quarta-feira, 28 de março de 2012

O Lobo das Estepes


Harry Haller é um homem que lê, lê muito. Abandonou família, pátria, profissão, sociedade e moral para se dedicar ao espírito e à liberdade, pagando o seu preço em solidão e sofrimento. «“A maioria das pessoas não querem nadar antes de saber.” Não tem piada? Pois se nasceram para a terra, e não para a água! E é óbvio que não querem pensar; foram feitos para viver, não para pensar! Pois aquele que pensa, aquele que tudo centra no pensar, pode realmente ir muito longe nesse campo, mas para todos os efeitos trocou a terra pela água, e um dia há-de ir ao fundo.»

Incapaz de encontrar abrigo ou descanso, auto-intitula-se Lobo das Estepes, subvivendo como animal desgarrado num mundo que lhe é estranho e incompreensível, cujas ambições e prazeres não partilha minimamente. Alimenta-se na demanda das raras réstias de ouro que iluminam a vidinha, rasgando-a numa explosão ek-stática que desagrega qualquer individualismo. Mas o êxtase dura apenas um instante, que é o tempo da eternidade, e Harry decide-se assim pelo suicídio: «é próprio do suicida sentir o seu eu, com ou sem razão, como germe da natureza especialmente perigoso, equívoco e ameaçado, como se estivesse suspenso no mais afilado cume de um rochedo onde um ligeiro toque do exterior ou a mínima fraqueza do interior bastariam para o precipitar no vácuo.»

E é exactamente na noite em que a lâmina de barbear o aguarda, que o instinto de sobrevivência de Harry começa a espernear. O lobo das estepes encontra então uma linda e pálida rapariga com um rosto masculino que percebe o que falta a Harry: ser cuidado e obedecer. «Obedecer é como comer e beber – quando se passou muito tempo sem isso, não há nada que o valha.»

“Seria mais inteligente da minha parte não te dizer isto. Mas não quero ser inteligente, Harry; desta vez, não. Quero outra coisa bem diferente. presta atenção, abre os ouvidos! Hás-de ouvir, depois hás-de voltar a esquecer, depois hás-de rir à conta disso, e chorar à conta disso. toma atenção, pequeno! Vou brincar contigo à vida e à morte, maninho, e vou-te por as cartas na mesa, bem à vista, ainda antes de começarmos o jogo!”

O jogo começa com a aprendizagem que Hermínia lhe impõe: comer beber, foder e dançar. Culmina num teatro de desagregação de personalidade, cujo preço de entrada é a razão, uma trip alucinatória de pendor nietzscheano que procura atingir a cura pela doença. A farsa termina em
tragédia, com facadas passionais e a insistente angústia das estepes. Mas num golpe de magia, Harry pressente que a vida é jogo e que afinal aos jogos não convém a seriedade, sentindo-se capaz de palmilhar mais uma vez e sempre o inferno do seu interior e aprender a única coisa verdadeiramente imortal – o riso.

A lição final é, mais uma vez nietzscheana: é preciso chorar e passar pela tristeza mais funda para que possamos rir com todos os dentes e experimentar a alegria mais exclusivamente. A liberdade, meu caro, existe mas é preciso pagar o seu preço, sem cobardias nem avarezas.

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