sábado, 1 de setembro de 2018

O eremita viajante




Numa sexta-feira à noite, percorro a pilha de livros por ler e decido que no dia seguinte ignorarei o calor e as praias lotadas, para ficar no sofá a viajar pelo Japão, com a obra completa de Matsuo Bashô.

Na poesia como em tudo o resto, tendo a preferir os estilos mais viscerais, pouco dados às contenções da forma ou imposições de rimas, que convocam de imediato a carne e a colocam em cheque. Mais do que admirar a elegância estilística de um verso ou a frase burilada, quero sentir o poema   na garganta, no peito, por vezes no estômago, raras vezes no pipi (ocorre-me agora, com alguma graça, que nunca senti um poema nos pés).

Quer isto significar que, em princípio, não atinaria com a estética dos haikus. Mas como também eu sou uma metamorfose ambulante, dou por mim a curtir os pequeninos poemas de 3 estrofes, carregados de uma forte potência visual que fica a ressoar na cabeça do leitor, como pequenas aguarelas onde, com algumas pinceladas desleixadas, se consegue sugerir toda uma atmosfera, aparentemente simples, porque se atém aos factos mais materiais da existência – as estações do ano, o quotidiano das árvores e dos animais –, que é onde o mistério do mundo se revela mais intensamente e de forma universal.

Nos mais de 1000 haikus de Bashô, o enredo principal cabe à natureza, contada por um sujeito poético que se oblitera nesse tempo da observação, um tempo que é sempre lento e implica uma vida mais humilde e despojada quer das solicitações do ego, quer das solicitações da comunidade. Nesse tempo, o grande acontecimento poético cabe ao cuco que canta, à cerejeira que floresce ou à fase que a lua apresenta no céu.

116
enquanto a cerejeira
estiver em flor
o mal-estar não existe

118
flores por todo o lado 
animam-se o sacerdote
e a prostituta

136
salta a rã
para dentro do velho tanque 
plof!

302
ah as brisas do outono! 
dorme ao ar livre
e compreenderás o meu poema

316
não há frio que resista
quando se dorme acompanhado 
e que bom que é!

340
quando floresce a ameixeira
nada sei
como o coração dos poetas

520
sobre a montanha da Pluma Negra
a lua crescente 
paz dentro de mim

542
o homem pára
para olhar o trevo à chuva 
e molha-se

664
o coração viajante não se enraíza
antes quer ser
braseira ambulante

699
o cuco da montanha
junta solidão
à minha tristeza

753
pudesse eu viver
como a cerejeira da montanha 
por sobre o mundo

868
fragrância da flor da ameixeira
onde está a pessoa
que nunca conhecerei?

886
o gato com o cio
trepa para o cão
– a coisa é séria!

888
Nara tem sete edifícios
mas oito pétalas
tem cada flor de cerejeira

939
os nossos corações estão em paz
na pequena sala de chá 
o outono ronda lá fora

943
em minha casa
junto à janela 
quadrada é a lua

951
quem olhará a lua de Yoshino
esta noite
a vinte quilómetros daqui

963
junto com o outono que parte
o vento dos pinheiros
dá uma volta pelos beirais

974
a doença atacou o viajante
sonhos vagueiam
por campos secos
[este haiku foi escrito por Bashô três dias antes de morrer e é considerado o seu último poema. A imagem que me imediatamente me evoca é o Campo de Trigo com Corvos do Van Gogh, se não me engano também o último quadro que ele pintou, semanas antes de morrer.]

Voltei de férias há pouco e nunca Lisboa me pareceu tão artificial e despojada de alma. Maçam-me o betão, o ruído contínuo, ressaco árvores e vento. Talvez por isso  a leitura de Bashô me tenha agradado tanto. Quisera encontrar outro tempo, outra vida – um pouco mais de azul… Um pouco como nas estrofes iniciais do poema do Verlaine que me ocorrem transformar num haiku (aldrabado pois claro, pois estou-me a borrifar para a contagem de sílabas):

chove no meu coração
como chove na cidade
 – que langor tão escuro!

Sem comentários: