domingo, 4 de setembro de 2011

Meu nome é Legião, porque somos muitas: Circe é um deles.




“Aconteceu certa noite, lembro-me apenas vagamente da cena, tão breve quanto comovente, regressava eu atordoado e trôpego de uma incursão selvagem aos botequins, quando numa das ruas monótonas da grande cidade encontrei uma mulher que me convidou a acompanhá-la até casa. Não era uma mulher bonita e, no entanto, sim, era bonita.

(…)

Epílogo: Não poderia esta mulher ser Circe, que pede ao nobre grego que cruzou os mares para que fique com ela? Ele quer regressar a casa, mas ela, ela suplica-lhe que não a abandone. É uma feiticeira má que transforma aqueles para quem olha em porcos grunhidores. É verdade que ela o nega: diz que não é uma feiticeira má, que ela própria é vítima do feiticeiro mau. É bem possível. É mulher, de resto, de uma beleza comovente (…). Não é infeliz mas também não é feliz (…). Entre outras coisas, diz ela que os seus companheiros de viagem se metamorfosearam por si próprios em porcos. Que a culpa e a vergonha é deles, não dela. São porcos porque queriam ser porcos. Ela sorri, e pelo sorriso esgueira-se uma lágrima. É irónica e ao mesmo tempo de uma seriedade absoluta, frívola e ao mesmo tempo melancólica. (…) Protege-me de Circe. Se tu ficares comigo, eu não serei Circe. Ela vai-se embora se tu não te fores embora.» Assim fala ela, cobrindo-o de ternas carícias, mas ele, ele… parte. Deixa-a entregue a Circe, entregue a si própria, deixa-a entregue à crueldade que tem no peito, entregue à ignomínia de que é escrava. Conseguirá ele partir? Será assim tão empedernido?”

Robert Walser, Histórias de Amor

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