sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Da metereologia e das nuvens



Cada vez se ouve falar mais de docuficção e de romances de não-ficção. Creio que a tendência deriva de um facto essencial: não conseguimos suportar a vida apenas com base no quotidiano mas também não nos identificamos com histórias sem carnalidade. É preciso encantar novamente a vida e despertar do longo sono os deuses adormecidos e silentes.


           
O METEREOLOGISTA de Olivier Rolin poderá encaixar nessa categoria de romance de não-ficção. Mas o único mérito reside no facto do Rolin ter encontrado uma história impressionante – a história verídica de Alexei Feodossevitch Vangengheim, o metereologista da URSS, acusado, em 1934, de sabotador do socialismo e deportado para um campo de concentração e, que até à véspera da sua morte atroz, enviava à pequena filha Eleonora desenhos, herbários e adivinhas. A reprodução a cores de parte dessa correspondência, belíssimamente ilustrada, foi afinal a razão que me levou a comprar este livro.


            
A leitura flui, de forma dolorosa, indignada, pois estamos sempre a recordar-nos que aquela história aconteceu realmente – e a perguntar-nos, vezes e vezes sem conta, como foi possível? Como é possível? O livro vale sem dúvida pela história que nos revela e pela russofonia do autor mas, ainda assim, senti em certas passagens que faltava a Olivier Rolin unhas para alcançar a grande beleza do romance de não-ficção. Parece mais um diário, com as recolecções possíveis dos factos e algumas divagações, como se o autor tivesse medo de arriscar uma fusão mais empática com as suas personagens. E, no entanto, pergunto-me, será possível empatizar-se com um real tão pobre poeticamente, tão ridiculamente violento e triste? Dificilmente, creio.
            
E talvez que este livro não me tenha preenchido por completo, porque me recordava repetidamente O CASO DO CAMARADA TULAEV, muito provavelmente o melhor romance de não-ficção sobre o grande terror das purgas estalinistas. A história de Vangengheim repete o que já tinha aprendido nessa obra-prima: o motivo rídiculo pelo qual se é acusado de sabotagem do socialismo, os mecanismos dessa imparável engrenagem da morte que faz com que os inocentes acabem por confessar os crimes imaginários de que são acusados, os detractores e fuziladores que acabam também eles por ser denunciados e fuzilados, os Matveiev dessa época assombrosa…
            
É altura de apresentar Mikhail Matveiev, executor do NKVD (…). É pela sua mão, pois faz ponto de honra de não delegar a tarefa de matar, nunca se cansa de sangue, é pela sua mão que vai morrer Alexei Feodossievitch Vangengheim (…). Durante a guerra civil, participa na tomada do Palácio de Inverno (que não foi de modo algum o evento heróico fabricado por Einsenstein), mas é enquanto encarregado das execuções, um cargo que tem futuro, que integra a polícia política em 1918. Como recompensa pelo seu trabalho, que faz com paixão (ele não é de todo um «sabotador»), recebe distinções que têm nome de revólveres: Browning, Walter. Relógios de ouro, aparelhos de radio Radiola. Mimos para um carrasco. Toma portanto conta em Kem da coluna dos mil cento e dezasseis condenados das Slovoki (…).

            O lugar da execução é «na floresta», sem mais pormenor – não há outra coisa senão floresta em torno de Medvejegorsk. Cavam grandes valas, precipitam-se os condenados para dentro delas, viram-nos de barriga para baixo e matam-nos com um tiro na nuca. Não «alguém» mas ele, pessoalmente, Matveiev. Quando lhe perguntam se viu alguns dos seus homens dar uma sova aos condenados, responde que de facto aconteceu mas não chegou a ver porque estava em baixo, na cova, com o seu revólver Nagant. De vez em quando, quando se sente cansado, quando tem vontade de descomprimir, de fumar um cigarro, volta a subir e passa a tarefa ao seu adjunto, o tenente Alafer, mas, regra geral, é ele que se encontra no fim da cadeia, as suas botas na lama sanguinolenta, cheia de miolos. Todos os dias, ou antes todas as noites, porque aquelas coisas têm lugar à noite, nas noites de vinte e sete de outubro de 1937 e de um a quatro de novembro (…), ele avia entre duzentos e duzentos e cinquenta contrarrevolucionários. E, para além disso, tem de assinar as declarações que atestam que cada sentença foi executada. Em suma, trabalha a mata-cavalos, mereceu o seu relógio de ouro.

Como foi possível? Como é possível?

Sem comentários: