domingo, 2 de setembro de 2012

Lisboa, 2 de Setembro



Oslo, 31 de Agosto. Não falta ali nada. Um homem de 34 anos perdido, ex-toxicodependente tenta regressar à vida. Recomeçar do zero é impossível, os outros e ele próprio não perdoam. Os outros que também estão no mesmo barco à deriva, e que não admitem que alguém esteja mais partido que eles. Todos fodidos, náufragos pouco solidários: importa manter a farsa e seguir andando. O homem é apenas a baixa mais evidente, a braços com um problema comum que excede a heroína. A droga nunca é o problema. É a solução. Existem outras: o trabalho, a televisão, o casamento, os filhos, blá-blá.
E qual é o problema do homem, afinal? O problema é ter nascido numa época descomplicada, obrigado ao sucesso e à felicidade. É ser demasiado inteligente, ver e dizer o que não pode ser visto nem dito. É ter desprezado a idiotia da felicidade para aprimorar um talento que não pode cumprir porque quando nos pomos a cismar mais do que os outros caímos no buraco e então, é o ver-se-te-avias para tornar a subir e regressar ao mundo dos vivos.
Falta ali tudo. Naquele olhar descrente de quem sonhou uma vida diferente, uma vida mais próxima do extraordinário, da beleza, e soçobra todos os dias perante a realidade chã, crua e pobre. As pessoas e as coisas opacas, incapazes de devolver qualquer sentido. “São coisas que nunca se mostram nos filmes: o sentimento de não saber porque é que estamos perdidos, apesar de termos vidas confortáveis ou de virmos de famílias privilegiadas.” “Nos meus filmes, tenho falado sempre da «dupla vergonha» de fracassar, ao não se conseguir fazer aquilo para que se tem talento no contexto de uma vida privilegiada num dos países mais ricos do mundo, e de não ter razões de queixa. Fracassar na Noruega é uma dupla vergonha: com o mundo como está tínhamos obrigação de ser felizes. Porque é que não somos?”
Impossível evitar a identificação narcísica automática. A caminho da praia, uma amiga confessa, de sorriso leve,  que ao ler sobre o filme pensou “epá isto é a minha vida”. Com a mesma leveza, retribuo graciosamente “a tua e a de todos nós. Fomos todos ludibriados. Quero o meu dinheiro de volta!”. Ironizamos depois sobre a sorte da nossa catástrofe quotidiana não se passar na Noruega e lá vamos nós a banhos, desprendidas como quem acredita ainda. Fazemos como o protagonista do filme: sorrimos da nossa desgraça e da dos outros e fazemos de conta que não se passa nada de extraordinário.
E de facto, nada de extraordinário se passa. Só esta tragédia banal, diária, onde se faz o que se pode para se persistir. Sem esperanças de luz nem rasgos de indignação – apenas a frustração de termos falhado quando tínhamos tudo a nosso favor. Todos os dias sacrificamos a grande vida, seja lá o que isso for, ao altar da puta da vidinha.
Faltava um frame final no filme: os rostos daqueles que estavam na sala na última sessão deste sábado. Entre eles, um velhote circunspecto de bengala. Lá ia um sobrevivente declarado.

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