terça-feira, 15 de maio de 2012

O Crime do Poeta






Era uma vez uma criança estranha. Na aldeia onde cresceu todos a temiam. Os mais antigos diziam que os seus olhos grandes e violetas traziam mau agouro. As línguas mais desocupadas avançavam que a criança tinha pacto com o demónio. A própria mãe desconfiava da criança desde que o seu corpo começou a crescer dentro de si. Pensara até ao momento do parto que trazia dentro do seu ventre um nado-morto.

- Senhor doutor, não pode ser. Nem um pontapé, nem um movimento, nada. Alguma coisa está mal.

O médico sorria e acalmava a mãe com ecografias e evidências científicas:

- Não se preocupe minha senhora, é um bebé forte. Olhe, deve ter um feitio muito calmo. Traz aí um santo ou santinha, é o que é!



E de facto, a criança nasceu e cresceu. Forte e quieta. Esse sossego continuou a alarmar a mãe. Recordava-lhe a quietude antes dos grandes vendavais da sua terra. Por isso, a mãe espiava a criança a toda a hora.
Um dia, quando a criança tinha sete anos, a família decidiu fazer uma viagem de sete dias pelo país. Visitaram as cidades mais importantes, mosteiros, serras e castelos. No caminho de regresso, fizeram um desvio por uma estrada antiga que serpenteava a costa marítima. A criança nunca tinha visto o mar. Entrou em frenesim no banco de trás, parlando incessantemente e suplicando que parassem uns instantes para ver o mar de perto. O pai concedeu mas disse que o faria no local mais bonito, para que a criança visse o mar a tentar tomar a terra. A criança acatou a decisão em desassossego. A mãe seguia com o rosto colado no pára-brisas, aterrorizada pela mudança súbita de comportamento, repetindo de si para si,

- É apenas uma criança, apenas uma criança que vai ver o mar pela primeira vez. Apenas isso, Maria.

Mas as mães têm sempre razão, uma razão secreta que adivinha os sismos nos corações dos filhos. O pai parou o carro e saíram todos, a mãe com medo, a criança com passos decididos e eufóricos. O pai ia explicando que aquele lugar se chamava Boca do Inferno porque se diziam que aquelas águas estavam destinadas a engolir a terra.

A criança foi pela mão do pai ver as águas a galgarem as rochas. Atraída pelo som das ondas que rebentavam violentas, soltou-se da mão paterna e abeirou-se do precipício para espreitar a origem daqueles braços de água. Nesse preciso momento, com o rosto salpicado pelas vagas tumultuosas, a criança sentiu o quebrar de tormentas no seu peito O seu coração partia-se em dois e a criança não queria arredar pé dali. Ouviu a voz da mãe, quebrada, dizer,



- Não te acerques demasiado da beira, olha que ainda cais!
E adivinhou nelas, uma vontade de catástrofe rochas abaixo e perdoou a mãe em simultâneo, porque agora a criança imaginava a dor de uma mãe e, por isso, conhecia e compreendia até os seus pensamentos mais secretos. A criança deu um passo em frente, sentiu um pêndulo dentro do peito agitar-se, reclamando o beijo do abismo e fechou os olhos. Com a alma embalada pelo aguaceiro subterrâneo, a criança ia compreendendo o mundo e a história dos seus dias, séculos, milénios, eras. O seu corpo soltava-se líquido da infância e envelhecia agilmente pela compreensão. Nesse instante, a criança, de olhos marejados pelo sal das águas, entendeu deus e teve compaixão do mundo.

Instada a recuar, desta vez, pela voz segura do pai, a criança percebeu que tudo entendia e que estava destinada a amar e a perder-se pela beleza do mundo. Mas a beleza era das matérias mais ariscas, perigosa, podia tornar-se insuportável e despedaçar num jorro a alma mais incauta. A beleza andava de mãos dadas com a loucura. E a loucura era empresa arriscada, era voo e queda.

De regresso ao carro, a família seguia silenciosa e de pés encharcados. No banco traseiro do carro, viajavam agora mais dois passageiros: a beleza e a loucura. E a criança já não era criança: tinha decidido apostar a vida. A voz da infância agonizou nessa viagem, no banco traseiro, ladeado de vidros chuvosos, com uma pergunta que suspirava:


- e se cais, para onde cais?

- Não cais para lado nenhum. O terrível da queda é isso: quando começas a cair nunca mais páras, respondeu a voz da loucura.



A mãe não ouviu este diálogo mas soube que naquela tarde tinha perdido a sua criança e seguiu gelada o resto da viagem. Nessa noite, deitou a criança que não era mais criança, muito menos sua, e beijou-lhe com tristeza resignada as faces, recordando a voz de malha da sua avó,

- É assim, filha, a gente tem os filhos mas eles pertencem ao mundo, não são nossos.



A sua avó sabia muito. Não sabia escrever mas sabia muito. Tinha parido treze filhos, dos quais apenas três vingaram até à velhice. Os outros levou-os o mundo, a guerra, o suicídio, os jogos, as terras.
Quando saía do quarto, a voz delirante chamou-a, voltou-se rápido, talvez ainda pudesse salvar a criança, talvez fosse ainda uma criança, uma criança apenas e ela não se devesse inquietar,

- Mamã?
- Sim?
- Amo a beleza.

A mãe soube então que a sua criança estava perdida, não para o mundo, mas contra o mundo, de uma forma ainda mais cruel.


- São horas de dormir,
Respondeu e saiu do quarto e nervosa admitiu primeiro para si que tinha medo daquela criança. Disse depois mais tarde, já deitada na cama, em voz alta para o seu marido,

-
A criança é diferente, José.
- Diferente como?
- Tu não notas?
- Não. Tu que notas?
- Não sei. Não sei bem. É estranha, José!
- Não é nada. Isso são preocupações de mãe. Está tudo bem.
O homem abraçou-a com as mãos largas e ásperas e ela amou-o como já não o amava há muitos anos. E quis acreditar que tudo estava bem. Jurou muda que nunca mais falaria nisso e que tudo estava bem.

Semanas depois, a criança saiu um dia de casa, ainda de madrugada, usou de passos adultos para ir até ao jardim oriental que ficava na outra margem da cidade mais próxima da aldeia. Cruzou-se com os fantasmas da noite, prostitutas, chulos, ladrões, bêbados, mas nem ela teve medo nem nenhum ousou falar-lhe ou fazer-lhe mal.

A criança amava o lago que havia nesse jardim e as centenas de carpas que se afadigavam nas águas num trânsito de cores. Nessa manhã, a criança levava nas suas mãos o imperativo da beleza. Distribuiu veneno pelas águas e aguardou com os olhos hipnotizados as bocas que bailavam á superfície e devoravam o veneno. A criança imaginou que em cada uma daquelas bocas escancaradas se arrendondava uma palavra derradeira.

Esgotado o baile das bocas e das palavras, o sol nasceu amarelo e forte sobre um lago onde centenas de carpas bailavam mortas à tona das águas paradas na recordação de um antigo trânsito de cores. Um crime tinha sido cometido, o real tinha sido assassinado pela ideia que uma criança tinha da beleza.

Alertadas as autoridades, a criança foi levada para casa, repreendida, os pais informados e encarregues do castigo. A mãe fechou-a no quarto durante duas semanas, com as persianas cerradas e sem ver nem falar com ninguém. As refeições foram parcas e entregues em silêncio pela cara ofendida da mãe. A criança não percebia que mal tinha feito para merecer esse castigo e tratou de ocupar o tempo lendo.

Apaixonou-se então pelas palavras e pensou que nelas poderia encontrar a sua redenção e o perdão da mãe. Um dia, quando o rosto encerrado da mãe assomou na ombreira a criança disse com voz de criança,

- Mãe, escrevi-te um poema, para que me perdoes.

A mãe, pegou no papel, desconfiada, e leu. No final, começou a rir contente e olhou a criança pela primeira vez com olhos de mãe e disse, numa comoção de voz alagada:
- É muito bonito! É lindo!


Nessa noite, pude tornar a jantar com o meu pai e a minha mãe. Uma mãe nova e alegre. Também eu me sentia alegre. Tinha descoberto que com as palavras podia cometer todas as loucuras e crimes em nome da beleza e sair impune. Assim cresci e me tornei poeta.




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