domingo, 30 de outubro de 2016

get the blues



      (...) O romantismo presta culto à cor azul. Em especial, o romantismo alemão. Nesse campo, o texto mais emblemático, senão fundador, é o romance inacabado Heinrich von Ofterdingen, de Novalis, publicado a título póstumo em 1802 por Ludwig Tieck, amigo mais chegado do escritor. Este romance conta a lenda de um trovador medieval que partiu em busca de uma florzinha azul entrevista em sonhos, flor que encarna a poesia pura e a vida ideal. O sucesso dessa flor azul foi considerável, bastante superior ao do romance. Juntamente com o casaco azul de Werther, tornou-se a figura simbólica do romantismo alemão.
Talvez até do romantismo em geral, de tal forma essa flor e a sua cor foram imitadas fora da Alemanha por poetas que escreviam noutras línguas europeias. Por todo o lado o azul viu serem-lhe atribuídas todas as virtudes poéticas. Passou a ser, ou voltou a ser, a cor do amor, da melancolia e do sonho - era-o já, de certa maneira, na poesia medieval, na qual existia um jogo de palavras entre ancólia (flor azul) e melancolia. O azul dos poetas juntava-se assim ao azul das expressões idiomáticas e dos provérbios, que já há muito qualificavam como contos azuis as quimeras ou os contos de fadas, e como pássaro azul o ser ideal, raro e inacessível.
      Este azul romântico e melancólico, o da poesia pura e dos sonhos infinitos, atravessou décadas mas, com o tempo, foi-se desviando, enegrecendo ou transformando um pouco. Na Alemanha, ainda está presente na expressão blau sein, que significa estar embriagado, recorrendo o alemão à cor azul para qualificar o espírito toldado e os sentidos anestesiados de uma pessoa que bebeu demais - enquanto o francês e o italiano, para dizer a mesma coisa, recorrem ao cinzento e ao negro. Também em Inglaterra e nos Estados Unidos, a expressão the blue hour (a hora azul) designa o período da saída do emprego, ao fim da tarde, quando os homens (e por vezes as mulheres), em vez de irem directamente para casa, vão passar uma hora num bar para beber e esquecer as preocupações. Esta relação entre o álcool e a cor azul já estava presente nas tradições medievais: muitos receituários destinados aos tintureiros explicam que, ao tingir-se com pastel-dos-tintureiros (que normalmente precisa apenas de um mordente fraco), utilizar como mordente a urina de um homem em avançado estado de embriaguez ajuda a fazer penetrar bem a matéria corante no tecido.
      Por fim, e em especial, tem de se fazer a associação do azul dos românticos com o blues, forma musical de origem afro-americana, provavelmente nascida nos meios populares nos anos de 1870 e caracterizada por um ritmo lento a quatro tempos, que traduz estados de alma melancólicos. Esta palavra anglo-americana, blues, que muitas línguas adoptaram sem alterações, provém da contracção da expressão blue devils («demónios azuis»), que remete para a melancolia, a nostalgia e o desânimo, tudo aquilo que o francês qualifica com outra cor: idées noires, «ideias negras». Corresponde à expressão inglesa to be blue ou in the blue, que tem como equivalentes, em alemão, alles schwarz sehen, em italiano, vedere tutto nero e, em francês, broyer du noir.



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