Cada vez
se ouve falar mais de docuficção e de romances de não-ficção. Creio que a
tendência deriva de um facto essencial: não conseguimos suportar a vida apenas
com base no quotidiano mas também não nos identificamos com histórias sem
carnalidade. É preciso encantar novamente a vida e despertar do longo sono os
deuses adormecidos e silentes.
O
METEREOLOGISTA de Olivier Rolin poderá encaixar nessa categoria de romance de
não-ficção. Mas o único mérito reside no facto do Rolin ter encontrado uma
história impressionante – a história verídica de Alexei Feodossevitch
Vangengheim, o metereologista da URSS, acusado, em 1934, de sabotador do
socialismo e deportado para um campo de concentração e, que até à véspera da
sua morte atroz, enviava à pequena filha Eleonora desenhos, herbários e adivinhas.
A reprodução a cores de parte dessa correspondência, belíssimamente ilustrada,
foi afinal a razão que me levou a comprar este livro.
A
leitura flui, de forma dolorosa, indignada, pois estamos sempre a recordar-nos
que aquela história aconteceu realmente – e a perguntar-nos, vezes e vezes sem
conta, como foi possível? Como é
possível? O livro vale sem dúvida pela história que nos revela e pela
russofonia do autor mas, ainda assim, senti em certas passagens que faltava a
Olivier Rolin unhas para alcançar a grande beleza do romance de não-ficção.
Parece mais um diário, com as recolecções possíveis dos factos e algumas
divagações, como se o autor tivesse medo de arriscar uma fusão mais empática
com as suas personagens. E, no entanto, pergunto-me, será possível empatizar-se
com um real tão pobre poeticamente, tão ridiculamente violento e triste? Dificilmente,
creio.
E
talvez que este livro não me tenha preenchido por completo, porque me recordava
repetidamente O CASO DO CAMARADA TULAEV, muito provavelmente o melhor romance
de não-ficção sobre o grande terror das purgas estalinistas. A história de
Vangengheim repete o que já tinha aprendido nessa obra-prima: o motivo rídiculo
pelo qual se é acusado de sabotagem do socialismo, os mecanismos dessa imparável
engrenagem da morte que faz com que os inocentes acabem por confessar os crimes
imaginários de que são acusados, os detractores e fuziladores que acabam também
eles por ser denunciados e fuzilados, os Matveiev dessa época assombrosa…
É altura de apresentar Mikhail
Matveiev, executor do NKVD (…). É pela sua mão, pois faz ponto de honra de não
delegar a tarefa de matar, nunca se cansa de sangue, é pela sua mão que vai
morrer Alexei Feodossievitch Vangengheim (…). Durante a guerra civil, participa
na tomada do Palácio de Inverno (que não foi de modo algum o evento heróico
fabricado por Einsenstein), mas é enquanto encarregado das execuções, um cargo
que tem futuro, que integra a polícia política em 1918. Como recompensa pelo
seu trabalho, que faz com paixão (ele não é de todo um «sabotador»), recebe
distinções que têm nome de revólveres: Browning, Walter. Relógios de ouro,
aparelhos de radio Radiola. Mimos para um carrasco. Toma portanto conta em Kem
da coluna dos mil cento e dezasseis condenados das Slovoki (…).
O lugar da execução é «na floresta»,
sem mais pormenor – não há outra coisa senão floresta em torno de Medvejegorsk.
Cavam grandes valas, precipitam-se os condenados para dentro delas, viram-nos
de barriga para baixo e matam-nos com um tiro na nuca. Não «alguém» mas ele,
pessoalmente, Matveiev. Quando lhe perguntam se viu alguns dos seus homens dar
uma sova aos condenados, responde que de facto aconteceu mas não chegou a ver
porque estava em baixo, na cova, com o seu revólver Nagant. De vez em quando,
quando se sente cansado, quando tem vontade de descomprimir, de fumar um
cigarro, volta a subir e passa a tarefa ao seu adjunto, o tenente Alafer, mas,
regra geral, é ele que se encontra no fim da cadeia, as suas botas na lama
sanguinolenta, cheia de miolos. Todos os dias, ou antes todas as noites, porque
aquelas coisas têm lugar à noite, nas noites de vinte e sete de outubro de 1937
e de um a quatro de novembro (…), ele avia entre duzentos e duzentos e
cinquenta contrarrevolucionários. E, para além disso, tem de assinar as
declarações que atestam que cada sentença foi executada. Em suma, trabalha a
mata-cavalos, mereceu o seu relógio de ouro.
Como foi possível? Como é possível?
Como foi possível? Como é possível?
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