segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Tonio Kröger


Um grande livro. Gosto do estilo certeiro e mental de Thomas Mann.
Entre o narrador e a personagem principal não há quase distância, o que nos permite assistir à construção mental pelo artista pelo próprio. Sim, porque Tonio tornar-se-á um grande escritor. A personagem tem também muito do autor, na medida em que uma dúvida quanto à sua identidade perpassa todo o texto.

Conhecemos Tonio, adolescente, torturado pelo sentimento de exclusão e apaixonado por Hans, amando nele o seu próprio reverso: um rapaz belo, forte e vivo.

(Seremos capazes de amar para além do nosso reflexo? Conseguiremos escapar à nossa imagem? O outro deve validar a nossa identidade ou introduzir uma diferença?)
«O facto era que Tonio amava Hans Hansen e já muito por ele tinha sofrido. Aquele que ama mais fica sempre em situação de inferioridade e tem de sofrer – a sua alma de adolescente já tinha aprendido da vida esta verdade simples e dura; e Tonio era do género de prestar atenção a estes ensinamentos, de os anotar, por assim dizer, no seu interior, e de em certa medida retirar deles alguma alegria, sem que isso o levasse a alterar o seu comportamento e sem que deles tirasse algum benefício prático».
(Também eu, caro Tonio, anoto na minha carne as verdades que vou extraindo aos dias, sem que essas máximas inteligentes me façam viver melhor.)

Um par de anos depois, encontramos Tonio apaixonado pela loura e divertida Ingeborn, mas o seu coração já tinha aprendido que o amor pode morrer sem nos matar.

«Fidelidade! pensava Tonio Kröger. Quero ser fiel e amar-te, Ingeborn, enquanto viver. Tão bem intencionado que ele era. E no entanto cochichavam baixinho dentro dele um medo e uma tristeza, por ter afinal esquecido completamente Hans Hansen, apesar de o ver diariamente.
(…)
E rodava cuidadosamente à volta do altar, onde a pura e casta chama do amor ardia, ajoelhava-se em frente, ateava-a e aproximava-se de todos os modos, porque queria manter-se fiel. Mas passado algum tempo, sem se notar, sem causar sensação e sem ruído, estava no entanto apagada.
Tonio Kröger manteve-se algum tempo diante do altar, arrefecido, cheio de espanto e desilusão, por ter descoberto que a fidelidade era impossível no mundo. Depois encolheu os ombros e seguiu o seu caminho».

(Que triste lição, Tonio. É então, acredito eu, que iniciamos a nossa queda e deixamos de ser bem-intencionados: já que não pudemos morrer de amor, resta-nos sobreviver aos dias.)

E tornou-se um grande artista. Vivendo mal, vivendo da literatura e da poesia. Transformando o seu sentimento arcaico de exclusão no desprezo pelos outros, como vingança, na certeza do génio e na figura do escritor atormentado e afastado da vida.

«Ele trabalhava em silêncio, fechado, invisível e cheio de desprezo para com os pequenos artistas para quem o talento era um adorno social, aqueles que, fossem pobres ou ricos, andavam sujos e esfarrapados ou que praticavam o luxo com as suas gravatas fora do normal, se preocupavam principalmente em viver felizes, amados e artisticamente, ignorando que as grandes obras só surgem sob a pressão de uma vida dura, que aquele que vive não trabalha e que é necessário estar morto para se ser de facto um criador.»


(Neste ponto, estimado Tonio, sou obrigada a discordar consigo. A vida e a arte não precisam andar divorciadas. Para além da óbvia afirmação de que é possível transformar a vida numa obra de arte, acredito fervorosamente que é preciso viver intensamente para criar uma obra de arte enérgica e genuína e que o artista solitário rodeado de fantasmas é uma figura romântica que pouco serve a nossa época. É preciso viver, a arte não pode desistir da vida. A arte não pode servir o ressentimento contra a vida e a alegria. Nela colocamos a nossa humanidade e esperança.)

Tonio está ,de facto, morto, trabalhando para os seus fantasmas, Hans e Inge, afastado do doce e trivial compasso ternário da valsa da vida. Torturado por não pertencer nem à Arte nem à Vida. Dentro do desencontro.

«Mas o meu mais profundo e mais secreto amor pertence aos loiros de olhos azuis, a esses seres límpidos e vivos, felizes, que são amados, que são normais.
Não troce deste amor, Lisaveta; ele é bom e fecundo. É feito de nostalgia, de uma inveja melancólica, de um bocadinho de desprezo, de uma felicidade muito casta.»

(Não troço, Tonio. Na verdade, estou consigo, camarada. Embora isto não ajude, bem o sei. Entre os marginais, não poderá nunca haver um sentimento de classe. Mas antes do naufrágio, contemplemos as margens. A rir de preferência.)

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