domingo, 15 de julho de 2012

A cantiga do bandido explicada às criancinhas


“Nestas relações, aliás eu satisfazia ainda outra coisa, além da sensualidade: o meu amor do jogo. Eu amava nas mulheres as parceiras de um certo jogo, que tinha, pelo menos, o sabor da inocência. Veja bem, não posso suportar o tédio e só aprecio na vida as distracções (…).

Por conseguinte, eu ia no jogo. Sabia que elas gostavam que se não fosse muito depressa ao fim. Antes de tudo, era precisa conversa, ternura, como elas dizem (…). Mudava muitas vezes de papel, mas tratava-se sempre da mesma peça. Por exemplo, o número da atracção incompreensível, do «não sei quê», do «não há razões, eu não desejava ser atraído, estava, no entanto, cansado do amor, etc…» era sempre eficaz, posto que seja um dos mais velhos do repertório. Havia também o da felicidade misteriosa que nenhuma outra mulher jamais nos deu, que é talvez sem futuro, de certeza mesmo (…). Eu tinha aperfeiçoado, sobretudo, uma pequena tirada, sempre bem recebida, e que o senhor aplaudirá, tenho a certeza. O essencial desta tirada consistia na afirmação dolorosa e resignada, de que eu não era nada, não valia a pena prenderem-se a mim, a minha vida estava alhures, passava ao lado da felicidade de todos os dias, felicidade que talvez eu preferisse a tudo o resto, mas, enfim, era tarde demias. Sobre as razões deste atraso decisivo, eu guardava segredo, pois sabia que era melhor dormir com o mistério. Em certo sentido, aliás, acreditava no que dizia, vivia o meu papel. Não admira, pois, que as minhas parceiras se entusiasmassem também com o delas. As mais sensíveis das minhas amiguinhas esforçavam-se por me compreender e este esforço levava-as a melancólicos abandonos. As outras, satisfeitas por verem que eu respeitava as regras do jogo e tinha a delicadeza de falar antes de agir, passavam sem esperar às realidades. Tinha então ganho duplamente, pois que, além do desejo que sentia por elas, satisfazia o amor que eu me dedicava, verificando de cada vez os meus belos poderes.

Tanto isso é verdade que, mesmo se acontecia que algumas me não dessem senão um prazer medíocre, eu tratava, contudo, de reatar com elas, de longe em longe, animado, sem dúvida, por este desejo singular que é favorecido pela ausência, seguida de uma cumplicidade de súbito reencontrada, mas também para verificar que os nossos laços se mantinham ainda e que só a mim competia estreitá-los. Por vezes, chegava mesmo ao ponto de lhes fazer jurar que não pertenceriam a nenhum outro homem, para aplacar de uma vez para sempre, as minhas inquietações sobre este ponto. O coração, todavia, não tomava parte alguma nesta inquietação, nem a imaginação tão-pouco. Uma certa espécie de pretensão estava, com efeito, tão encarnada em mim que eu tinha dificuldade em imaginar, apesar da evidência, que uma mulher que havia sido minha pudesse alguma vez pertencer a outro. Mas este juramento que elas me faziam libertava-me, prendendo-as. Desde o momento que não pertenciam a ninguém, podia então decidir-me a romper com elas, o que, de outra maneira, me era quase sempre impossível. A verificação, no que lhes dizia respeito, estava feita de uma vez para sempre e o meu poder assegurado por muito tempo. Curioso, não? É, no entanto, assim, meu caro compatriota. Uns gritam: «Ama-me!» Outros: «Não me ames!». Mas uma certa raça, a pior e a mais infeliz: «Não me ames e sê-me fiel!»

Somente, aí está, a verificação nunca é definitva, é preciso recomeçá-la com cada ser. À força de recomeçar, contraem-se hábitos. Bem depressa o discurso nos surge sem pensarmos nisso, segue-se o reflexo: encontramo-nos um dia numa situação de possuir sem verdadeiramente desejar. Acredite-me, para certos seres, pelo menos, não possuir o que se não deseja é a coisa mais difícil do mundo.”


Albert Camus, A Queda

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