quarta-feira, 30 de maio de 2012

sempre a mesma dor de ser quase:


Não consigo evitar um certo misticismo recente em mim. Após mais uma série de jogos mentais em que a minha cabeça se serviu de todos os limites para me desafiar, sobreveio em Março uma crise nervosa violentísima e deixei Lisboa às pressas. Rumo à minha infância e à minha fragilidade. Fugi com medo, verdadeiro terror, tendo visto a noite em pleno meio-dia e não sabendo como voltar as vestir as coisas mortas e tornar a viver. A única salvação possível que se me afigurava era entrar pela carne a dentro dos outros para não sentir tanto o mal-estar do meu corpo. Fui para junto dos meus, magra, assustada, e pedi ajuda, pela primeira vez. E a coisa correu francamente bem, tão simples e apaziguador como… como pedir e receber.

Recobrei. Recobro todos os dias, ainda a medo, frágil, doce. E nos últimos dias, perante alguns acontecimentos, constatei em mim algo que se constituía como uma enigma: perante situações temerosas ou passionais, não consigo sentir nada, sou de uma insensibilidade dura que por vezes fere a carne dos outros; noutros casos, em contextos insignificantes, como perante o encontro de um rosto anónimo no metro, uma tonalidade do céu, o aroma de uma esquina, uma frase ou melodia, o sangue ferve e quebro com a facilidade de um ramo seco. Que estranha álgebra poderá explicar esta insensibilidade mórbida que vibra com os nervos arrebitados em franja?

Andava às voltas com esta pergunta enquanto lia A Educação Sentimental do caríssimo Flaubert e eureka! eis que mais uma vez, ele me explica a mim mesma! As semelhanças com Madame Bovary são extensas; fiquemo-nos pelas mais evidentes: o protagonista Frédéric, jovem possuído pelas suas leituras românticas que obsessivamente tenta replicar, entendia-se perante o atraso da felicidade merecida pela excelência do seu espírito. Os primeiros capítulos apresentam-no como um animal engaiolado nas suas fantasias, as suas ocupações exclusivas consistem em olhar, meditar, sonhar, aborrecer-se mortalmente, deambular pelos bulevares de Paris para se distrair de si e aturdir-se com a multidão e o rumor contínuo. A sua libido fixou-se obsessivamente numa senhora casada.

“As prostitutas que encontrava à luz do gás, as cantoras soltando gorjeios, as amazonas nos seus cavalos a galope, as burguesas a pé, as costureirinhas à janela, todas as mulheres, ou por semelhanças ou por contrastes violentos, lhe recordavam a Senhora Arnoux. Olhava, ao longo das lojas, os xailes, as rendas e os pingentes de pedrarias, imaginando-os enrolados à volta dos seus rins, cosidos ao espartilho, fazendo reflexos na cabeleira negra. Nos expositores das vendedoras, desabrochavam as flores para que ela as escolhesse, ao passar; na montra das sapatarias, as pequenas pantufas de cetim bordadas pareciam esperar o seu pé; todas as ruas iam dar a casa dela; as carruagens estacionavam nas praças abertas apenas para o levarem lá mais depressa; Paris ligava-se à sua pessoa, e a grande cidade, com todas as suas vozes, sussurrava como uma imensa orquestra em torno dela.”

Mas a semelhança fundamental entre este romance e o outro é o tédio, que parasitando tudo e todos, constitui a afecção dominante e pano de fundo de toda a narrativa. Flaubert explora as múltiplas nuances da grande afectação da modernidade para nos legar uma cartografia do sistema nervoso desarranjado (assunto íntimo para ele também, vítima de sucessivas crises nervosas que a ciência da altura não consegue definir e que o levam a abandonar estudos e a vida parisiense na primeira juventude). É ao ritmo do tédio e de uma ociosidade estéril que as suas personagens são impulsionadas para paixões sempre decepcionantes; a vida flui e esvai-se num vazio sem fundo, os eventos e as reviravoltas não sucedem (a Revolução provoca apenas uma vontade de rir imensa), enquanto os detalhes, as pequenas vírgulas da história (com “h” minúsculo) se convertem em falsos acontecimentos.

Esta bulimia temporal impede qualquer trabalho, emoção ou valor de perdurar e solidificar-se na História (com “h” grande) que, falhando a sua oportunidade de incorporação no real, não encontra outra alternativa que não a de permanecer refém do Imaginário, hegemonicamente romântico.

“Falavam do que fariam mais tarde, depois de saírem do colégio. Primeiro, empreenderiam uma grande viagem com o dinheiro que Frédéric havia de levantar antecipadamente da fortuna que lhe estava destinada, quando antigisse a maioridade. Depois regressariam a Paris, trabalhariam juntos, não se separariam; e, como refrigério para os seus trabalhos, teriam amores de princesas em alcovas de cetim, ou orgias fulgurantes com cortesãs ilustres. Mas as dúvidas sucediam-se aos seus arrebatamentos de esperança. Após as crises de alegria verbosa, caíam em silêncios profundos.”

A crença romântica na ideia de génio e de sublime originam um sentimento de magnanimidade narcísica engajado numa extenuante demanda por emoções extraordinárias, quase inumanas, que raramente encontram coincidência no real; pensamentos e sentimentos divorciam-se em infindáveis ciclos de mania e melancolia que se sucedem ao longo das páginas, muitas vezes apenas intervalados por uma ponto e vírgula, onde a cólera alterna com a compaixão, o ciúme encontra na ponta da sua faca o desejo mais intenso e a ternura culmina em decepção.

O ciclo de mania-melancolia, onde a intensidade de cada pólo depende do seu extremo, é replicado na dinâmica dos dois amores de Frédéric:

“O convívio com estas duas mulheres, criava na sua vida como que duas músicas: uma folgazã, arrebatada, divertida, a outra grave e quase religiosa; e, vibrando ao mesmo tempo, aumentavam sempre e, a pouco e pouco, confundiam-se; porque, se a Senhora Arnoux lhe tocava só com um dedo que fosse, a imagem da outra, logo se apresentava ao seu desejo, porque tinha, desse lado, uma fortuna menos longíqua; e, na companhia de Rosanette, quando lhe acontecia sentir o coração enternecido, lembrava-se imediatamente do seu grande amor.”

E assim se encontra a raiz dos movimentos dissipadores da adição moderna: perante um vazio narcísico e entendiado que se auto-devora, tudo serve como recurso estimulante ou narcótico, consoante a circunstância e pretensão. O amor, sobretudo o romântico, é em Flaubert a droga protagonista por eleição, fármaco que ora remedia, ora envenena.

“Rodopiavam tão perto dele que Frédéric lhes distinguia as gotinhas de suor nas testas; e este movimento giratório cada vez mais vivo e regular, vertiginoso, transmitindo-lhe ao pensamento uma espécie de embriaguez, sugeria-lhe outras imagens, enquanto todas passavam com o mesmo deslumbramento, e cada uma com uma excitação particular consoante o género da sua beleza. A Polaca, que se abandonava de um modo langoroso, inspirava-lhe o desejo de a apertar contra o peito, fugindo os dois num trenó pela pradaria coberta de neve. Horizontes de volúpia tranquila, à beira de um lago, num chalé, desenrolavam-se sob os passos da Suiça, que valsava de torso direito, e de pálpebras descidas. Depois, de súbito, a Bacante, inclinando para trás a cabeça morena, fazia-o sonhar com carícias devoradoras, em bosques de loureiros cor-de-rosa, num tempo de tempestade, no meio do ruído confuso dos tamboris. A Peixeira, a quem o ritmo rápido tirava o fôlego, soltava risadas; e ele teria gostado, ao beber com ela nos Porcherons, de lhe amarfanhar, com ambas as mãos, o lenço que trazia ao pescoço, como nos bons velhos tempos. Mas a Estivadora, cujas pontas dos pés mal afloravam o chão, parecia ocultar na ligeireza dos membros e no ar sério do rosto todas as subtilezas do amor moderno, que tem a justeza de uma ciência e a mobilidade de um pássaro.”

Mas tudo o resto é mobilizado pela valsa do desejo historicamente frustrado: o vinho acalma, o desprezo excita, os perfumes enervam, os bailes distraem, a compaixão expande, a política atordoa, a morte diverte, a vida citadina alegra, etc., mas logo, as drogas confundem as suas propriedades anestésicas e euforizantes e tudo se baralha de novo, e o vinho excita, o desprezo acalma, os perfumes tranquilizam, os bailes aborrecem, a compaixão retrai, a política estimula, a morte irrita, a vida citadina deprime e a dura insensibilidade alterna com enervamentos subtis numa dança despropositada de compassos desvairados.

Todos as personagens desta Educação são líquidas, fantoches de emoções fraudulentas porque transitórias, que se enganam uns aos outros, ocultando a atrofia sentimental por detrás da máscara de uma sensibilidade extrema que não passa de nervos em franja. Os caçados aceitam as mentiras como homenagens áquilo que não sentem mas gostariam de sentir e os caçadores, inebriados pelas próprias palavras, chegam a acreditar no que dizem.

“- O que se passa? Estou arruinada, arruinada! Estás a ouvir?

(…)

- É a miséria, pois não posso oferecer-te uma grande fortuna!

Apenas tinha trinta mil libras de rendimento, sem contar com o palacete, que valia talvez dezoito a vinte, não mais.

Embora isso fosse a opulência para Frédéric, nem mesmo assim deixou de sentir uma decepção. Adeus sonhos, e toda a grande vida que iria levar! A honra forçava-o a desposar a Senhora Dambreuse. Reflectiu um minuto: depois, com um ar terno:

- Vou ter-te sempre, a ti!

Ela lançou-se-lhe nos braços; e ele apertou-a contra o peito, com uma ternura em que havia um pouco de admiração por si próprio. A Senhora Dambreuse, cujas lágrimas já não corriam, ergueu o rosto, radiante de felicidade e, pegando-lhe na mão:

- Ah, eu nunca duvidei de ti! Contava com isso!

Esta certeza antecipada daquilo que ele considerava como uma boa acção desagradou ao jovem.”

A educação sentimental de Frédéric vai consistir no desmoronar de todos os seus sonhos. Acompanhamos o seu desinteresse pelos estudos, a sua miséria na província e o entusiasmo com que recebe a herança do tio, a sua introdução na alta sociedade, a sede de luxo, da vida citadina e de mulheres. É pai e perde o filho. Quase casa. Quase volta para a província. No final do romance, quando a juventude já passou, Frédéric constata que falhou a sua vida. A felicidade aparece-lhe como uma imagem passada – uma imagem romântica que assombrou e devorou o seu futuro.

Com o retraimento dos deuses e a correlativa imanentização do mundo na modernidade, ficámos reféns da própria carne, encerrados e ensarilhados em nós mesmos, a todo o instante buscando um meio de escape que nos alivie do facto dos céus terem desabado e termos ficado aqui em baixo tão sozinhos. E tão sozinhos vamos de droga em droga, de sexo em sexo, de emoção em emoção buscando algum consolo, mas ainda assim, incapazes de abandonar a trincheira da nossa solidão narcísica e expropriar os nossos corpos ao Amor e à Revolução, porque as imagens esteticizadas sugam o nosso sangue e impedem os afectos genuínos, por certo bem menores e menos belos, e a capacidade dos nossos rostos tocarem e serem tocados. Mas, durante algum tempo, nada disto importa muito porque da moral aturdida nasce um gozo perverso.

“Os seus lindos olhos húmidos cintilavam de uma paixão de tal forma poderosa que Frédéric a atraiu para os joelhos e disse para consigo: «Sou mesmo um grande canalha!», aplaudindo-se pela sua perversidade.”

O pior é que também este orgulho imprevisto perde eventualmente a flor da sua novidade. O que nos sobra, portanto já não é o Grande Outro, Deus, mas o Outro, o humano. Enquanto ele não assoma, recaímos no mesmo vazio intímo, esse tédio desértico, e recorremos a meios para excitar os sentidos e sentir qualquer coisa a mais de Outro e a menos do Mesmo. No dia seguinte, a inevitável ressaca – todo o prazer se paga – e voltamos a sentir demais. Do Mesmo: ou seja, o sentir tanto até quebrar, que me intrigava, é apenas sentir-me demais. A ver se me esqueço então de caçar a minha própria pele…

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