sábado, 25 de agosto de 2012

F O M E


Fome de Knut Hamsun narra um período de fome que um homem passa em Kristiania (actual Oslo). Um homem sem emprego e relações, de estômago vazio e cabeça cheia de pensamentos alucinatórios, tenta desesperadamente escrever. É preciso que escreva para que possa comer algo, mas sem comer, escrever é algo quase impossível, uma experiência-limite.

A certo ponto, percebemos que este homem passa fome não porque não tenha opção, mas por escolha, ou melhor, por uma estranha compulsão interior que o obriga a respeitar os «sentimentos nobres», a vigiar constantemente o seu pensamento e a a imagem que oferece de si. A certo ponto, apaixona-se mas é incapaz de abandonar o «orgulho» e a «decência».

“Aquilo irritou-me, quase me chocou que ela me considerasse assim tão decente; enchi o peito de ar, deixei o coração inchar e peguei-lhe na mão. Mas ela retirou-a docemente e sentou-se um pouco mais afastada de mim. Com isso, a minha coragem desapareceu de novo, senti-me envergonhado e olhei na direcção da janela (…). Senti-me totalmente paralisado.

- Já vê! – disse ela, - já vê que tenho razão: a você é possível assustá-lo com um mero franzir de testa; é possível embaraçá-lo com uma simples e insignificante mudança de lugar… - Ela riu, trocista, com os olhos completamente fechados, como se também não suportasse ser observada.”

Paul Auster tem razão quando afirma que o herói de Fome sofre de uma doença de linguagem. O próprio o explicita quando se explica à rapariga: “na verdade, podia ter-se uma natureza sensível sem que, por isso, se fosse louco; havia os que viviam quase de nada e que morriam de uma simples palavra. E deixei-a perceber que eu tinha esse tipo de natureza.” Está doente de palavras como «honra», «honestidade», «altruísmo», «abnegação», etc.. É por esta razão que amachuca uma nota de dinheiro e a atira à cara de uma hospedeira. Uma nota que o poderia alimentar durante dias.

“Ah, ah! Pode chamar-se a isto «actuar, salvaguardando a honra»! Sem dizer nada, sem dirigir a palavra à gentalha, amachucar simplesmente uma nota de dinheiro das grandes, com toda a calma, e atirá-la às ventas do seu perseguidor. Podia dizer-se que isto é «comportar-se com dignidade» Assim se levam as bestas!...

Quando cheguei à esquina da Tomegatten com a Jernbanetorvet, os meus olhos começaram a ver a rua a cintilar, a cabeça vazia começou a zunir e resvalei contra a parede de um prédio. Não consegui avançar mais, pura e simplesmente, nem sequer consegui manter-me direito. Fiquei em pé, tal como tinha resvalado contra a parede, e senti que estava a perder os sentidos. A minha louca ira piorou ainda mais com este ataque de esgotamento, levantei o pé e bati no passeio. Também fiz outras tentativas para recuperar um pouco as forças, cerrei os dentes, franzi a testa, fiz girar os olhos desesperadamente e comecei a sentir o efeito. O meu pensamento tornou-se mais claro e compreendi que estava prestes a morrer. Pus as mãos à frente e apoiei-me contra a parede, e a rua continuava a dançar à minha volta. Comecei a soluçar de raiva e lutei contra a minha desgraça com o mais íntimo da minha alma, mantive corajosamente esta posição, para não cair de todo; recusava deixar-me sucumbir, queria morrer de pé.”

A fome auto-imposta será a sua maneira de verificar a validade dos sentimentos «bons». Faz lembrar Raskolnikov e Stirner. À maneira dos ascetas e mártires, ele escolhe a via da dor; o prazer e o deboche seriam um teste menos honroso. Tanto pior para ele. Abeira-se do colapso muitas vezes. Nenhum anjo lhe aparece para o salvar.

Resta-lhe reconhecer que, morto o referente transcendente, esses «sentimentos» são vazios, palavras ocas apenas, que traduzem absolutamente nada. Prazer e dor são completamente aleatórios. Na ponta do garfo dessa refeição nua, o Nada e nada mais. Não se pode mais louvar uma razão omnipresente e autofágica que martiriza a carne e faz do pensamento veneno. Estamos sozinhos aqui e agora, sem caminhos certos, e vamos ter de nos aguentar.

“Passou uma carroça rolando lentamente, e vi que levava batatas, mas na minha raiva e obstinação lembrei-me de dizer que não eram batatas, mas sim cabeças de couve, e jurei furiosamente a pés juntos que eram couves. Ouvi nitidamente o que dizia, mas persisti na mentira e continuei a jurar repetidamente, só para ter a desesperada satisfação de cometer perjúrio. Deixei-me embriagar por este pecado requintado, estiquei os dedos no ar e jurei, com lábios balbuciantes, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em como eram cabeças de couve.”

5 comentários:

Pedro Góis Nogueira disse...

O que vale mais em “Fome” é o modo hipnótico como é escrito. Talvez fosse a única maneira num tema tão arriscado, onde os personagens ou não existem ou estão de passagem, onde nada acontece a não ser no estômago. Não fosse pela escrita e poderia muito facilmente cair no ridículo, no mais acabado aborrecimento. Como o Kafka que veio beber muito a Knut Hamsun: no tal tom hipnótico, na escrita na primeira pessoa, no desassombro, na estranheza do tema. Li há pouco tempo algures um desses escritores americanos dizer que o Kafka não sabia escrever porque não sabia desenvolver personagens, enredos, conflitos, etc. Como se toda a literatura se pudesse resumir a plot points...

Madame Bovary disse...

não sei que crítico disse isso, mas acho que tanto o fome como o kafka têm enredo, no sentido em que a narrativa parte de um dilema, apresenta um clímax e encontra desfecho. o que acontece é que a acção acontece toda no intimo das personagens e a nível externo pouca coisa se passa. mas não podia ser doutro modo na modernidade: depois de tudo o que era sólido se ter desmoronado só resta narrar os sismos domésticos e comezinhos de cada um.

Pedro Góis Nogueira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Pedro Góis Nogueira disse...

Não me recordo se foi critico ou escritor, se entretanto souber ou me lembrar deixo alguma nota acerca do idiota.
No geral concordo contigo, ainda assim tenho reservas em relação ao "só resta narrar os sismos domésticos e comezinhos de cada um." Acho que nos resta mais que isso ou talvez o teu raciocínio seja aqui demasiado definitivo. Beijinhos

Madame Bovary disse...

para os autores em questão acho que era a única opção válida. também espero que reste mais do que isso.