quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Contos Orientais



Não é à toa que tenho uma frase de O GOLPE DE MISERCÓRDIA tatuada no pé. Marguerite Yourcenar é uma das minhas escritoras preferidas. Voltei a reencontrar a sua mestria – cada palavra no lugar certo – na antologia CONTOS ORIENTAIS. Sem reticência alguma, um livro do caralho.

Das dez novelas que restam (e o título Contos e Novelas assentaria porventura melhor à matéria variada que as constitui), quatro são retranscrições, que eu desenvolvi mais ou menos livremente, de fábulas ou lendas autênticas. A Salvação de Wang-Fô inspira-se num apólogo taoista da velha China; O Sorriso de Marko e O Leite da Morte provêm de baladas balcânicas da Idade Média; Kali Decapitada deriva de um inesgotável mito hindu, precisamente o mesmo que, interpretado aliás em moldes completamente diferentes, forneceu a Goethe O Deus e a Bailarina e a Thomas Mann As Cabeças Trocadas. Por outro lado, O Homem que Amou as Nereidas e A Viúva Aphrodissia (O Chefe Vermelho, na edição original) têm como ponto de partida pequenas notícias locais ou superstições da Grécia de hoje, ou melhor, de ontem, porquanto a sua redacção situa-se entre 1932 e 1937. Em contrapartida, Nossa Senhora das Andorinhas representa uma fantasia pessoal da autora, nascida do desejo de explicar o nome singelo de uma capelinha nos campos da Ática. Em O Último Amor do Príncipe Genghi, as personagens e o quadro da narrativa foram colhidos não num mito ou numa lenda, mas num grande texto literário do passado, no admirável romance japonês do século xi Genghi-Monogatari, da romancista Mourasaki Shikibu, que relata em seis ou sete volumes as aventuras de um Don Juan asiático de grande estilo. Mas, com uma delicadeza muito característica, Mourasaki «escamoteia» por assim dizer a morte do seu herói e passa do capítulo em que Genghi já viúvo decide retirar-se do mundo para aquele em que o seu próprio fim é um facto consumado. A novela que acabaram de ler pretende, se não preencher essa lacuna, pelo menos permitir imaginar o que teria sido esse epílogo se a própria Mourasaki o tivesse composto. O Fim de Marko, narrativa que, desde há anos tencionava escrever, só em 1978 foi redigida. O conto toma como ponto de partida um fragmento de uma balada sérvia que evoca a morte do herói às mãos de um circunstante misterioso, banal e alegórico. Mas onde foi que eu li ou ouvi essa história em que tantas vezes voltaria a pensar? Não sei, nem a encontro nos poucos textos do género de que disponho, e que dão da morte de Marko Kraliévitch diversas versões, mas não aquela. Finalmente, A Tristeza de Cornelius Berg (As Túlipas de Cornelius Berg, na versão primitiva) fora concebido como a conclusão de um romance que continua inacabado. De modo algum oriental, excepto nas duas breves alusões a uma viagem do artista à Ásia Menor (sendo aliás uma delas um acrescento recente), não pertence de todo, afinal, à precedente colectânea. Mas não resisti ao desejo de contrapor ao grande pintor chinês, perdido e salvo no interior da sua obra, esse obscuro contemporâneo de Rembrandt meditando melancolicamente sobre a dele.

Li todos os contos de uma assentada, numa tarde contente de Domingo. Gostei de todos e todos me transportaram para outras paragens – a China, a Grécia, os Balcãs, o Japão, mas sobretudo o estrato subterrâneo e arcaico do sonho e do mito. Se tivesse que eleger um preferido, elegeria talvez Nossa Senhora das Andorinhas pelo relato que oferece sobre a extinção (ou transmutação) das ninfas.


E Maria foi-se embora pelo carreiro que não levava a sítio nenhum, como mulher a quem pouco importa que os caminhos acabem, pois conhece a maneira de andar no céu. O monge Therapion desceu à aldeia e, no dia seguinte, quando subiu para celebrar a Missa, a gruta das Ninfas estava coberta de ninhos de andorinha. Voltaram todos os anos; iam e vinham pela igreja, atarefadas a dar de comer às crias ou a consertar as suas casitas de barro, e o monge Therapion parava muitas vezes de rezar para seguir com ternura as suas brincadeiras e os seus amores, pois aquilo que é interdito às Ninfas é consentido às andorinhas.

1 comentário:

R disse...

Foda-se! (perdão pela ausência de melhor superlativo)
Que tremenda sugestão!!