Numa
sexta-feira à noite, percorro a pilha de livros por ler e decido que no dia
seguinte ignorarei o calor e as praias lotadas, para ficar no sofá a viajar
pelo Japão, com a obra completa de Matsuo Bashô.
Na poesia
como em tudo o resto, tendo a preferir os estilos mais viscerais, pouco dados
às contenções da forma ou imposições de rimas, que convocam de imediato a carne
e a colocam em cheque. Mais do que admirar a elegância estilística de um verso
ou a frase burilada, quero sentir o poema – na garganta, no peito, por vezes no
estômago, raras vezes no pipi (ocorre-me agora, com alguma graça, que nunca
senti um poema nos pés).
Quer isto
significar que, em princípio, não atinaria com a estética dos haikus. Mas como
também eu sou uma metamorfose ambulante, dou por mim a curtir os pequeninos
poemas de 3 estrofes, carregados de uma forte potência visual que fica a
ressoar na cabeça do leitor, como pequenas aguarelas onde, com algumas
pinceladas desleixadas, se consegue sugerir toda uma atmosfera, aparentemente
simples, porque se atém aos factos mais materiais da existência – as estações
do ano, o quotidiano das árvores e dos animais –, que é onde o mistério do
mundo se revela mais intensamente e de forma universal.
Nos mais
de 1000 haikus de Bashô, o enredo principal cabe à natureza, contada por um
sujeito poético que se oblitera nesse tempo da observação, um tempo que é
sempre lento e implica uma vida mais humilde e despojada quer das solicitações
do ego, quer das solicitações da comunidade. Nesse tempo, o grande
acontecimento poético cabe ao cuco que canta, à cerejeira que floresce ou à fase que a lua apresenta no céu.
116
enquanto a cerejeira
estiver em flor
o mal-estar não existe
118
flores por todo o lado –
animam-se o sacerdote
e a prostituta
136
salta a rã
para dentro do velho tanque –
plof!
302
ah as brisas do outono! –
dorme ao ar livre
e compreenderás o meu poema
316
não há frio que resista
quando se dorme acompanhado –
e que bom que é!
340
quando floresce a ameixeira
nada sei
como o coração dos poetas
520
sobre a montanha da Pluma Negra
a lua crescente –
paz dentro de mim
542
o homem pára
para olhar o trevo à chuva –
e molha-se
664
o coração viajante não se enraíza
antes quer ser
braseira ambulante
699
o cuco da montanha
junta solidão
à minha tristeza
753
pudesse eu viver
como a cerejeira da montanha –
por sobre o mundo
868
fragrância da flor da ameixeira
onde está a pessoa
que nunca conhecerei?
886
o gato com o cio
trepa para o cão
– a coisa é séria!
888
Nara tem sete edifícios
mas oito pétalas
tem cada flor de cerejeira
939
os nossos corações estão em paz
na pequena sala de chá –
o outono ronda lá fora
943
em minha casa
junto à janela –
quadrada é a lua
951
quem olhará a lua de Yoshino
esta noite
a vinte quilómetros daqui
963
junto com o outono que parte
o vento dos pinheiros
dá uma volta pelos beirais
974
a doença atacou o viajante
sonhos vagueiam
por campos secos
[este haiku foi escrito por Bashô três dias antes de morrer e é considerado o seu último poema. A imagem que me imediatamente me evoca é o Campo de Trigo com Corvos do Van Gogh, se não me engano também o último quadro que ele pintou, semanas antes de morrer.]
Voltei de férias há
pouco e nunca Lisboa me pareceu tão artificial e despojada de alma. Maçam-me o
betão, o ruído contínuo, ressaco árvores e vento. Talvez por isso a leitura de Bashô me tenha agradado tanto. Quisera encontrar outro
tempo, outra vida – um pouco mais de azul… Um pouco como nas estrofes iniciais do poema do Verlaine que me ocorrem transformar num haiku (aldrabado pois claro, pois estou-me a borrifar para a contagem de sílabas):
chove no meu coração
como chove na cidade
– que langor tão escuro!
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