sábado, 30 de abril de 2011

Bolero de Ravel





Há dias em que não acredito na psicologia humana. Dói-me a cabeça. Muito. Nunca ninguém saiu daqui curado. Na minha frente, um paciente. Uma rapariga ou mulher, não sei ao certo, que se queixa de pânico. Preciso de ter paciência e não pacientes. Penso que lhe digo:


Não sei que dizer, menina – o melhor seria perguntar a Deus. Eu sou apenas um homem num dia mau com uma dor de cabeça enorme.


Em vez disso, digo:
Há quanto tempo tem ataques de pânico?


Ela, obediente, responde que há oito anos. Oito anos é muito tempo. Há oito anos que a minha mulher anda a foder o professor assistente do meu departamento na faculdade.

Conte-me a primeira vez.


A primeira vez deles foi no nosso quarto conjugal. Ela diz que andava pelas ruas quando de repente tudo lhe pareceu paisagem cartonada. Como no Truman Show, penso. Diz que os rostos perderam a humanidade.


Perderam a humanidade como? Explique isso melhor.

Oiço-a dizer nos bastidores da minha dor de cabeça que é difícil explicar, é uma coisa da ordem da sensação. Como dar um testemunho da dor através das palavras? As palavras são traiçoeiras, enredam-nos em asfixias que nos matam lentamente. Devia divorciar-me. Porque não me deixa ela? Não entendo. Ela tenta explicar: por detrás dos rostos não havia nada, eram máscaras arquitectadas de carne sem entranhas, por dentro nada, nem vísceras. Bombas-relógio.

Olho para ela. Pela primeira vez. Já não é uma menina mas ainda não é uma mulher. Está perdida e assustada. Tem medo dela, tem medo do mundo. Ela viu qualquer coisa. Viu o real sem aquilo a que os antigos chamavam o véu de Maya. De súbito, apetece-me levantar da cadeira, esquecer a posição frágil de doutor onde enterrei a minha juventude e todas as esperanças, pegar-lhe na mão frágil e dizer:


A menina dança?


E girar por este consultório, falso como toda a mobília do mundo, ao som de um bolero de Ravel nunca composto. Dizer-lhe,

Não tenha medo, você foi salva! Foi salva pelo pânico! Viu! Agora sabe. Vá-se embora, não há nada de errado consigo. Vá, tente fazer o melhor que puder, sabendo que a festa não virá! Só esta dança.


Mas não posso. Refreio a vontade das pernas. Não posso. Estarei eu a enlouquecer? Os dias inteiros a aturar pantanas, a fazer cara de quem já não se espanta e, no fundo, todos os dias quando ponho os pés fora da cama me espanto por isto, a realidade, não se desconjuntar. A dela desconjuntou-se, tão nova, talvez assim as coisas possam correr pelo melhor, não sei, eu não sei, e deus? deus saberia?

Reparo nos seus olhos miúdos que suplicam uma reacção minha – é só isto que a vida nos permite: reagir? e digo:


Pois talvez alguma medicação possa ajudar. Anti-depressivos. Ansioliticos. E hipnóticos em SOS.


E a mim quem me salva? A mão escreve veloz a receita como quem acelera daqui para fora. Para fora deste contexto doutor-paciente em que o mundo nos atrasa a ambos num compasso de solidão. Talvez seja apenas um dia mau. É preciso paciência. Aperto a mão dela, tão frágil e magra, ensaio um sorriso profissional – Deus se sorrisse, como seria?, e digo,


As melhoras e até à próxima.


Como quem diz,


Até amanhã e esta guerra não fui eu que a criei.

Sem comentários: