segunda-feira, 5 de novembro de 2012


É a segunda vez que me acontece. Ter um contacto inicial desagradável com um autor, recusar lê-lo e depois descobrir anos mais tarde, com um espanto incrível, inúmeras afinidades. Aconteceu com o Bukowski há muito muito tempo. Li qualquer coisa dele num dia errado, rotulei-o levianamente de misógino e segui quase uma década sem o ler, até que um verão dei comigo na praia, sob um sol louco, enternecida pelo seu humor e desespero, e tive de admitir que o homem amava a vida e as pessoas como poucos. Hoje, aconteceu com o Derrida: a tarde inteira, enleada nos Spectres de Marx, lamentando não ter uma eternidade para abraçar cada página. Li algumas coisas dele na faculdade, achei-o hermético, um mestre de malabarismos com conceitos e gramáticas, raiando muitas vezes a incomunicabilidade. Não podia estar mais enganada. O homem conhece exemplarmente a história da filosofia ocidental, não só de trás para a frente como de frente para trás, de modo oblíquo, centrípeto e centrífugo. E diverte-se a brincar com essa história, tratando-o como uma estória, analisando os seus caminhos, desvios e patologias.  E não é um homem interessado apenas nos conceitos: o que lhe interessa é sobretudo a vida, a vida de todos os dias, a vida até dos que não leram nunca uma única linha de filosofia. E em usar todas as artimanhas, possíveis e imaginárias, para vergar os conceitos, para que a vida possa respirar novamente, ainda que por breves momentos.

Mais uma vez, me é provado que a literatura é un affaire d'amour e que para certos livros ou autores, é preciso esperar e confiar no tempo e na sua capacidade de amadurecer a compaixão, uma paixão com, partilhada. Tem razão o Alberto Manguel quando diz que cada leitor cria a sua própria história da literatura. É que a vida e a literatura caminham juntas, mesmo quando desavindas.

3 comentários:

Pedro Góis Nogueira disse...

Caraças, acabei de fazer um post sobre o Bukowski :) Coincidência, mas também sou um incondicional, Bukowski é capaz de ser o escritor mais subvalorizado que conheço.
Não conheço Derrida (o mais próximo que estou neste momento é para aí com Zizek e a sua interpretação de Marx se bem que com o guarda chuva de Hegel) mas hei de lê-lo.
Sim, a literatura é coisa muito pessoal, muito a ver com o percurso de cada um, e muito, muito a ver com o nosso gosto.

Madame Bovary disse...

Do Zizek, gosto de algumas coisas, outras não. Mas é um tipo fenomenal, tive a oportunidade de fazer um seminário com ele na NYU e gosto bastante da atitude dele. Gosto muito de um documentário dele - The Pervert's Guide to Cinema - http://www.imdb.com/title/tt0828154/
Se ainda não conheces, recomendo. beijo

Pedro Góis Nogueira disse...

Isso é excelente e a impressão que eu tenho de longe é que ele seja mesmo um tipo fenomenal. Obrigado pela recomendação, desse documentário conheço apenas trechos do You Tube, gostei particularmente daquele sobre a casa do Norman Bates no Psycho. Concordando ou não com ele, Zizek é sempre interessente, estimulante e até libertador. Beijinhos