domingo, 18 de setembro de 2016

Malboro Sarajevo



As minhas viagens começam muito antes da viagem propriamente dita. Uns meses antes, leio guias, livros de viagens e pesquiso sobre a literatura de cada país, buscando obras e escritores que ainda não conheço. Faço depois uma lista de livrarias a visitar e dos livros a comprar.

Antes de ir para a Bósnia, comecei a ler Malboro Sarajevo, de Miljenko Jergovic. Para além d’ O Pátio Maldito, de Ivo Andric, que já tinha lido e gostado muito, era o que havia da zona nas minhas estantes. Composto por várias histórias curtinhas, do tamanho de um cigarro, todas relacionadas com o cerco a Sarajevo, este livro falou-me com a mesma bondade, resiliência e humor sombrio que encontrei nos olhos daquele povo.

Assim, uma vez, enquanto cavava a sepultura de Salem Bicakcija, que o franco-atirador apanhara no pátio, chegou um jornalista americano, ouviu que eu tinha vivido muito tempo na Califórnia, que tinha visto o mundo, que conhecia a língua e as pessoas, e que agora estava outra vez a trabalhar como coveiro, pelo que lhe pareceu que lhe pudesse dizer o que aconteceu com as pessoas em Sarajevo. Estou eu assim a cavar, ele está de pé e faz perguntas, diz que lhe interessa tudo, e eu então pergunto-lhe tudo sobre os vivos, ou tudo sobre os mortos, ele diz sobre uns e sobre outros, mas eu digo-lhe que não se pode falar dos vivos e dos mortos ao mesmo tempo porque os mortos têm a vida atrás de si, enquanto os vivos não sabem o que ainda os espera e com o que ainda podem estragar ou envilecer aquilo que já viveram, é mais difícil para os vivos, digo-lhe eu, porque ninguém sabe onde estará a sua sepultura, no vale ou na encosta, ou se alguém se lembrará como, cabisbaixos ou alegres, andavam pelo dunya. Pergunta-me o americano o que é o dunya, não sei mesmo encontrar-lhe uma palavra inglesa, sorriu e digo-lhe – isto é, meu jornalista, algo como: all over the world. Para alguns all over the world é de Bascarsija a Marijindvor, para outros é à volta do globo terrestre. E feliz, tal como infeliz, pode ser quer um quer outro. Ele anui com a cabeça, vejo que nem percebe o que lhe estou a dizer, nem está lá muito interessado, mas eu estou bem na mesma, sabe-me bem ter alguém com quem falar enquanto estou a cavar (…). O americano continua a assentir, eu digo-lhe que desculpe a indiscrição de eu ter dito algo desagradável sobre a sua pátria, e ele, parvo, pergunta-me então se estou preparado para morrer nesse instante. «Pensei», digo-lhe, «numa centena de maneiras de sobreviver e cada uma me lembra igualmente o prazer e a alegria, ninguém é mais feliz do que eu quando escapo a uma granada, e depois ainda venho para junto dos meus mortos cavar estas valas, no lugar mais bonito e com a melhor vista, e sei que eles, tal como eu, veneravam a vida e que a morte lhes veio da mesma maneira que a conta te escapa nos flippers depois de teres conseguido cem vezes cem pontos, podias até ter conseguido mais, mas, lá está, não conseguiste. A vida vale só se sabes que a tens, senão a morte apanha-te desprevenido, nem sabes que viveste, a mulher e os filhos choram-te porque desperdiçaste os anos sem juízo, como uma galinha que não sabe morrer quando lhe cortas a cabeça.» Pergunta-me o americano o que mudou nos rostos das pessoas, e eu digo-lhe que não sei, mas que também o tinha notado, que de algum modo são mais bonitos e solenes, e ele então pergunta porque se matam se estão tão solenes. (…) Arrependi-me de ter dito fosse o que fosse ao americano, ou que pelo menos não lhe tivesse dito que nós somos um povo infeliz e indefeso para quem atiram as bestas dos tchetniks e que ficámos todos loucos de infelicidade. Ele escrevê-lo-ia assim, e eu não pareceria um idiota nem a mim nem a ele.


Os muçulmanos bósnios agradaram-me tanto que a próxima viagem será a Marrocos e, se tempo houver, também à Argélia. Naturalmente, todas as sugestões literárias serão bem-vindas.

1 comentário:

Luis disse...

este livro é fantástico