das pessoas, dos sentimentos. Já sem ser especialmente delicado, torna-se excepcionalmente mau.”

domingo, 10 de março de 2013

Ser-a-três



“Deito-me junto a ela, a seu corpo impenetrável. Reconheço seu cheiro. Acaricio-a sem olhá-la.
- Ai, você está me machucando!
Continuo. No tocar reconheço as ondulações de um corpo de mulher. Desenho flores em cima. Ela não se queixa mais. Não se mexe mais, lembra-se provavelmente de que está com o amante de Tatiana Karl.
Mas de repente ela duvida enfim dessa identidade, a única que ela reconhece, a única que sempre alegou pelo menos durante o tempo em que a conheci. Ela diz:
- Quem é?
Geme, pede-me que o diga. Digo:
- Tatiana Karl, por exemplo.

Extenuado, quase sem forças, peço-lhe que me ajude:
Ela me ajuda. Ela sabia. Quem fora antes de mim? Nunca saberei. Pouco se me dá.
Depois, aos gritos, ela insultou, suplicou, implorou que a pegasse e a largasse ao mesmo tempo, acossada, procurando fugir do quarto, da cama, voltando para fazer-se capturar, sabida, e não houve mais diferença entre ela e Tatiana Karl, excepto em seus olhos isentos de remorso e na designação que fazia de si mesma – Tatiana, quanto a ela, não se designa pelo nome -, e nos dois nomes que ela se dava: Tatiana Karl e Lol V. Stein.”