domingo, 8 de maio de 2011

A literatura deita muitas vidas a perder



SALDOS


Fugi muito novo da prisão
com Edmundo Dantés
e saboreei a vingança antes
de a conhecer de facto.
Fui acossado e cuspido
ao lado de Gwynplaine nas aldeias
de lama por onde passámos.
Numa tarde de Inverno, Lúcio
despertou-me para a morte
e deu-me a conhecer palavras
que eram chuva e relâmpagos
num céu que não tinha nuvens.

Estive na cama com Odette de Crécy
quando Swann espreitou
à procura da desilusão do amor.
Vesti-me de rapariga breve
em frente àquele espelho antigo
que revelou a Malte a sua androginia.
E ouvi as ondas quebrarem-se
como se a angústia chamasse
devagar pelo meu nome de água.
Senti com Fabrício a fome, a certeza
do veneno, o sol no rosto de Clélia.

Fui Quixote e Sancho e os moinhos
também. Passei muitas noites
ordinárias a folhear cartas devolvidas,
cartas de amor somente.
Em Quauhnahuac vi vulcões de álcool
arderem e abutres ternos
que esperavam pelo meu corpo.
Enrolei serpentes de tédio
ao meu colo nu de princesa
e comprei um vestido vermelho
para que reparassem no meu desespero.
Conheci o amor porque o li em Kavafis
e nalguns apressados corpos
que não posso voltar a ler.

Estive na Ponte de Pin a escrever
um longo testamento, «belo
como o tremor de mãos de um alcóolico».
Bebi do mesmo samovar que Kirilov,
mas decidi não partir tão cedo.
Conheci Malone & Molloy, meus próximos,
meus irmãos. Também tive dezassete anos,
também soube que não valia a pena tê-los.
Fui esses todos que não pude ser,
em Veneza e em Trieste, em Buenos
Aires e em Boston, ou no mar da Islândia.

Chorei lágrimas míopes, de tinta e de pouca
terra – para que não me ouvissem
os vizinhos e a posteridade.
Inventei a dor, desdisse-a, voltei.
Bebi loucamente com Anne Desbaresdes,
julgando que o vinho curava a doença da morte.
Vendi o corpo em Barcelona, na Calle
Carmen e na Calle Mediodía, só
para te comprar esta camisa – gostas?
Cheguei ao fim da noite mais cedo do que pensava.



Manuel de Freitas

Game Over

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