sexta-feira, 27 de abril de 2012

Crime e Tédio




O Doutor Glas de Hjalmar Söderberg recupera a pergunta de Crime e Castigo, para lhe dar uma resposta diferente, substituindo o frio gélido das largas avenidas de São Petersburgo pelo pacato sol da meia noite de Estocolmo e a mão pobre e desajeitada de um jovem orgulhoso pela pílula de cianeto de um homem maduro familiarizado com as infâmias da carne.

Nas primeiras páginas do romance narrado na primeira pessoa, sob o artifício de diário, o anti-herói (ou melhor, o herói sem evento, como se verá) passeia pela cidade e apresenta-se formalmente: “Eu, Tyko Gabriel Glas, médico diplomado, que, algumas vezes, ajudo os outros, mas nunca pude ajudar-me a mim mesmo, e que, com trinta anos feitos, nunca me aproximei de uma mulher.

Glas é um esteta; sabe todas as suas ideias e sonhos assentam em impressões extraídas da literatura e da arte e que não tem olhos próprios: é o olhar que o espelho devolve quando os deuses se calam e os fantasmas reinam, “uma sombra que queria tornar-se um homem”, como no conto de Andersen. Um burguês com a solidão e o tempo necessários ao pensamento, que prefere o sonho do amor à história de amor que se desfaz na manhã seguinte em flores murchas e porcaria, cativado apenas por mulheres enamoradas, oleadas por outros, mulheres que ele não tenha de foder, que não o vejam dormir e que ele não veja na manhã seguinte. “Não, não há sonho de felicidade que não morda a sua própria cauda.” Os affaires da carne são para ele a grande obscenidade e o seu ateísmo começa pela descoberta (teórica) do sexo.

Editado na Suécia em 1905, o romance causou escândalo pelas ideias inovadoras de Glas sobre o aborto e a eutanásia. “A vida humana pulula por toda a parte. E as vidas humanas distantes, invisíveis e desconhecidas, pouco importam seja a quem for, com a possível excepção de meia dúzia de filantropos cuja estupidez está muito acima da média.” Glas não partilha estas ideias com ninguém, porque a partilha de si é-lhe promíscua e porque não está disposto a arriscar a sua pele e abdicar do seu conforto. E nisto, a personagem do médico é absolutamente coerente: um homem desligado da humanidade não deseja nada, muito menos alumiar caminho para outros. Conhecendo intimamente que ninguém é culpado, rejeita apenas intelectualmente as ladainhas do dever e da moral que repete. “Nunca senti tão intensamente que a moral não passa de um carrossel que não pára de girar. Sabia-o desde há já alguns anos, mas sempre pensara que as voltas do carrossel se contavam por séculos ou por eras, e agora a minha impressão era que se contavam, afinal, por minutos ou segundos. Dir-se-ia que explodiam centelhas diante dos meus olhos.”

E talvez se ele fosse ainda capaz de se comprometer nessa ou noutra batalha qualquer, a sua sede de acção se pudesse apaziguar. Também a ele a lua da adolescência prometeu “uma felicidade ímpia ou uma infelicidade que valia mais do que todas as felicidades da terra, qualquer coisa de calcinante, de voluptuoso, e grande”.

Glas mata mas falha o acontecimento que devia curar a sua bulimia temporal. Consegue iludir os remorsos, reconhece que o mundo arde e aceita a injustiça inerente à vida, interrompendo a deriva do pensamento e colando-se à sua pele. Como todos os pensadores, ele busca a verdade e quase se perde a si mesmo, mas tem a delicadeza de se dissimular na mansidão do gado, refreando as suas ideias através de um mandamento de quem arrepia caminho para conservar a dignidades das entranhas e do estômago: “A porção de verdade que te é útil é-te dada gratuitamente, e chega-te misturada com o erro e a mentira, mas é para teu bem, uma vez que, em estado puro te queimaria as entranhas. Não tentes purgar a alma de mentiras, porque, com elas, irão muitas outras coisas em que não pensaste, e ficarás vazio de ti mesmo, e de tudo o que tem valor para ti. «Não perguntarás.»

O Doutor Glas espera mas a acção nunca lhe acontece e a vida passa-lhe ao lado, sem amor que a redima. Sai também ele derrotado, desta feita não pela culpa mas pelo tédio moderno que a todos contamina. “A chuva cai no parapeito da janela. Sinto que me cai no coração e abre nele um buraco. Há qualquer coisa que não funciona no meu cérebro. Não sei se o tenho melhor ou pior do que o normal, mas o certo é que não tenho como convém tê-lo.

E a vida continua de treva em treva. Glas não a entende ou finge não compreender, pois num parágrafo simples ele consegue resumir a razão de tanto sofrimento e tanta miséria, para tão pouco prazer: “Queremos ser amados; à falta de amor, queremos ser admirados; à falta de admiração, ser temidos; à falta de sermos temidos, odiados e desprezados. Queremos suscitar nos outros esta ou aquela espécie de sentimento. A alma tem horror ao vazio, e quer a todo o custo manter os seus contactos.

Por cumprir resta a sua profecia: “Terá de chegar, e chegará, um dia em que o direito a morrer seja considerado muito mais importante e inalienável do que o direito de introduzir um boletim numa urna eleitoral. E quando os tempos estiverem maduros para esse dia, todo o doente incurável – e igualmente todo o «criminoso» - terá direito à assistência do médico, caso deseje a libertação.” Ainda não chegou esse dia. Ainda não somos suficientemente modernos. O espectro de Deus ainda nos assombra.

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