quarta-feira, 17 de agosto de 2011

"Um anjo no Inferno voa na sua própria pequena nuvem de Paraíso" (Eckhart)







Uma odisseia não se pode levar a cabo sem um homem desabrigado no início dos inícios.


E o homem garatuja as suas memórias para descobrir se ainda é capaz de sofrer. É estóico, recto e culto, como convém, e sabe quão raramente um pensamento humano acontece. Não está à procura do caminho para regressar a casa, está desabrigado no lar burguês que construiu para si, para a mulher relativamente bela e de boa família com quem casou com alguma repugnância e a quem trata de homenagear de quando em quando, com pouco prazer mas sem repulsa excessiva, para garantir a paz no seu lar. O tear de Penélope foi substituído pelos teares mecânicos e alinhados da fábrica de rendas que dirige.


Também ele combateu e fez o que tinha a fazer, sem hesitações. Saiu dela “um homem vazio, cheio unicamente de amargura e de uma longa vergonha, como areia que range entre os dentes” (p. 19) e com o horror impresso na retina. Não pode regressar como herói. Não pode regressar. O regresso a casa pode apenas equivaler ao desejo sofocliano de não ter nascido. A guerra é perpétua e ninguém pode escolher o lado da trincheira que ocupa – isso é apenas uma fantasia consoladora dos vencedores.


Sou culpado, o leitor não, muito bem. Mas o leitor deveria apesar de tudo ser capaz de dizer para consigo que teria feito também aquilo que eu fiz. Talvez com menos zelo, mas talvez também com menos desespero, mas seja como for de uma maneira ou de outra. Penso que me é permitido concluir como um facto estabelecido pela história moderna que toda a gente, ou quase, num conjunto de circunstâncias dadas, faz o que se lhe diz que faça; e, peço desculpa, há poucas probabilidades de ser o leitor a excepção, tal como eu não a fui. Se nasceram num país ou numa época em que não só ninguém aparece para matar as vossas mulheres e os filhos dos outros, dêem graças a Deus e vão em paz. Mas mantenham sempre presente no espírito esta ideia: talvez tenham tido mais sorte do que eu, mas nem por isso são melhores do que eu. Porque no momento em que tenham a arrogância de pensar sê-lo, aí começa o perigo.” (pag. 27).



Já quase nada lhe interessa. Mantém aventuras esporádicas com belos rapazes como um cuidado de higiene. Resta-lhe apenas a literatura. Não fosse a guerra, ter-se-ia ocupado das coisas belas e calmas, fazendo ou ensinando literatura. E gostaria de ter tocado piano. “Tocar só para mim, em casa, ter-me-ia cumulado de satisfação. Bem entendido, ouço muitas vezes música, e nisso tenho um vivo prazer, mas não é a mesma coisa, é um prazer de substituição. Tal como os meus amores masculinos: a realidade, não coro ao dizê-lo, é que teria preferido decerto ser uma mulher. Não necessariamente uma mulher que vivesse e agisse neste mundo, uma esposa, uma mãe; não, uma mulher nu, deitada de costas, com as pernas abertas, esmagada sob o peso de um homem, agarrada a ele e trespassada por ele, afogada nele e tornando-se o mar sem limites em que ele mesmo se afoga, prazer sem fim, e sem princípio também. Ora não foi assim. Em vez disso, dei comigo jurista, funcionário da segurança, oficial SS, e depois director de uma fábrica de rendas. É triste, mas é como é.” (p. 29).



Uma odisseia não se pode levar a cabo sem um homem desabrigado no início dos inícios. E este homem não está abrigado no homem que é porque os abrigos do humano foram calcinados pelos fornos crematórios.



E uma odisseia não pode efectuar-se sem o amor por uma mulher distante. “Uma só, mas mais do que tudo no mundo. Ora essa, justamente, era a que me estava proibida. É bastante concebível que ao sonhar ser uma mulher, sonhando-me um corpo de mulher, eu a procurasse ainda, quisesse aproximar-me dela, quisesse ser como ela, quisesse ser ela. É inteiramente plausível, ainda que nada mude ao caso. Dos tipos com quem fui para a cama, nunca amei um só que fosse, servi-me deles, dos seus corpos, é tudo.” (p.29)

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