Não é à toa que tenho uma frase de O GOLPE DE MISERCÓRDIA
tatuada no pé. Marguerite Yourcenar é uma das minhas escritoras preferidas. Voltei
a reencontrar a sua mestria – cada palavra no lugar certo – na antologia CONTOS
ORIENTAIS. Sem reticência alguma, um livro do caralho.
Das
dez novelas que restam (e o título Contos e Novelas assentaria porventura melhor à matéria
variada que as constitui), quatro são retranscrições, que eu desenvolvi mais ou
menos livremente, de fábulas ou lendas autênticas. A Salvação de Wang-Fô inspira-se num apólogo taoista da velha China;
O Sorriso de Marko e O Leite da
Morte provêm de baladas balcânicas da
Idade Média; Kali Decapitada deriva
de um inesgotável mito hindu, precisamente o mesmo que, interpretado aliás em
moldes completamente diferentes, forneceu a Goethe O Deus e a Bailarina e a Thomas Mann As Cabeças Trocadas. Por outro lado, O Homem que Amou as
Nereidas e A Viúva Aphrodissia (O Chefe Vermelho, na edição original) têm como ponto de partida pequenas notícias
locais ou superstições da Grécia de hoje, ou melhor, de ontem, porquanto a sua
redacção situa-se entre 1932 e 1937. Em contrapartida, Nossa Senhora das
Andorinhas representa uma fantasia
pessoal da autora, nascida do desejo de explicar o nome singelo de uma
capelinha nos campos da Ática. Em O Último Amor do Príncipe Genghi, as personagens e o quadro da narrativa
foram colhidos não num mito ou numa lenda, mas num grande texto literário do
passado, no admirável romance japonês do século xi
Genghi-Monogatari, da romancista Mourasaki Shikibu, que relata em seis
ou sete volumes as aventuras de um Don Juan asiático de grande estilo. Mas, com
uma delicadeza muito característica, Mourasaki «escamoteia» por assim dizer a
morte do seu herói e passa do capítulo em que Genghi já viúvo decide retirar-se
do mundo para aquele em que o seu próprio fim é um facto consumado. A novela
que acabaram de ler pretende, se não preencher essa lacuna, pelo menos permitir
imaginar o que teria sido esse epílogo se a própria Mourasaki o tivesse
composto. O Fim de Marko, narrativa
que, desde há anos tencionava escrever, só em 1978 foi redigida. O conto toma
como ponto de partida um fragmento de uma balada sérvia que evoca a morte do
herói às mãos de um circunstante misterioso, banal e alegórico. Mas onde foi
que eu li ou ouvi essa história em que tantas vezes voltaria a pensar? Não sei,
nem a encontro nos poucos textos do género de que disponho, e que dão da morte
de Marko Kraliévitch diversas versões, mas não aquela. Finalmente, A
Tristeza de Cornelius Berg (As
Túlipas de Cornelius Berg, na versão
primitiva) fora concebido como a conclusão de um romance que continua
inacabado. De modo algum oriental, excepto nas duas breves alusões a uma viagem
do artista à Ásia Menor (sendo aliás uma delas um acrescento recente), não
pertence de todo, afinal, à precedente colectânea. Mas não resisti ao desejo de
contrapor ao grande pintor chinês, perdido e salvo no interior da sua obra,
esse obscuro contemporâneo de Rembrandt meditando melancolicamente sobre a
dele.
Li todos os contos de uma assentada, numa tarde contente de
Domingo. Gostei de todos e todos me transportaram para outras paragens – a
China, a Grécia, os Balcãs, o Japão, mas sobretudo o estrato subterrâneo e
arcaico do sonho e do mito. Se tivesse que eleger um preferido, elegeria talvez
Nossa Senhora das Andorinhas pelo
relato que oferece sobre a extinção (ou transmutação) das ninfas.
E
Maria foi-se embora pelo carreiro que não levava a sítio nenhum, como mulher a
quem pouco importa que os caminhos acabem, pois conhece a maneira de andar no
céu. O monge Therapion desceu à aldeia e, no dia seguinte, quando subiu para
celebrar a Missa, a gruta das Ninfas estava coberta de ninhos de andorinha. Voltaram
todos os anos; iam e vinham pela igreja, atarefadas a dar de comer às crias ou
a consertar as suas casitas de barro, e o monge Therapion parava muitas vezes
de rezar para seguir com ternura as suas brincadeiras e os seus amores, pois
aquilo que é interdito às Ninfas é consentido às andorinhas.
1 comentário:
Foda-se! (perdão pela ausência de melhor superlativo)
Que tremenda sugestão!!
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