domingo, 17 de fevereiro de 2019

metamorfoses




Estou em crer que nós, leitores, temos uma relação privilegiada com a solidão. A nossa cultura, assustada com as aventuras e desventuras da caça, optou há muito pelo caminho da segurança e da anestesia, em detrimento da liberdade e do prazer; esta ortopedia do humano, ou antropotécnica, parece culminar numa tendência unívoca de planificação e uniformização de toda a diversidade, fazendo-nos temer que toda a beleza do universo regresse por fim à sua origem, à explosão do Uno. Neste processo, a solidão tem perdido o seu carácter de capital criativo e é cada vez menos cultivada: basta entrar numa qualquer carruagem de metro e olhar os vários zombies frente a um ecrã, para nos apercebermos que de que já somos cyborgs e que até as nossas relações connosco próprio foram já mediatizadas. Em suma, e tendo a noção de que adopto um tom algo apocalíptico: parecem andar todos apavorados com a solidão e nunca o caminho para o Ser foi tão árido, pedregoso e de difícil acesso.

Gosto da palavra solidão. Lembra-me um nome de planeta de outra galáxia. Gosto também da sua tradução em espanhol – soledad – e da sua invocação com um trago a saudade. E gosto do sentimento, sobretudo das vezes em que o consigo habitar em plena concordância; a solidão é o barómetro que uso para saber onde e como estou, o centro e o coração da minha existência. Quando circulo por ela, como uma fera enjaulada, de movimentos impertinentes e atrofiados, sei que não estou bem; nesses momentos, consigo ouvir a distância que vai de mim a mim e garanto-vos que é das sensações mais angustiantes que me acontecem. É como se toda eu estivesse derramada num solo estranho, alienígena, sentido amplificadamente esse estado líquido, incapaz de me reunir ou reerguer. Então, até o acto da leitura se me torna difícil, nenhum livro me consegue agarrar e tudo se liquefaz nas minhas mãos e na minha cabeça.

Por isso, não posso deixar de celebrar com redobrada alegria, cada vez que me acontece concordar com a minha solidão. Aconteceu recentemente e a leitura deste tempo de encontro e comunhão foi a de um livro que eu há muito desejava, sem saber que já tinha sido escrito e que, para maior surpresa ainda, foi recentemente traduzido e publicado por cá: O homem-veado e a mulher-aranha, de Françoise Frontisi-Ducroux, um livro precioso.

Combinando múltiplas disciplinas, Frontisi-Ducroux, uma helenista francesa conhecida sobretudo pelas suas investigações no âmbito da antropologia grega, oferece-nos uma reflexão brilhante sobre a importância das noções de metamorfose e hibridez nos mitos gregos e a sua respectiva representação visual na antiguidade.

“O que é que acontece quando inopinadamente os homens se cruzam com os deuses, à margem dos santuários erguidos para a comunicação regular, longe dos templos e das estátuas, dos altares onde fumega o sangue dos sacrifícios, longe da harmonia das preces e das procissões? […]

Os mitos gregos são ricos em tais acidentes e nas suas consequências trágicas. Pais que cozinham a sua prole para celebrar e pôr à prova um hóspede desconhecido. Mães em delírio, que abandonam a casa, que despedaçam os filhos com as suas próprias mãos. Raparigas em pânico, desgrenhadas, errando pelos campos fora. Uma ingénua deslumbrada, atingida pelo esplendor do seu amante divino. Nunca é bom que um mortal se atravesse no caminho de um deus. Frequentemente, o desfecho de tais encontros é a metamorfose. No choque com o divino, o ser humano pode soçobrar, ser bruscamente desviado da sua espécie, para se perder no animal, no vegetal, ou imobilizar-se na pedra.[…]

Para os Gregos, tais aventuras pertencem ao tempo dos mitos. Um tempo em parte findo, mas não inteiramente extinto. […] Evidentemente que os deuses se mostram com menos frequência do que nos tempos heróicos da Guerra de Tróia, ainda que em certos momentos críticos se verifique a sua intercedência, sobretudo quando a civilização se vê ameaçada pela barbárie. E, no dia-a-dia, quem se atreveria a jurar que o viadante estrangeiro, por breves instantes avistado no caminho, não era Hermes? Que Pan não despontará de um arbusto, ou que a muito querida criança que em vão se procurou por todo o lado não tenha sido raptada pelas ninfas? Quanto às metamorfoses... para as recusar em absoluto, não seria necessário crer firmemente na barreira das espécies."

A exploração do tema das metamorfoses gregas não é exaustiva; Frontisi-Ducroux selecciona apenas as histórias que foram objecto de tratamento figurativo, confrontando este tratamento com as diversas fontes escritas. A viagem começa com o combate entre Peleu e Tétis, essa deusa humilhada, mãe de Aquiles, oferecida a um homem por receio dos deuses da profecia de que o filho gerado por ela seria mais poderoso de que o pai, mito que serve de modelo ao casamento. Colateralmente, sabemos também das metamorfoses cíclicas das divindades marinhas e de Métis, a deusa da astúcia, engolida pelo esposo, o grande Zeus (os mitos cumprem a função de dar corpo aos fantasmas colectivos e estes dois em particular falam-nos da ameaça feminina e de como os homens se devem salvaguardar de gerar filhos mais poderosos e sobretudo de mulheres astutas).


Continuamos pelo conhecido episódio da feiticeira Circe, domada pelo astuto Ulisses, pelo mito de Actéon, o caçador que se torna presa, culpado por surpreender Artémis no banho, o transexual Tirésias e a sua intervenção na disputa entre Zeus e Hera sobre quem tem mais prazer sexual (Tirésias, tendo sido homem e mulher, esclarece que o prazer da mulher é nove vezes superior ao do homem, o que vale um valente castigo por parte de Hera). Os amores de Zeus com Calisto, Io, Europa, Leda, Ganímedes (a mais célebre aventura das aventuras homossexuais do deus), Antíope, Dánae e Alcmena conhecem obviamente um capítulo, que mais uma vez não se pretende exaustivo, pois o grande deus era um grande sedutor como bem sabemos.

Um capítulo à parte trata da petrificação, recorrendo os mitos de Medusa, Níobe e o último aborda a metamorfose numa perspectiva mais feminina, através da fabulosa história de Procne, Filomela e Tereu, um mito de sororidade e cumplicidade feminina de que nunca tinha ouvido falar e que, de um modo marginal, me recordou Antígona. O feminino denota sempre um significante ameaçador: a mulher está demasiado próxima da natureza e, como tal, sempre pronta a resvalar para um estado selvagem, como exemplificam as Bacantes. É imperativo que seja domesticada antes de se casar, que abandone para sempre este estado selvagem para se dedicar à produção de filhos, que pertencem ao seu marido e senhor e que devem portanto assemelhar-se a este. No entanto, nada garante que a mulher não traia a sua família, preterindo-a à sua família de origem. Esta narrativa é parente de outra, o mito de Aédon, Quélidon e Politecno, cuja hybris do casal a autora desmonta de forma surpreendente.

E somos chegadas ao último mito, o de Aracne, essa magistral tecelã que não se verga à submissão e modéstia feminina e desafia a deusa Palas e que, embora se veja metamorfoseada em aranha, nos relembra de que, por vezes, o talento humano é capaz de alcançar os píncaros da perfeição e do arrebatamento divino.

Sem dúvida, um dos melhores livros publicados recentemente por cá. Terminada a leitura, regresso à minha solidão. Não vale a pena ter tanto pavor desta deusa – sem a sua influência, jamais gozaríamos de tão longos banhos de imersão e deliciosas leituras.

1 comentário:

Nome Propio - no youtube visitem me hoje! disse...

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Portugal is the Biggest Racist country that i have ever lived in. I feared for my life there and i consider myself lucky that my family got out alive! I have never lived in such poverty (Sopas dos Pobres everyday) 40% unemployment rate and 60% of the population earn less than $932 USD per month, and that's considered Middle Class here! Within the European Union it is the worst of the worst place to live.

The bottom line is the bulk of the People in our poor country exist in a brainless comma that is fed by Ignorance, anti-Spanish hate, and severe Racism of pretty much everybody that isn't Portuguese! And, Portugal started the Global Slave Trade in 1441 so it is definitely NOT a safe place for Blacks!!

I found important websites that explain the Severe multi-generational Racism and Hate that exist in Portugal today, and i highly encourage all to read them and spread the word in order to avoid innocent, and desperate people from living or visiting there. Get educated on the Truths about Racist Portugal now.

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