domingo, 23 de janeiro de 2011

TRINTA ANOS - INGEBORG BACHMANN



Um homem entra na casa dos trinta. Um Junho chuvoso. «Lança a rede-recordação, lança-a sobre si próprio e apanha-se a si mesmo, captor e presa simultaneamente, sobre o limiar do tempo, o limiar do espaço, para ver quem ele foi e em quem ele se tornou.» Até aqui viveu sem mal, sem definição. Sem reflexão, sem medo. «Agora sabe que também ele caiu na armadilha.»


Junho: Calor. O desassossego apodera-se dele. Tem de partir, deixar o seu passado. Tem de ser livre e abandonar tudo. Vai para Roma, separar-se das pessoas e não se juntar a outros. Já não pode viver entre os homens. «Quando se permanece durante bastante tempo num local, acaba-se por tomar muitas formas, por deixar-se ir pelo que se diz e tem-se cada vez menos direito à sua própria pessoa. Por isso ele quer, a partir de agora e para sempre, mostrar-se sob a sua própria forma.»
Em Roma, não consegue libertar-se, começar tudo de novo. Este ano começa mal. A traição do amigo. O reencontro com um amor antigo e percebe que a cólera dela na altura da separação foi fingida, que ele se sentiu culpado porque ela o tinha simplesmente deixado acreditar nisso. «Baixinho e energicamente, ele expele a culpa como o ar que expira, e pensa: fui mal aconselhado no meu desespero. Mas estou a ser ainda mais mal aconselhado pela minha lucidez. Tenho frio. Preferia ter conservado a minha culpabilidade.
A destruição está em marcha. Poderei vir a falar em felicidade, se este ano não me matar.»


Agosto: a coação para agir rapidamente, para viver depressa. Ama um bilião de mulheres, todas ao mesmo tempo, sem as diferenciar.

Setembro: «Quem sou eu, então, neste Setembro dourado, se de mim arrancar tudo o que de mim fizeram?
(…)
Se eu não tivesse mergulhado nos livros, em histórias e lendas, nos jornais, em notícias, se tudo o que é comunicável não tivesse crescido dentro de mim, eu seria um nada, uma junção de acontecimentos incompreendidos.
(…)
Não mereço o facto de ver, de ouvir, mas os meus sentimentos, esses mereço-os verdadeiramente, essas garças por sobre brancas praias, esses viajantes da noite, vagabundos famintos que levam o meu coração para a estrada.»


Ser-se humano: saber guardar as distâncias. Sono. A cabeça nas almofadas. O Outono das últimas rosas: o tempo já não lhe parece precioso, utilizável. Gastas as noites em paixões efémeras. Há avareza de luz, mesmo os dias claros se vestem de cinzento. Ganha hábitos e vê com agrado esse seu processo de petrificação. Deixa de ver os amigos. Desliga o telefone. Sente-se bem sozinho e torna-se mais simples de dia para dia.

O Inverno: gelado e húmido. No momento em que se sentia tranquilo e feliz, depois de ter passado por todas as experiências possíveis e imaginárias, chega o amor inacreditável. Deixa de ser senhor de si próprio e a sua carne arrasta-o para o inferno. O amor torna-se a vingança sobre tudo o que há de suportável sobre a terra. Porque o amor é insuportável.
«Amava. Estava liberto de tudo, de toda a individualidade, pensamento ou objectivo, naquela catástrofe em que não existia o bem nem o mal, a justiça ou a injustiça, e estava certo de que não havia nenhuma saída digna desse nome para aquela situação.»
Faz as malas pois compreende que mesmo a primeira hora daquele amor foi excessivamente. Gasta as últimas forças nessa fuga.
Mas não vai longe. Tudo se desmorona com a partida. Fica sem dinheiro. Dorme ao relento. Sente que o fim se aproxima. Pela primeira vez quase escreve a verdade e pede dinheiro ao seu pai. Sente-se mal porque tem quase trinta anos e sempre se desenvencilhou sozinho. O dinheiro chega rápido. Volta para Viena – mas sem ousar pronunciar «para casa». reencontra amigos: para trás, ou ainda mato alguém! Mantenham as distâncias!


Torna a fazer as malas à pressa. No comboio, um companheiro de viagem fala sobre quantos por cento de loucos se tomam por Napoleão, quantos pelo último Kaiser, por Lindberg, Hitler ou Ghandi. Isto desperta-lhe um certo interesse e pergunta então se uma pessoa se poderia tomar por si própria sem danos de maior e se isso não seria também uma forma de loucura.
Pensa em desaparecer sem deixar rasto. Ou ir-se embora com ela, cujo nome ele nunca ousa pronunciar. Mas não consegue chegar a nenhuma conclusão.
«Quer fazer frente e não quer fazer frente. Tende a compreender a fraqueza, o erro, a estupidez, e quer combatê-los, denunciá-los na praça pública. Tolera e não tolera. Odeia e não odeia. Não consegue tolerar e não consegue odiar.
Também é um bom motivo para se desaparecer.»


Entretanto, chega a Primavera. Decide submeter-se. Aceita um trabalho. Antes, decide fazer uma viagem sem pressas. Em Génova, apanha uma boleia para Milão, com um homem da sua idade que acelera muito. Diz que tem de chegar ao centro antes da meia-noite. Ao lado do condutor, sente-se mais sossegado e com uma estranha sensação de bem-estar, mas gostaria de dizer alguma coisa e de sentir poisados nele os olhos claros do condutor. Quer perguntar-lhe se aquele ano iria ser difícil também para ele e o que se havia de fazer, o que se havia de pensar daquilo tudo. «Começou a imaginar este diálogo com o homem, enquanto eram levados através da noite, grande noite em que todas as coisas pareciam grandes e estranhas, como dois meninos ajuizados sentados no banco da frente, juntos para ouvirem uma lição. À frente deles surgiu um camião, aproximaram-se dele rapidamente, desviaram-se para o ultrapassar mas, quando estavam lado a lado, o camião desviou-se também na mesma direcção para se meter por um atalho. Voaram pelo ar alguns metros e foram contra um muro.»


Aquele ano quebrou-lhe os ossos. Está deitado na clínica e não conta os dias que faltam até lhe ser tirada a couraça de gesso debaixo da qual promete curar-se. O desconhecido teve morte imediata.
Maio já chegou. Todos os dias as flores do seu quarto são substituídas por flores frescas e mais coloridas. «Já não duvida da sua juventude. Sentira-se um velho de cem anos, sim, mas quando era muito mais novo, quando os seus pensamentos e o corpo o inquietavam demasiado.
Muito jovem, desejara uma morte precoce, não quisera chegar a fazer trinta anos. Mas agora desejava a vida. Outrora, só lhe tinham balançado na cabeça os sinais de pontuação para aquele mundo, mas agora vinham-lhe à mente as primeiras frases com que ele lhe surgia. Outrora, tinha achado que podia pensar tudo até ao fim, e não tinha reparado sequer que dava apenas os primeiros passos numa realidade que não se deixava pensar até ao fim com essa facilidade, e que muito ainda lhe ocultava. Durante muito tempo não soubera já no que acreditar, se é que não pensava mesmo ser uma vergonha acreditar nalguma coisa. Agora começava a acreditar em si próprio, quando fazia alguma coisa ou se expressava. Começa a ter confiança em si mesmo. Confia também nas coisas que não precisam de uma prova, nos poros da sua pele, no sabor salgado do mar, no ar cheirando a frutos, e em tudo o que tem algo de
particular.»


Antes de sair da clínica, ao pentear-se em frente a um espelho, descobre um cabelo branco.
Está vivo. Em breve estará curado. Em breve completará 30 anos.

«Digo-te: levanta-te e caminha! Não tens nenhum osso partido.»

1 comentário:

Verônica disse...

Deus do Céu! Que coisa mais linda! E que bom ler tudo isso justamente aos 30! Beijos do frio!