domingo, 24 de agosto de 2014

Katherine Anne Porter, aka Miranda


Tenho uma nova heroína na minha lista de admirações: Katherine Anne Porter.
Desde o ano passado, altura em que a Antígona anunciou a publicação de "Cavalo Pálido, Pálido Cavaleiro", que aguardava com impaciência a chegada deste título às minhas mãos. A razão desta impaciência era apenas intuitivamente emocional, convocada pelo título poético, pois nada sabia desta autora.
Em Julho, fui de férias com o Cavalo Pálido e regressei a Lisboa rendida aos sortilégios da escrita de Porter. A qualidade dos três contos era igualmente excelente mas confesso que o que mais me cativou foi a personagem Miranda, eixo central de dois dos contos e afirmado alter ego da autora.
Em Agosto, tornei a partir de férias para o sobrelotado Algarve na companhia da Katherine Anne Porter, desta vez com a antologia "A Torre Inclinada e outros contos", da Relógio d'Água (já agora uma pequena anotação: "Judas em flor e outros contos" teria sido uma escolha de título mais feliz, na minha opinião). E mais uma vez, apesar da inegável qualidade dos vários contos, continuei a preferir os envoltos na respiração de Miranda. Não restam dúvidas que se trata de um alter ego de Katherine, pois doutro modo a sua autenticidade não se tatuaria na pele com uma tal violência poética.
Não me recordo quem disse (ou escreveu) que é possível amar mais personagens que certas pessoas. No caso, os livros de Katherine Anne Porter são do melhor que li este ano e Miranda tornou-se, com todos os seus desassombros, uma das pessoas que mais gosto.


«Miranda observava o irmão com um ar de admiração enquanto este se livrava da pele como se estivesse a tirar uma luva. A carne esfolada emergia, de um escarlate-escuro, lustroso, firme; entre o polegar e o indicador, Miranda sentiu os longos músculos finos com as tiras lisas e prateadas que os uniam às articulações. O irmão ergueu a barriga estranhamente inchada. "Olha", disse-lhe, numa voz baixa e maravilhada. "Ia ter bebés."
Com muito cuidado, ele rasgou a pele fina das costelas centrais até aos flancos, ao que um saco escarlate apareceu. Voltou a rasgar e abriu o saco, e aí estava uma ninhada de coelhos minúsculos, cada um envolvido num fino véu escarlate (...).
Miranda disse: "Oh, eu quero ver", num sussurro. Olhava e olhava - empolgada mas não assustada, pois estava habituada a ver animais mortos em caçadas -, cheia de pena, fascínio de uma espécie de encantamento chocado perante as criaturas maravilhosas e pequenas por si sós, que eram tão bonitas. Tocou numa delas com o maior dos cuidados: "Ah, há sangue a correr por cima deles", disse, e começou a tremer, sem saber porquê. Contudo, queria mais do que qualquer outra coisa ver e compreender. Tendo visto, sentiu de imediato que era como se sempre tivesse compreendido. A própria memória da sua ignorância anterior despareceu, ela sempre compreendera aquilo mesmo (...).
Miranda nunca o revelou, nem alguma vez teve vontade de contar a quem quer que fosse. Pensou em toda a questão preocupante com uma infelicidade confusa durante alguns dias. Depois o episódio foi-se afundando na sua mente, coberto por milhares de impressões acumuladas ao longo de quase vinte anos. Certo dia, ela estava a avançar com cuidado para não pisar poças e resíduos esmagados na rua de um mercado numa cidade desconhecida de um país desconhecido quando, sem aviso, nítido e claro com todas as cores, como se visse através de uma moldura uma cena em que não tivesse mexido nem feito alterações desde o momento em que acontecera, o episódio desse dia longínquo saltou de onde fora sepultado para se colocar em lugar de destaque na sua mente (...). Um vendedor índio tinha erguido à sua frente uma bandeja de doces açucarados tingidos, em formas de inúmeras criaturas pequenas: passarinhos, pintainhos, láparos, cordeiros, bacorinhos. Eram de cores alegres e cheiravam a baunilha, talvez...»

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