quarta-feira, 6 de novembro de 2013

noites brancas e diabólicas


Comecemos por dois mistérios. O lançamento do último livro de Knut Hamsun editado pela Cavalo de Ferro não figurava nos destaques da reentré literária dos principais suplementos culturais do país. Apanhou-me, portanto desprevenida quando fui à livraria buscar as novidades que planeara ler. A sua capa negra com uma imagem de Munch tinha os olhos postos em mim e não me restava senão devolver o olhar. São assim as peripécias de uma leitora fútil que tende a julgar os livros pela capa.

A chamada misteriosa continuou em casa. O livro estava impertinente por sair da estante para o meu regaço, tendo-me obrigado a adiar outras leituras urgentes. E assim começaram as minhas noites diabólicas com os Mistérios de Knut Hamsun. Não vou explicar o uso deste adjectivo, mas garanto que é o mais próximo desta experiência nocturna de leitura. Terminada a leitura diária, o livro continuava a comunicar comigo, oferecendo-me sonhos perturbados e nervosos. Sonhos que podiam ser tidos como pesadelos, não fosse a sua natureza branca. Só depois de terminar a leitura do livro, li as habituais citações da contracapa. “Mistérios é tão próximo e tão inquietante quando o nosso sonho (ou pesadelo) da noite passada” (New York Times). Que me lembre, nunca tal comunicação inconsciente me tinha acontecido com um livro. Uma proximidade inquietante.

Knut Hamsun é tido por muitos, sobretudo grandes escritores, como um dos maiores. A julgar pela capacidade de me perturbar, parece-me um título merecido. De Mistérios, disse Henry Miller: “está mais próximo de mim do que qualquer outro livro que eu tenha lido”. Talvez Miller tenha sentido a mesma empatia disruptiva que eu senti por Johan Nilsen Nagel, o misterioso estrangeiro que sem nenhuma razão aparente se instala por um período breve numa pequena cidade costeira da Noruega.

Nagel é um homem em luta, uma alma que não alinha com nada, desconfiando de tudo e todos, sobretudo dos «bons sentimentos» e dos grandes homens. «A vida é uma luta contra os monstros que se escondem nos recantos do coração e do cérebro». Nagel não é, como Hamsun disse da personagem, um homem-tipo. Aliás, o que o exaspera é o congelamento dos homens em subjectividades típicas. Nagel ri quando devia chorar, é honesto quando deve ser desonesto e vice-versa. É um homem em desacordo e com os nervos em franja, como qualquer moderno que se preze, movido pelo desejo de fazer algo diferente, algo que estilhace a superfície polida da vida embalsamada nos valores confortáveis da burguesia.

A curta estadia do estranho vai pertubar a paz podre da comunidade. Nagel, com uma enigmática capacidade intuitiva, funcionará como um espelho negro onde os habitantes da cidade podem ler o reflexo dos seus instintos e desejos reprimidos. Quanto ao elemento estranho, esse está condenado à autodestruição. A sua mania de contrariar desemboca na melancólica constatação de que tudo é hipocrisia e ele não é melhor que ninguém. É o preço a pagar por um «bom» coração e uma cabeça volátival, errante.

Sou, como Nagel, uma alma atormentada. Não me acho melhor que os outros mas a maioria exaspera-me com as suas mentiras e hipocrisias. Sou incapaz de reconhecer uma autoridade e não consigo não desafiar. Desde pequena, se alguém me diz que não posso fazer ou dizer algo, trato imediatamente de o fazer ou dizer. Tenho uma personalidade leal mas não houve um amor que eu não traísse. Sinto um profundo desacordo com a vida e a forma como se vive. Embora pessimista, tenho sempre viva a esperança que a vida rompa a sua imobilidade e aflore sobre o gelo da indiferença, exultante.


Tudo isto que foi dito fica aquém do livro de Knut Hamsun. Acontece-me sempre com os livros maiores, aparentados e diabolicamente bem escritos: falta-me o génio para falar do génio.

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